Conversa com Vinícius Arneiro

Conversa com Vinícius Arneiro, diretor da peça Cachorro!

15 de março de 2008 Conversas

A conversa com Vinícius Arneiro, diretor do espetáculo Cachorro!, foi realizada em março de 2008 por Henrique Gusmão.

HENRIQUE: Vinícius, Cachorro! é o trabalho de uma companhia que vocês formaram?

VINÍCIUS: É um grupo.

HENRIQUE: Você pode contar um pouco da história do grupo?

VINÍCIUS: Eu, Paulo Verlings e Felipe Abib nos formamos juntos na Martins Pena no primeiro semestre de 2006. Mas desde que a gente entrou na Martins Pena, eu e o Paulo tínhamos uma afinidade muito grande, então nos juntamos logo. Na verdade, o primeiro trabalho que a gente fez foi na época em que entramos na escola, em 2004, e se chamava Deus danado. Era um esquete. A gente participou do Circuito Carioca de Esquetes e o Paulo ganhou o prêmio de ator. Depois entramos em cartaz no Planetário e no Sérgio Porto. Logo depois, a gente circulou muito, fomos em todos os festivais de esquete. E num destes festivais a gente conheceu a Carolina Pismel. Um tempo depois, em 2006, o Paulo e a Carol pediram um texto ao Jô Bilac. O Jô tinha acabado de adaptar uma cena do filme Traição, que tinha o roteiro da Patrícia Melo, um segmento chamado Cachorro!. Era uma situação em que um homem trai seu melhor amigo com sua esposa, uma situação clássica baseada em Nelson. Só que o filme é muito contemporâneo, mais puxado para os anos 90. O Jô centrou o foco desse esquete exatamente na relação do marido traído com a mulher. O Paulo me chamou para dirigir o esquete – Cachorro!. A gente ficou um mês e meio trabalhando, concorremos no Festival Mercadão Cultural e acabamos ganhando prêmio, nas categorias direção e esquete.

HENRIQUE: Mas era uma coisa muito menor do que é Cachorro! hoje?

VINÍCIUS: É, tinha 10 minutos. E aí eu fiquei pensando em estudar melhor as possibilidades do esquete. O Jô tem uma maneira muito peculiar de escrever e tem algumas coisas muito “rodrigueanas”. Então eu sugeri aos meninos que entrássemos juntos na empreitada de montar o espetáculo com a seguinte idéia: eu só me interessava pela montagem se partíssemos para outro tipo de experimento, com outra linguagem. Não me interessava caminhar por lugares por onde já tínhamos passado. Não é que não tivéssemos nos aprofundado antes, mas eu queria dilatar aquele universo. E foi aí que começamos a criar. Chamamos o Felipe Abib para ser o “terceiro elemento”. Começamos a ensaiar, desenvolvemos improvisações. Tinha acabado de estagiar por oito meses com a Companhia dos Atores e estava com a cabeça azucrinada de idéias, com vontade de fazer muita coisa.

HENRIQUE: Você estagiou com a Companhia dos Atores?

VINÍCIUS: Eu estagiei como uma espécie de assistente de direção. Quando eu entrei, eles estavam em repertório com Ensaio.Hamlet e Melodrama. Então, a parte que eu acompanhei com eles foi um pouco do Coletivo Improviso, que é um grupo que o Kike [Enrique Diaz] tem. Eu assisti a algumas aulas, acompanhei as oficinas que eles estavam ministrando na companhia – a cada bimestre era uma – e os ensaios dos espetáculos.

HENRIQUE: Além do Kike, você tem como referência algumas outras pessoas que estão atuando hoje no teatro carioca?

VINÍCIUS: Eu confesso que três pessoas, no Rio de Janeiro, me influenciam de uma forma muito positiva. não só para Cachorro!, mas para a minha visão como ator, como artista, agora como diretor também… Esse é um lugar em que eu estou pisando com cuidado. Essas pessoas são o Flávio Sousa – que me deu aulas na Martins Pena e trabalha com narrativa, o que foi importantíssimo para mim, o Moacir Chaves, com quem eu trabalhei ano passado em A tragédia de Ismene. Foi muito interessante trabalhar com ele, Ele tem toda uma questão vocal que me interessou muito, a descoberta da palavra, a desconstrução da palavra… E o Kike. São três pessoas que acrescentaram muito não só a mim mas também  à companhia.

HENRIQUE: Como foi, para vocês, a questão de montar Nelson Rodrigues hoje? O programa da peça se refere a isso, ao fato de montar Nelson, já distante do momento de produção da sua obra. Como essa questão foi pensada na dramaturgia, na montagem?

