Investigação do teatral e conhecimento do amor

Crítica da peça Eu, o Romeu e a Julieta dirigida por Emanuel Aragão

31 de março de 2014 Críticas
Adriano Garib e Marina Provenzzano. Foto: Divulgação.

Nota: esse texto foi construído com as vozes, por vezes citadas sem aspas, de Emanuel Aragão e Liliane Rovaris a partir de uma conversa realizada durante a temporada da peça no Mezanino do Espaço SESC em Copacabana em fevereiro de 2014.

Os trabalhos em teatro apresentaram formas diversas de lidar com os textos clássicos. Já me detive, em outros momentos, a refletir sobre certas estruturas que ora convocam os textos assim chamados, ora investem em uma operação que almeja uma espécie de atualização da obra. Esta última, na maioria das vezes justamente pelo pensamento predominante de que a vocação mais importante dos trabalhos em arte é a produção de sentido, realiza mais equivalências baseadas em seus contextos atuais e menos um novo modo de olhar para o imaginário produzido pela obra de origem. Talvez uma equivocação sobre a noção de origem. Não é possível desenvolver essa questão no espaço deste texto e nem é minha intenção, mas alguns pontos poderão ser levantados. O que procuro pensar neste texto diz respeito a possíveis percepções que surgem com a elaboração dramatúrgica da peça Eu, o Romeu e a Julieta, tanto nas intenções que pude perceber como projeto de criação autoral do texto falado ou em off, quanto em sua escritura cênica desenvolvida no espaço de apresentação.

Gostaria de pensar a ideia de um texto clássico como um material original constituído por incompletudes de tal ordem que produzem uma profusão de frestas, espaços que convocam sempre novos modos de percepção. Se os sentidos proliferam em abismo, por que não pensar também que, em outros regimes temporais (no moderno e no contemporâneo), este abismar não poderia produzir algo diferente do que entendemos como sentido em seu justo termo? O drama de Shakespeare se mostra como uma singular tragédia, e poucas vezes parecemos nos dar conta disso, porque aniquila o amor juvenil de seus protagonistas, nos tocando pela impossibilidade de um mundo gerado pela inocência daquele amor à primeira vista entre duas quase-crianças. A meu ver, aqui aparece uma importante fresta do texto original que é esta inocência interrompida. Sua própria interrupção cria um espaço que, em termos de força poética não pode ser deixado de lado (como se não existisse) e nem pode ser tapado, entupido com alguma coisa que enfraqueça seu teor.

A dramaturgia realizada por Emanuel Aragão enfrenta esta fresta com uma tensão que perpassa toda a encenação ao colocar como narrador da história de amor uma criança de 12 anos. Já de saída existe um atravessamento de vozes na construção do texto dramatúrgico composto por cenas previamente escritas por Emanuel e outras elaboradas em grande medida durante os ensaios com os atores e a assistente de direção Liliane Rovaris. No teatro feito na contemporaneidade, a função da direção, a direção do olhar e o trabalho de escrita estão propositalmente em experimentação, fazendo parte do jogo cênico, tanto quanto se pode pensar sobre sua própria feitura. Um impulso que instiga um modo mais operatório e autoral na criação textual aqui é que seu autor/diretor – talvez uma característica deste espaço de interseção – elabora seu processo criativo por meio de imagens mentais, indícios dos personagens que conferem certas funções para cada um deles e também para cenas que surgem antes de qualquer pegada mais racional de lida com o trabalho de mesa/pesquisa do texto original, das diversas traduções, ou mesmo dos ensaios, diferenciando assim os mecanismos de produção de dramaturgia ao longo do processo do que seria realmente a sua finalização assinada.

A peça inicia com um prólogo em que o menino Antonio Rabello fala diretamente ao público seu drama particular. Ele conta que seu pai havia saído de casa, por uma razão que desconhece, para dormir no sofá de seu tio. Sua mãe disse que o pai voltaria antes do natal, mas já é fevereiro e ele ainda não voltou. O pai lia muitos livros para o menino, mas costumava não terminar as histórias e no dia em questão estavam às voltas com Romeu e Julieta. O menino, encontrando um modo de lidar com aquele afeto, nos diz que vai desenvolver esta história do seu jeito e procurar por um final contando tudo ali na nossa frente em seu mundo das histórias – talvez para que possa encontrar os porquês daquilo tudo. A figura de bela inocência de Antonio em seu sofrimento pela separação dos pais, na medida em que perpassa a peça como narrador e muitas vezes como interventor explícito do desenrolar dos fatos, cria uma tensão que imprime e exige do espectador uma dança entre a percepção do afeto amoroso e aspectos mais propriamente fabulares.

