Lugar-memória, corpo-solidão

Crítica da peça Primeiro Amor, de Samuel Beckett, com atuação de Ana Kfouri

28 de dezembro de 2012 Críticas
Foto: Divulgação.

Entrar no teatro Poeirinha e mais uma vez ser recebida por um espaço modificado, por outra concepção cênica, que provoca aquela sensação rápida de lugar desconhecido, e que em poucos segundos a memória se organiza e reconhece. O Poeirinha (assim como as salas ditas alternativas) coloca o artista em contato com um espaço totalmente amorfo, e por isso, está sempre apresentando ao público um “lugar” novo. As criações que se apresentam neste espaço parecem surgir, ou se aventurar, por um lugar não definido, não caraterístico e sem similitude com outros espaços de representação. Escrito isto, penso que o espetáculo Primeiro amor, de Samuel Beckett, dirigido por Antonio Guedes, assim como o espaço cênico, nos coloca estes dois pontos para a percepção: o esforço da memória para se lembrar dos fatos vividos e a narrativa construída sobre o chão de um lugar qualquer.

Ou dos lugares destroçados do pós-guerra, tempo histórico de onde Beckett escreve. Os vídeos da artista plástica Helena Trindade, delimitam o espaço de atuação em um retângulo luminoso no chão, no qual, ao longo da peça, projetam-se túmulos, covas, ruínas, ossos, letras de areia, letras em colisão, e a palavra amor. O que é transmitido nos vídeos não é a configuração de um lugar, mas a tentativa de fixação da memória do personagem. O vídeo não funciona como um cenário figurativo, este lugar não é dado, ele é o esforço da memória do personagem em fixar sua história. Fixar a história é fixar a memória, e adiante, fixar a memória é tentar fixar a imagem de si próprio. Lembrar-se de si, enxergar o que se é. E o que se é, neste caso, é o próprio chão, o próprio vídeo, o lugar. O personagem é a cova, os ossos, as palavras de amor que ele mesmo pisa. O personagem é um “estado” de lugar-memória.

E pode ser precipitado definir simplesmente como personagem os enunciadores de Beckett. Isto demandaria um estudo mais aprofundado sobre o personagem na história do teatro, por isso, em princípio, é mais viável dizer que em Primeiro amor existe uma voz masculina que narra, com toda a materialidade da língua possível, uma corrida atrás da sua identidade. Esta identidade é concretizada na repetição interminável do desejo de solidão. Antes de tudo, a voz se reconhece na necessidade de ficar só. Desde criança, desde antes da morte do pai – sua principal memória de afeto recíproco. A solidão é, exatamente, o que corporifica a voz. A solidão é o corpo, a memória a voz. Dá-se, então, o encontro da voz que é um lugar-memória com a concretude física do corpo-solidão.

Estes dois estados abstratos de composição só são perceptíveis por meio da (já mencionada) materialidade linguística que Beckett emprega às palavras, e, da interpretação de Ana Kfouri que carrega o mesmo teor de concretude nos movimentos e na voz. Enquanto texto, o autor coloca a solidão em palavras e repete a exaustão, como que tentando expelir o indizível do texto, e pela verborragia expõe-se cada vez mais o isolamento. Apesar de ser uma narrativa, o texto começa e termina a cada frase. Assim como o trabalho de atuação da atriz, que se apropria do concreto das falas e dá uma solidez imprescindível à narrativa. O resultado disso é o silêncio, o limite da palavra, a falência da vida, a corrosão do tempo.

A memória, na medida em que é o que se lembra e também o que se esqueceu, contribui com esta busca de encenar o próprio tempo. A cada novo fragmento de vídeo, a cada nova passagem da vida, é o tempo que se mostra e se desfaz. A cada mínimo e preciso movimento corporal de Ana Kfouri, é o tempo que se cria como um bloco. Não tem camadas para descobrir, está na superfície a vida que tem para ser vista. E ela é falida, mas sem psicologia. Destruída de guerra, a solidão em toda a sua crueza, tão concreta que, mesmo frente ao amor, saiu soberana.

Mariana Barcelos é atriz, estudante de Artes Cênicas – bacharelado com habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO.

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