VINÍCIUS: Na verdade o mais curioso de fazer essa experimentação foi errar. A gente passou quase oito meses juntos tentando descobrir um caminho possível para elaborar aquele enredo e pensar o que a gente queria dizer com Nelson. E, desse tempo, a gente passou cinco meses experimentando. Eu queria transferir o Nelson para hoje, eu queria descobrir o que ele estaria escrevendo se estivesse vivo, o que ele estaria falando hoje em dia, quando o mundo está tão banalizado. A violência do texto dele já é batatinha diante do que acontece do nosso lado. Como funciona isso? A gente passou cinco meses nessa piração. A galera estava assim: “Ih, não vai dar certo…”. Eu falei: “Gente, ninguém está falando que tem que dar certo. Eu não estou falando que vai dar certo. Para mim também é uma coisa incerta. A gente só está junto porque não sabemos no que vai dar. Caso contrário, não nos interessa. Vamos fazer? Vocês confiam?”. E eles: “Confiamos”. Aí pelejamos pela pauta do SESC e ela saiu. Foi lá que a gente estreou, no dia 19 de outubro de 2007, na Sala Multiuso. Da data que a gente conversou até a estréia nós tínhamos cinco ou seis semanas. A gente saiu da reunião, eu olhei para a cara deles e falei: “Galera, sabe tudo o que a gente tem? Vamos jogar tudo fora e começar de novo, a partir de agora”. Todos ficaram desesperados, diziam: “A gente está a um mês e meio da estréia, a gente está a cinco meses trabalhando e vamos jogar tudo fora?!”

HENRIQUE: Mas vocês jogaram tudo fora mesmo?

VINÍCIUS: Tudo, tudo, tudo. Tudo o que você pode imaginar. Toda a confecção. A gente estava de um lado e depois a gente foi para o outro nada a ver. Nada a ver. Conversei com o Jô, pedi para ele esquecer tudo aquilo em que a gente estava imerso. As primeiras duas semanas foram difíceis. E onde entra o Nelson? Eu quis me apegar mais ao Nelson. A um Nelson que eu enxergava e não a uma suposição do que seria Nelson. A gente pegou A vida como ela é e o Jô devorou o livro em menos de 24 horas. A partir dali, o Jô pegou o enredo que a gente já tinha, o enredo do próprio esquete – do marido, do amante e da mulher – e começamos a improvisar, a fazer cenas. O Jô foi trazendo cenas em blocos e nós trabalhávamos. Aos poucos, o trabalho foi ganhando uma cara.

HENRIQUE: Então, objetivamente, Cachorro! tem elementos de vários momentos de A vida como ela é?

VINÍCIUS: Não. Inclusive, muitas pessoas escrevem muito errado ao falarem do espetáculo. Já escreveram até que Cachorro! é uma adaptação de um conto homônimo de Nelson Rodrigues. Não existe esse conto. Eu cheguei a falar com a Patrícia Melo sobre o esquete dela e ela falou que leu um conto chamado Anemia perniciosa e, desse conto, ela escreveu um roteiro original, que é o Cachorro!. E isso foi a mesma coisa que eu fiz com o Jô. Eu falei: “Jô, nós vamos pegar o universo rodrigueano, vamos estudar como ele coloca as palavras, onde ele coloca o adjetivo, o verbo. Faz um estudo meticuloso sobre como ele escreve, um estudo clínico sobre que tipo de palavra se usava naquela época. Por exemplo, não tem um “batata” no nosso texto. Entendeu?

HENRIQUE: Porque está vulgarizado?

VINÍCIUS: Exatamente. A gente não queria trabalhar com esse Nelson, com “batata”. Então ele pegou a essência rodrigueana, deu uma estudada e desenvolveu termos que são dele, do Jô. Parecem rodrigueanos, mas não são do Nelson. Não foi Nelson quem escreveu, e sim o Jô. Isso é o que eu vejo de mais rico na pesquisa.

HENRIQUE: Como foi a sua participação na produção da dramaturgia? Teve participação sua na escrita do texto?

VINÍCIUS: Na verdade, a matéria-prima eram os próprios atores. Eu conduzia a visão do Jô para onde eu queria levar mediante alguns exercícios com os atores. Ele escrevia, mas a condução era minha. Ele ia para casa, escrevia do jeito dele e trazia para a gente. O meu papel na dramaturgia era selecionar o que me interessava. Às vezes eu escrevia cenas e falava: “Olha, escrevi. Está péssimo. Agora escreve você. Mas eu quero esta situação.” E aí ele colocava nas palavras dele. Foi mesmo uma criação dele, mérito dele. O mérito, o estudo é dele. É uma pesquisa dele.

HENRIQUE: Existe uma série de montagens de Nelson, existem filmes. Como você se relacionou com esses trabalhos já existentes?

VINÍCIUS: As duas referências mais fundamentais em termos de cinema foram Amor à flor da pele, de Wong Kar-wai, e Tango, do Carlos Saura. Estas foram as duas maiores referências para mim. Me abriram muitas portas para poder discutir a estética do espetáculo, discutir a filosofia, o silêncio do espetáculo, discutir a intenção do tango na peça. Porque, também, isso não é nada novo. Já fizeram isso tão mais bem feito, e tão mal feito. Na verdade, a idéia era ter um charme. Eles fizeram aula de tango por um mês para poder pegar o corpo, a postura. Então, as duas maiores referências cinematográficas são essas.

HENRIQUE: Parece-me que o trabalho com os atores é um elemento destacado no espetáculo. Você pode me falar um pouco das linhas mestras desse trabalho, da condução desse processo, da trajetória desse trabalho?

