Eu, ele, e o conflito
Crítica da peça Moi Lui, com adaptação de Isabel Cavalcante e atuação de Ana Kfouri
“Aí está uma das razões pelas quais evito falar tanto quanto possível. Porque sempre falo demais ou de menos, o que sempre me faz sofrer […]”.
Samuel Beckett, em Molloy
Falar de Beckett é deixar ver suas lacunas. Moi Lui, adaptação de Isabel Cavalcanti do romance Molloy, está em cartaz no Poeirinha, como parte do “Projeto Beckett”, no qual a atriz Ana Kfouri encena duas peças a partir de obras do autor; a dramaturgia Primeiro Amor, e a adaptação em questão.
O olhar sobre o amor e as relações parentais é privilegiado nas composições que falam de pai (Primeiro Amor), mãe (Moi Lui) e filho (ambos). Porém, mais do que sobre o amor, o que se revela é a solidão por detrás de tais encontros. E a solidão, comum na obra do dramaturgo irlandês, produz uma fala cheia de vazios, de falta de sentidos e de excesso de tentativas de entendimento. As primeiras pessoas de Beckett narram suas histórias em busca de um vestígio de clareza, uma iluminação. Não conseguem. E, enquanto em Primeiro Amor é a própria dramaturgia monológica que está impregnada de fissuras e cortes ao longo da narrativa, em Moi Lui é a adaptação que dá o ritmo da fala e da história – da memória já em recortes de Molloy.
Para começar, não é o Molloy propriamente, o do livro. Como diz a atriz no início da encenação, ali se falaria “a partir de Molloy” – primeiro recorte. Deslocam-se do romance as passagens consideradas mais pungentes e coerentes com a linha fabular que se pretende construir, e com esta seleção, força-se o elo. O encontro obviamente se dá, pois, trata-se da adaptação de uma obra una, porém, este encontro não é perfeito como o de um quebra-cabeça (com o encaixe das peças corretas). Ele falha (como o encontro das peças incorretas). O espaço que sobra entre as peças, o lugar do “desencontro”, é a materialidade da solidão. O filho tenta encaixe com a mãe, sobra espaço: solidão. Esse jogo mal feito percorre todas as relações, inclusive a relação com a própria memória (o personagem luta para lembrar os nomes: o seu, da mãe e do filho).
Em cena, o texto se apresenta como que em blocos, e o recurso que demarca o início e o fim de cada bloco é a iluminação. Majoritariamente composta por focos no rosto da atriz, a iluminação de Tomás Ribas, assim como o texto, imprime qualidade rítmica ao espetáculo. Porém, a luz se dá numa dimensão que ainda extravasa a composição rítmica, uma que vez evidencia os contornos do texto, ou seja, dá a ver sua forma recortada. Também cria imagens fantasiosas da fala do personagem, como, por exemplo, a divisão do lugar onde se está para o lugar para onde se vai ao final de tudo (numa alusão ao céu). Neste momento, um teto de luz e fumaça surge acima das cabeças (público e atriz) e divide o espaço em dois, em cima e embaixo. E, por alguns minutos, perto do fim, esta metáfora é como uma cenografia que transmite a ideia de uma realidade possível.
E carrega todas as dicotomias contidas no texto com uma nebulosidade fortemente marcada, como a parede de nuvem que divide o espaço. Família x solidão, memória x esquecimento, aqui x passado, aqui x futuro, eu x ele. Todas as polaridades em conflito na fala de Molloy são, sem exagero, resultado de uma subjetividade confusa, mas não irreal. As vivências que inquietam o personagem são situações corriqueiras, de possíveis amenidades – ainda que encarar a mãe muito doente na cama não seja exatamente uma experiência confortável, ela também não foge ao fluxo plausível de experiências comuns a todos. Isto revela que a principal dicotomia e ação conflitante na vida de Molloy não estão fora do seu corpo, no exterior, ao contrário, é na interioridade do seu ser que se encontra o problema, ou o maior recorte. O eu (Moi) e o ele (Lui). Um corpo em guerra por duas pessoas. Duas subjetividades, polares, em eterno processo de autocompreensão e fuga. Nenhuma circunstância descrita seria suficientemente capaz acender tanto transtorno se ao encontro desta não estivesse uma cabeça dividida.
Moi Lui é sobre a fragmentação. Do corpo, da mente e da dramaturgia (e do mundo). Assim como Primeiro Amor. A obra de Samuel Beckett precisará sempre deste lugar de reverberação, e quanto mais no teatro (nacional) se montarem os textos menos famosos, mais o público terá acesso à unidade de sua obra e aos pensamentos que dela suscitam. Por toda a convergência entre História e conteúdo que a obra do autor apresenta, e a grandiosidade reflexiva que parte disso, o “Projeto Beckett” não é apenas um projeto artístico que emana de uma necessidade particular, ele é necessário enquanto bem cultural para o coletivo.
Mariana Barcelos é atriz, estudante de Artes Cênicas – bacharelado com habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO.