Presença que escapa

Crítica da peça Devassa, da Cia dos Atores, a partir de A caixa de Pandora de Frank Wedekind

27 de julho de 2010 Críticas

 

Atrizes: Bel Garcia e Marina Vianna

Em sintonia com uma das principais propostas da Cia. dos Atores, Devassa desponta como uma desconstrução de um texto original – no caso, Lulu, de Franz Wedekind, já transportado para o cinema por G W. Pabst. A diretora Nehle Franke e os atores se preocuparam em entrar em contato com a integridade da obra original antes de dissecá-la em cena. É interessante acompanhar a perseguição dos personagens por uma Lulu, que, mesmo quando parece ter sido dominada, escapa, sempre fugidia, das mãos de seus controladores.

Todos correm atrás de Lulu – mas ninguém consegue realmente alcançá-la, reter sua presença – numa maratona que acaba evidenciando a distância entre aquilo que se é e a imagem que os outros portam daquele que almejam (“Eu não tenho nada além de mim”, diz Lulu, em determinado momento). Lulu não é reduzida a mero objeto de desejo, a material facilmente manipulável, como os manequins sem cabeça, braços e parte das pernas, um dos principais elementos do cenário de Aurora dos Campos.

Em alguma medida, os personagens tentam dirigir Lulu de fora do espaço central. Há uma clara delimitação, nesse sentido. Mas Nehle Franke não se prende a fronteiras rígidas. Ao contrário, investe numa montagem que extravasa as bordas do palco. Quando o espetáculo começa, inclusive, os atores já estão em cena; ao final, os personagens dão continuidade à perseguição de uma Lulu inatingível, evidenciando um movimento que “continuará” fora da cena.

A cenografia imprime uma atmosfera concreta de decadência – realçada pelas cortinas de plástico ao fundo, coloridas por luzes que sugerem o efeito de neóns, pelo fliperama e pelo piso de quadrados grandes de tonalidades envelhecidas – que se soma aos objetos assépticos, hospitalares. A figura de Lulu é diferenciada através dos figurinos (estampas e cores claras para ela, a neutralidade do preto e tons lisos para os demais) de Marcelo Olinto e da iluminação (mais intensa para Lulu) de Maneco Quinderé.

Mas o melhor de Devassa não reside na operação dramatúrgica proposta pela Cia. dos Atores em relação a Lulu, e sim no trabalho dos atores – ou, mais adequado seria dizer, de uma atriz – Bel Garcia. Não que não caiba falar sobre os demais: Marcelo Olinto chama atenção nas transições (em especial, na crise de riso), Cesar Augusto investe numa fala cortante e contundente, Marina Vianna é uma presença insinuante, Pedro Brício realça com vigor a concretude das palavras e Alexandre Akerman, com menos oportunidades, tangencia o humor com algum domínio. Mas Bel Gracia se projeta em cena de maneira mais poderosa, principalmente na escravidão amorosa de uma Condessa transbordante, que mescla descontrole e irritação na obsessão por Lulu. A atriz traz à tona, por meio do registro vocal, a atmosfera de um passado efervescente e saudoso.

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores