Ascensão da multidão ao calvário

Crítica da peça Laboratório Karamázov, dirigida por Celina Sodré no Instituto CAL de Arte e Cultura

21 de julho de 2013 Críticas
Foto: Carlos Biar.

Laboratório Karamázov, que esteve em cartaz por três dias de junho no Instituto CAL de Arte e Cultura, é uma realização que mostra o investimento na formação de atores profissionais proporcionado pela universidade. O espetáculo, dirigido por Celina Sodré, parte de um roteiro livremente adaptado do romance Os irmãos Karamázov de Fiódor Dostoiévski e de fragmentos de Meu marido Dostoiévski de Anna Dostoievskaia. A noção de laboratório que o título materializa é um procedimento que, para a diretora, está intimamente conectado com as experiências desenvolvidas pelo mestre de teatro Jerzy Grotowski, que visavam o desnudamento, ou um processo de revelação dos atores – o nome de sua companhia era Teatro Laboratório. Ao mesmo tempo, a confecção de um roteiro como material originário parece se aproximar do que Grotowski realizou com as dramaturgias/montagens em Akropolis e, posteriormente em Príncipe Constanti, para citar dois exemplos expressivos de seu trabalho.

O Instituto CAL é uma conformação de nível universitário que se desdobra, sem dúvida, dos anos de experiência no ensino profissionalizante de artes cênicas da conhecida Casa das Artes das Laranjeiras, criada em 1982, que teve a coordenação artística do crítico Yan Michalski. A CAL firmou-se como um lugar de formação em interlocução com a cena artística da cidade oferecendo curso de teatro, cinema e televisão numa perspectiva que construiu uma grade de disciplinas fundamentada pelos elementos e procedimentos que envolvem a criação do trabalho de arte.

Com a realização do projeto de nível universitário o trabalho parece ganhar ainda outras dimensões, com uma exigência didática ampliada e um maior aprofundamento teórico-filosófico, para além de uma ideia mais tradicional sobre a técnica. Isso é o que aparece com a montagem de Laboratório Karamázov que reuniu num só elenco três turmas para experimentar e estudar uma atuação dita não realista. O elenco, composto por 50 atores, tensiona numa bela formulação a representação de um coro vivo e, ao mesmo tempo, proporciona uma série de trabalhos singulares realizados pelos atores – o que é parte importante do encontro entre a metodologia de Celina e de uma noção de pesquisa universitária, como é possível observar em suas próprias palavras:

“Hoje, no mundo, um jovem ator tem à sua disposição um imenso acervo de filmes com atuações de grandes atores no cinema e isto precisa ser visto, analisado e estudado, o que abre um tipo de possibilidade de estudo e conhecimento bastante plural no sentido de que o ator pode tanto ver Marlon Brando e Al Pacino como Toshiro Mifune e Erland Josephson, e a partir deste material ir construindo o ‘seu’ ator.”

As questões surgem então do cruzamento destes estudos, leituras e observações e dos laboratórios práticos que daí se materializam com experimentações e construções artísticas de partituras de ações que funcionam como pequenos ateliers de investigação da arte do ator.

A hipótese que gostaria de investigar nessa crítica aparece da tensão mesma que pode ser estabelecida pela intenção de formação numa universidade em nossa época e as razões éticas do trabalho dos atores que surgem na estética do espetáculo. As questões poderiam ser colocadas das seguintes maneiras: quais as implicações possíveis que aparecem no trabalho da cena, em sua materialização, que a conecta com realidades insurgentes de nossa contemporaneidade? Como uma cena que está dentro de um lugar de formação de atores pode ultrapassar as realidades pessoais e ao mesmo tempo se basear em uma ideia tão sutil quanto a de desnudamento? Ainda seria preciso perguntar a respeito do que pode significar uma encenação não realista com o desenvolvimento da noção dramática.

A meu ver, uma das hipóteses sobre a encenação pode ser reconhecida no que Raymond Williams traça sobre uma das potências do romance que vazou para a cena dita naturalista de Stanislavski, reconhecível em seus cadernos de ensaios das encenações de Tchekhov. Segundo Williams, no romance está presente um recurso técnico que ele nomeia como “acúmulo de detalhes” para a expressão dos sentimentos em sua estrutura total, recurso este que teria sido cooptado pelo mestre de teatro russo. Williams se refere a um “hábito do naturalismo” em que os personagens têm sempre algo a fazer. Mas o fato é que as ações (como fumar, calçar sapatos etc.) não estabelecem um vínculo causal com o texto dramático, insinuando assim todo um universo de possibilidades invisíveis (ou virtuais, se quisermos) do texto. Na cena de Stanislavski, este “hábito do naturalismo” mostrava um paradoxo da encenação naturalista em que o que o que é visível e diretamente expresso é um negativo do real que não se realizou, nos levando a ver a expressão cênica como um mundo concreto.

A operação da direção de Celina é ao mesmo tempo análoga e inversa a esta potência que Williams reconhece no naturalismo. Por um lado, se vale do acúmulo do romance em sua encenação não realista, tanto pela dimensão do elenco quanto pela profusão de partituras individuais que realizam. Por outro lado, as ações dos atores não mostram o acúmulo habitual de detalhes daquilo que consideramos como o real. O que se vê formalizado é uma espécie de síntese dos sentimentos como ações psíquicas concentradas na representação dramática.

Foto: Carlos Biar.

A ideia que acabei de mostrar se deve em uma medida à oportunidade de acompanhar o trabalho de Celina ao longo de sua carreira profissional em sua companhia Studio Stanislavski, que, certamente está ligada à sua atuação pedagógica no ensino profissionalizante da CAL durante os últimos 18 anos em que realizou 53 espetáculos com os atores-estudantes. Nos espetáculos do Studio aparece um barroquismo, por assim dizer, para nos referirmos aos acúmulos de cenas montadas por meio de camadas. A direção, no caso do Laboratório, se confunde com o trabalho didático e nela aparece a figura do diretor-pedagogo que é bem diferente da figura do diretor de espetáculo. A dimensão pedagógica exige uma abordagem bem diversa já que a obra está ali para receber (como uma espécie de receptáculo), não está na frente, é um arcabouço para sustentar todas as pequenas obras (não no sentido de menores!) dos atores. Quase podemos dizer que neste caso a obra do diretor funciona como veículo para as obras dos atores. O que não significa que tenha menor valor artístico, é apenas diversa. Esta é uma qualidade que aparece quando os professores, como no Instituto CAL, são profissionais atuantes nas artes cênicas.

Nesta direção é que se coloca a ideia de um espetáculo itinerante para o Laboratório. Em 1991, Celina criou o espetáculo itinerante Ophelia by Hamlet, depois de ter trabalhado como assistente de Roberto Bacci, na Itália em 1988, num espetáculo com estrutura semelhante, e desde então vem estudando esse tipo de estrutura. No caso de Laboratório Karamázov, a itinerância surgiu de dois fatores, segundo Celina. O primeiro tem a ver com a decisão de ter 50 atores em cena, o segundo, determinante, a beleza do novo espaço do Instituto CAL com as suas pedras à vista e a estrutura que possibilitou a criação de uma espécie de calvário, formato tão caro ao imaginário dostoievskiano e sua aproximação do sofrimento e redenção por meio da figura do Cristo.

O aproveitamento do espaço na estrutura itinerante implica no fato de que o público frequenta o lugar do observador que está na mesma instância do drama encenado. Uma das motivações possíveis para os recortes explorados pela recepção, seja nos momentos em que oferece imagens paralisadas do coro vivo, seja nos momentos em que as cenas acontecem dentro das salas do espaço em que o foco é mais evidente, é como a escolha de um “ponto notável ou singular”, semelhante ao do afeto produzido pelas fotografias – posição que tensiona para o observador ao mesmo tempo, o distanciamento e a imersão, a reflexão e a implicação no momento presente.

Um dos pontos que ergue minha hipótese é a organicidade interrompida do percurso que, por um lado comanda a ascensão da encenação no espaço e, por outro lado, se dá como um disco arranhado com idas e vindas, entradas e saídas de determinados lugares, como em uma sala no pátio inferior, ou entre as escadas e a sala da revelação de Smierdiakóv. Acredito que o público-observador teria ainda mais proveito de tais interrupções se não estivesse sendo conduzido nesses momentos pela fala incisiva da diretora, e pudesse lidar com a situação dentro do imprevisto que tais cenas demandam, como ter que se afastar ou se aproximar dos atores num manejo com o que acontece no presente.

Nos termos de partituras como revelações psíquicas, ou de uma estética que privilegia o desnudamento dos atores, é possível observar que mesmo na situação de coro, o que se vê é uma sutil mostragem de multidão, na medida em que os atores trabalham composições individuais mínimas, quase invisíveis. A ideia de multidão em contraponto com a de massa, a meu ver, colabora para uma perspectiva política das manifestações de conjunto que o espetáculo formaliza.

Esse é um traço não menos importante de uma dramaticidade que potencializa partituras-mestras como exibição de sentimentos interiores notadas com precisão na realização do Dimitri Karamázov de Pedro Wilson que aparece como um Cristo avessado, selvagem e digno de nossa compaixão, ou da racionalidade do Mikhain Rakhitin de Nelson Marra e a clareza da individuação da Gruchenka de Marcela Rebel, que nos faz ver as razões do comportamento histérico da Catierina Ivanovna de Helena Panno. O que nos é oferecido por Amanda Brambilla com sua Lisa, apaixonada por Aliosha, é como um desejo eruptivo de se deslocar em meio a uma impossibilidade. Stefania Ottoni realiza a materialização da histeria sem excessos convencionais, assim como o que Paloma Carpi faz com o sexo em sua Fiênia, numa transposição do que está em jogo em todo um regime que vê punitivamente a luxúria de sua patroa, a prostituta Gruchenka.

