Morrer de urso ou Inovação do momento original

Crítica da peça A primeira vista, de Daniel MacIvor, com Mariana Lima e Drica Moraes

30 de abril de 2012 Críticas
Foto: Divulgação.

A peça À primeira vista, dirigida por Enrique Diaz e em cartaz no Teatro Poeira, é uma poética ordenada pelo conteúdo contemporâneo do mundo calcado no visual. O que aparece, o que pode ser visto é, mais ainda que o mote, o lugar das origens. Lugar que se desterritorializa por que abre sempre novas linhas de fuga, porque pela sua simples presença já aponta para algum outro lugar de fora. A relação das duas mulheres vividas por Drica Moraes e Mariana Lima é uma reimpressão constante de momentos em que uma vê a outra, desdobramento de um primeiro momento em que se viram em uma loja de material de camping. Ato de ver investido de afeto. A encenação é a segunda experiência de Enrique Diaz com a dramaturgia de Daniel MacIvor. A primeira tratou-se de In On It que estreou em 2009.

Um tecido branco com rabiscos que se estende do chão ao teto e um rádio. É a primeira imagem do espetáculo. Drica Moraes entra, observa o espaço e sai. Mariana Lima entra, observa e sai. Seus olhares não só apresentam a cenografia de Marcos Chaves, como também, e principalmente, materializam o lugar da apresentação. O cenário não é figurativo de algum ambiente, é um lugar para se “apresentar”, é concreto. Esta primeira imagem diz muito sobre a encenação. A concretude do cenário reverbera, ou é reverberação, da direção e atuações da peça que dão a ver uma exibição consciente/concreta do que seria “estar em cena”. As atrizes estão em cena, e em algum momento “decidem” começar.

A cenografia está como lugar de apresentação, mas também se dá à visão como uma plataforma (as camisas usadas pelas atrizes e a obra do artista, ambas propondo indistinção entre chão e parede, entre níveis, entre planos baixo, médio e alto). O que se vê no espaço é matéria da subjetividade. Outra implicação que a cenografia aponta é para seu avesso, ou seja, como num espelho que reflete o visível, existe uma parcela que não se mostra, que está no avesso do espelho e que a dramaturgia formaliza.

A dramaturgia de Daniel Maclvor (e fica mais claro para quem assistiu In On It) apresenta duas características que, ao que parece, pré-definem este estado de atuação que privilegia a demonstração explícita de “atrizes atuando”. As duas características seriam: primeira, a dualidade temporal – ora as personagens narram no presente suas histórias diretamente para o público, ora encenam momentos importantes do passado. Dessa maneira, as cenas do passado ficam distanciadas e não há uma interlocução direta com o público, diferente do presente da narrativa, quando ocorre uma aproximação e todo o texto é direcionado para frente. Segunda, a consciência da apresentação – as personagens sabem que estão dizendo suas histórias para o público, elas têm consciência de que estão se apresentando, e por conta disso, elas são personagens-atrizes.

Personagem-atriz-narradora coexistindo num só discurso. Causa uma estranheza, mas a direção de Enrique Diaz busca a simplicidade entre as vozes. Esta simplicidade é concreta também, e seu indício mais presente está nas entradas e saídas de cena. Elas entram e saem de cena sabendo que a coxia é coxia – mesmo podendo ser um quarto. Trazem uma barraca de acampar para o palco, sabendo que a barraca veio da coxia, mas o palco poderia ser um camping, ou uma loja que vende barracas. As realidades se fundem, – a narrativa e a fábula, o presente e o passado – e a transição entre elas é tão simples quanto “estar em cena”.

A direção e a dramaturgia criaram um lugar de atuação entre a atriz/personagem e a atriz/narradora, ou entre personagem no presente e personagem no passado, que não torna a forma complexa, mas gera um efeito de proximidade com o espectador, que compartilha das experiências vividas pelas duas sem dificuldade. Assim sendo, o relacionamento nas vidas das personagens está contido em tudo que se pode perceber à primeira vista no palco e na maneira de fazer. Tudo o que é simples e concreto e visível ao primeiro olhar. (O que não quer dizer que a forma não esteja preenchida de matéria subjetiva).

Porque pode até parecer simples decifrar o afeto que as envolve e faz com que as duas se reencontrem muitas vezes ao longo da vida. Pode parecer óbvio e um tanto romântico o desenrolar da história. “As an old memory”, como diz aquela música do Nirvana (Come as you are), que todo mundo conhece e que não deixa de ser tema da vida delas, só porque foi a única música do repertório da Ukuleladies, banda que montaram na juventude. A direção opta pelo simples, para que da dramaturgia não se enxergue o superficial. E ainda que MacIvor opte pelo final pseudo-apelativo, a personagem de Drica Moraes, muito sutilmente, ainda pelo início do espetáculo, diz que a imagem do medo para ela é um urso gigante. Está entregue a chave da metáfora, e seria muito simplório afirmar que esta peça fala só de amor.

O trabalho das duas atrizes é refinado e sensível, criando o campo para as apreensões que procuramos descrever. Suas composições físicas e poéticas não se separam e nos dão a grata oportunidade de vivenciarmos a experiência teatral com a inovação de nossos sentidos.

Informações sobre a temporada: http://www.facebook.com/primeiravista

Dinah Cesare é Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na linha de pesquisa Poéticas Interdisciplinares, é mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

Mariana Barcelos é atriz, estudante de Artes Cênicas – bacharelado com habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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