VINÍCIUS: Além de diretor, eu sou ator também. Para mim, a direção dos atores é a parte mais importante do espetáculo. Eu tenho paixão por iluminação, pela estética, pela plástica do espetáculo. Eu gosto de ver peça bonita, eu acho que teatro tem que ser bonito. Mas o trabalho do ator é o eixo da história. É possível jogar tudo isso fora em prol de boas interpretações, a meu ver. A condução da trajetória do trabalho dos meninos primeiro girou em torno de técnicas de jogos que eu pude absorver com as pessoas que eu já te falei – Flávio, Kike e Moacir. Mas misturando tudo. E eu não queria trabalhar com construção de personagem, Isso era uma coisa que eu não queria porque o texto estava escrito para a boca do Paulo, para a boca do Felipe, para a boca da Carolina. Então, eu queria saber o que era possível ser construído a partir de uma energia que eles já ofereciam para o próprio texto. Eu queria trabalhar com isso. Foi um trabalho muito, muito, muito meticuloso. Às vezes parece que é um trabalho um pouco mais flexível, eu não sei exatamente como é para quem vê. Mas existiu um trabalho muito rigoroso, de muita exigência da parte da direção com eles. Foi muito trabalhado o texto, a intenção das falas. Para mim, a trinca é a chave mestra do trabalho.

HENRIQUE: Há grandes nomes de artistas e pensadores teóricos que refletem sobre a atuação. Como esses nomes se colocam para você?

VINÍCIUS: Eu tenho conversado muito sobre isso, está tudo muito fresco na minha cabeça. Eu não estou aqui querendo criar uma visão generalizada. Mas, Pelo que eu tenho de experiência, que é pouca, eu não acredito nesse tipo de condução, nesse tipo de processo. Porque eu acho que quem entra, às vezes, nesse lugar de ter que pesquisar… Por exemplo, vai pesquisar Artaud para pegar a questão da crueldade, a linguagem artaudiana, a visceralidade, etc, etc. Mas, aí, as pessoas geralmente caem no erro de querer interpretar o que o cara achava sobre o que ele escreveu, e não o que a pessoa, o artista, está absorvendo daquilo. Então, pra mim, isso reduz a capacidade criativa, seja do ator, seja do diretor, seja do cenógrafo. Dessa forma, não há referência teórica em relação ao espetáculo. Estudar é fundamental! Mas a antropofagia do conhecimento, principalmente ao colocá-lo em prática, é o que é excitante pra mim. A gente trouxe textos que se encaixavam com as nossas idéias, a gente não foi buscar idéias nos textos. Por exemplo, eu lia alguma coisa, lembrava, via que era isso que eu queria dizer e levava para o grupo. Mas a gente não se utilizou de nenhuma técnica, de nenhum teórico, nada. É engraçado que quando a gente fez o esquete, a gente chegou a ouvir de uma pessoa que não gostou que nós estávamos brincando com Nelson. E eu, muito tranqüilamente, penso: “Que bom, não é? Porque eu acho importante. Eu tenho só 23 anos, eu não tenho que querer ser o Nelson, eu não tenho que saber como ele pensa isso”. O respeito por ele é maior que nossa vontade de brincar. Mas achei bom esse termo: “brincando”.

HENRIQUE: E como você avalia, no caso do seu espetáculo, mas pensando também no teatro no Rio de Janeiro, a recepção do trabalho?

VINÍCIUS: Eu posso dizer com segurança que a receptividade tem sido muito boa. Isso tem sido unânime – uma coisa boa das pessoas. Eu opero o som do espetáculo, gosto de acompanhar cada apresentação. Eu anoto coisas, vejo as pessoas, como elas estão, vejo elas saindo, eu converso com elas depois. Isso é muito bom para o espetáculo, pretende-se que ele tenha uma vida longa. Mas eu percebo uma coisa muito curiosa. Está havendo uma demanda muito grande por Nelson agora, de novo. Nelson tem fases, às vezes aparecem cinco, seis peças, filmes, exposições. E agora está acontecendo muita coisa: A falecida, do João Fonseca, Moacyr Góes está fazendo testes para Bonitinha mas ordinária, o Antunes vai estrear em São Paulo Senhora dos Afogados. A coisa está generalizada e acaba entrando no inconsciente coletivo. Mas eu confesso que eu fico com muita preguiça de assistir. Muita preguiça de assistir Nelson Rodrigues montado no Rio de Janeiro hoje em dia. E a gente queria sair disso. O espetáculo é formal, não é o “cuntipurânio” [sic] da cena carioca. A gente não quis isso. A gente quis uma homenagem, a nossa homenagem, a homenagem da nossa geração. Mas o resultado é bom. Pessoas mais velhas vêm falar com a gente: Vai muita gente mais velha, pessoas mais experientes, atores, atrizes, diretores, produtores, mais velhos mesmo – 60, 70 anos de idade. E falam da montagem, do frescor da montagem. Falam dessa sacudida, de tirar um pouco da poeira, mas sem querer ser outra coisa. Muitas vezes você acha que está fazendo Nelson, acha que está se aproximando, mas acaba se distanciando.

Vol. I, nº 1, março de 2008

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