A intermitência entre percurso e interrupção é favorecida ainda pela cena fantasmática e claustrofóbica em que se apresentam as ex-mulheres mortas do patriarca Fiódor Karamázov. De algum modo, a ideia do fantasma se desenvolve no espetáculo, quase como algo impregnado e que cria uma ambiência ao tema de seu assassinato. Este ambiente se insere na imagem redentora do Cristo materializada no conflito do Aliosha de João Rafael Schuler e na semelhança selvagem, mas ainda mais contida da corporalidade do Fiódor de Gustavo Yamada que rosna em silêncio, quase ele mesmo como um ícone religioso, revelando os profundos laços que ligam os personagens do pai e dos filhos (respectivamente Dimitri e Aliosha) construídos por Dostoiévski. O fantasma também se materializa nos corpos estendidos em cruz no chão, assim como no horizonte que se abre pela projeção do quadro da Santa Ceia sobre os atores. Ao mesmo tempo em que se descortina um ao longe, este é o momento escolhido para anteceder a notícia do assassinato de Fiódor (ele mesmo em vida é a razão do calvário de todos), que pode ser vista de um ângulo problemático, com uma visão de cima, meio truncada, que requer um esforço do observador. A fragilidade que aparece aqui não está na difusão de ângulos de visão problemáticos, mas em sua constituição pouco audível que parece não dar conta do fato como forte elemento da dramaturgia em questão no espetáculo.

A vida como calvário (síntese da imagem dramática) aparece belamente transposta na cena de tensão imóvel de toda a família do Capitão Snieguirióv com atuações precisas e imagéticas de Hélio Souto Jr, Julia Tavares, Andressa Petry, Beatriz Pedroso e Caroline de Assis. Como um conjunto escultórico, os atores proporcionam a consciência do tempo em curso na cena e assim, o modo como fruímos as obras.

Foto: Carlos Biar.

Acredito que tal sensação seja possível pela precisão, pelo entendimento da relação dramática pautada pela concepção de partitura psíquica que não deixa espaços para pieguismos.

Os exemplos seriam muitos ainda como a arriscada partitura de Fábio Lyra para seu personagem (este mesmo em risco por sua posição de amante de Gruchenka), o momento decisivo que nos apresenta a loucura contida do Smierdiakóv de Renato Ribone, a beleza e compaixão do menino judeu de Jessica Leiras, a generosidade num lugar de analista que emprega Ana Christina de Andrade como Anna Dostoievskaia e as pontuações musicais de Rafaella Guttierrez. É importante dizer que a dedicação da equipe de professores envolvidos com a montagem torna-se fundamental e aparece no trabalho de preparação vocal realizado por Rose Gonçalves e na preparação musical de Regina Lucatto. Qualquer apreensão de diferenças entre os atores no que diz respeito às questões de representação, voz e também nos ajustes das vozes cantadas deve ser tratada como um estímulo ao trabalho contínuo sobre a arte do ator, o que me parece ser encarado positivamente pelo grupo e pela direção da universidade. Pelo menos, é assim que a crítica se coloca com um espetáculo que materializa tantos elementos importantes para a constituição de uma teatralidade que traduz (no sentido de criação) uma linguagem dramática junto à do romance, que procura por suas lacunas, pelos seus aspectos de dizer das diferenças e de suas continuidades.

Ainda considero, neste sentido, importante atentar para o fato de que o Instituto CAL se localiza em uma região que congrega fronteiras da cidade. No bairro da Glória, reconhecidamente um lugar de trânsito entre zona norte, centro e zona sul está sendo articulada uma rede de espaços artísticos privados que têm a intenção de se aproximar de seu público, como prova a abertura para apresentações que alguns destes espaços privilegiam. Inclusive, o início de Laboratório Karamázov acontece ainda na rua e foi possível presenciar a reação de um pequeno grupo de moradores do prédio localizado em frente. Eles gritavam algo como reconhecimento de uma palhaçada, nitidamente querendo convite para a festa e resistindo ao acontecimento. Ora, quase uma beleza ao ligarem os atores aos palhaços de circo, talvez mais reconhecidos por mimetizarem comicamente os comportamentos sociais. Bem-vinda a reação dos vizinhos que se tornaram parte integrante do acontecimento, dando a ver a comicidade que se instaura no calvário das relações familiares, mesmo em Dostoiévski.

Dinah Cesare é teórica do teatro, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na Linha de Pesquisa Poéticas Interdisciplinares e mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

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