Corações comovidos… e outras histórias
Crítica da peça infantil A mulher que matou os peixes… e outros bichos
O texto que segue foi publicado no Jornal do Brasil em 13 de maio de 2009, durante a primeira temporada desta peça, que estreou no Oi Futuro Flamengo e agora reestreia no Teatro Nelson Rodrigues. Para esta edição, foram modificadas as informações sobre a temporada e outros detalhes, mas foram mantidos o formato e a extensão, característicos da crítica escrita para o jornal impresso.
Esqueça as fantasias de personagens da Disney, as peças infantis que imitam filmes que todo o mundo já viu e as insossas histórias de princesas. Em cartaz Teatro Nelson Rodrigues para uma curta temporada, A mulher que matou os peixes…e outros bichos passa longe da mesmice do teatro infantil. Não sobra um clichê pra contar a história. Aliás, a peça também não segue o protocolo que determina que, para fazer uma peça infantil, é preciso contar uma história. Ela conta várias: a da mulher que matou os peixes, do gato acertadamente apelidado Pinel, de vários cachorros que não estão mais entre nós, de uma macaca que também não teve vida longa, enfim, a peça reúne uma série de relatos improváveis para o divertimento. A morte dos bichos de estimação, um dos fatos da infância que parece sacudir a forma como as crianças veem o mundo, é um tema que permeia toda a peça. Mas sem apelação para a choradeira. Pelo contrário.
Uma parcela considerável do teatro infantil costuma tomar como ponto de partida as regras do teatro adulto mais tradicional: narrativa com início, meio e fim; fala impostada; truques ilusionistas; atores sempre de frente para a plateia; e o pensamento de que se você não explicar tudo muito esmiuçadamente, o público não vai entender. A mulher que matou os peixes… e outros bichos dá as costas para tudo isso e, além de dialogar com formas contemporâneas de teatro e dança, parte de um pressuposto bastante coerente para uma peça infantil: a dinâmica do próprio comportamento da criança em situação de divertimento. É nessa dinâmica que a direção de Cristina Moura melhor se dá, porque não fica aparente. As mudanças de cena acontecem espontaneamente, como se os atores fossem três crianças brincando e tendo idéias. Isso também se deve à criatividade e ao comprometimento do elenco. Mariana Lima (nesta temporada substituída por Bel Garcia), Renato Linhares (dividindo as apresentações com Pedro Monteiro) e Luciana Fróes formam (com Cristina Moura e a assistente de direção Daniela Fortes) a equipe de criação do espetáculo, o que de certo modo explica a sintonia e a propriedade com que lidam com a peça.
Vale destacar também a dramaturgia de Isabel Muniz, que articula uma gama enorme de referências para construir um texto complexo que, no espetáculo, parece simples. A direção musical de Lucas Marcier e Fabiano Krieger (com colaboração de Felipe Rocha), assim como os vídeos de Paola Barreto, são pontuais e agregam beleza à cena. A iluminação de Enrique Diaz, a direção de arte e cenografia de Mari Stockler e os figurinos de Marcelo Olinto constroem um visual exuberante, caótico (no bom sentido) e bem-humorado.
O humor é a chave para lidar com cada assunto, mas não a única. A peça é cheia de momentos líricos, nos quais as crianças são conquistadas pela subjetividade. Nunca se sabe nem se pode prever o que vai acontecer no minuto seguinte e isso deixa a plateia livre de expectativas. Às vezes, uma história é interrompida por uma pergunta, ou por outra história. É como se a peça fosse tecida de desvios e parênteses, e é neles que se manifestam as imagens mais singelas. É o caso do momento em que Mariana diz que ficou comovida com alguma coisa e Renato pergunta o que é “comovido”. Mal dá tempo de achar que eles vão explicar uma emoção tão complicada. Luciana se levanta e “faz” um coração comovido. É indescritível. E muito, mas muito bonito mesmo.
Daniele Avila é tradutora e crítica de teatro. Mestranda em História Social da Cultura pela PUC-Rio, tem graduação em Teoria do Teatro pela UniRio.
Vol. IV, nº 33, junho de 2011