Antonio faz parte da máquina de funcionamento da dramaturgia como uma voz do autor, não só na condução dos sentidos da fábula amorosa pelo que diz, mas também pela colocação de objetos, da trilha sonora e de desenhos luminosos. Se esta instância pode ser apreendida como uma linha racional da encenação (e assim ela se propõe), pode ser percebida também como uma produção de afeto pela presença daquele menino de 12 anos ali construindo em seus vazios, pelo esforço de uma fala de esclarecimento e ao mesmo tempo afetivo-poética que tenta lidar com a falta do pai, ou como peça funcional que compõe os objetos e índices teatrais, ou simplesmente sentado observando a ação dos outros dois atores.

Antonio Rabello, Marina Provenzzano e Adriano Garib. Foto: Divulgação.

Nesta operação reside um dos graus ou camadas de complexidade da dramaturgia de Emanuel, na medida em que, para além de partir de um material original, delineia um percurso de fábula-montagem, como nos aponta, por exemplo, Jean-Pierre Sarrazac citando Brecht do Pequeno organon em O futuro do drama:

“A fábula (…) não corresponde apenas a um desenrolar de acontecimentos retirados da vida comum dos homens, tal como se pudessem ter acontecidos na realidade. São procedimentos ajustados nos quais se exprimem as ideias do inventor da fábula sobre essa mesma vida.” (SARRAZAC, 2002, p. 77)

É possível compreender e sentir ao mesmo tempo o discurso do narrador-menino juntamente com suas ações de contrarregragem na construção do espaço teatral por meio da tensão que se apresenta entre o pensamento da dramaturgia/encenação e sua figura encarnada de afeto-amor-infantil. Este processo entre a dramaturgia, a cena e o espectador se dá de um modo que o último, muito além de apreender uma história, entra no que Sarrazac chama de “inteligência da montagem”, sem, contudo, operar distinções absolutas entre razão e afetos.

A dramaturgia coloca deste modo sua questão – a de pensar as possibilidades das relações amorosas entre os amantes, entendendo como amantes, não apenas o par Romeu e Julieta, mas todos os indivíduos atravessados pelo amor. Mas se o olhar sobre o amor é encaminhado pelo menino, como nos diz o título Eu, o Romeu e a Julieta, tal escolha, a meu ver, revela um posicionamento, não necessariamente de defesa de uma verdade como tomada de posição, mas sim uma construção de subjetividade alicerçada por um olhar particular que, no caso, é a própria convenção teatral. Podemos dizer também que se trata de um eu que olha duas definições possíveis de Romeu e de Julieta. Sim, pois os artigos definidos que antecedem os nomes das personagens dramáticas shakespereanas promovem imediatamente uma escolha, um golpe em qualquer tentativa de pensá-los como essências ou como portadores de características universais.

Esta ideia dramatúrgica alicerça o trabalho desenvolvido pelos atores Adriano Garib e Marina Provenzzano que investem na construção de personagens, mesmo que com paradigmas de atuação diferentes em cena – elemento criador de um problema poético que vai ao encontro do percurso da Cia das Inutilezas dirigida por Emanuel. A Cia. surgiu em 2007 no formato de um núcleo de pesquisas, visando os estudos e práticas experimentais relacionadas ao cotidiano atual, ao teatro contemporâneo e ao espectador. Existe uma busca sobre o que denominam de “detalhes mínimos” que possam representar as articulações em torno do que entendemos mais prosaicamente como humano. Este termômetro fez com que desenvolvessem uma série de experimentações sobre a noção de desconstrução de personagens nas peças da Cia. A tentativa nesta peça é diferente: partir para uma investigação dos limites ficcionais no teatro permitida pela figura do narrador que, se por um lado cria fragmentações, por outro lado junta o que foi recortado sem necessidade de transições dramáticas e dando o aval para a construção da ficção e de personagens. Assim a dramaturgia experimenta as possibilidades de criação de instâncias, de índices teatrais, não somente pelos personagens, mas pela trilha sonora e pelo desenho de luz, construindo teatro a partir de um substrato fortemente referenciado e histórico, como o de Shakespeare.

Na peça, Adriano Garib vive Pedro, um ator que desde a descoberta da tragédia de Shakespeare dedica-se a procurar uma atriz que seja a Julieta esperada. Abro um parêntese aqui para pensar esta composição-clichê da dramaturgia, ou recurso de metateatro, mas que também (e não por acaso) abre possibilidades de efeito de real se colocadas em outros dispositivos. No filme A pele de Vênus (Venus in Fur) de Roman Polanski, Vanda (Emmanuelle Seigner) é uma atriz que chega na última hora para uma audição da peça homônima de Leopold Sacher-Masoch, ninguém menos que o responsável sobre o polêmico termo masoquismo. O diretor da peça, Thomas (Mathieu Amalric) em princípio irrita-se e não dá o menor crédito para aquela mulher meio estranha, mal vestida para o papel – figura inadequada. Mas no decorrer da ação, toda passada dentro de um teatro, ele se rende totalmente à moça e Polanski nos diverte com o diretor suplicando escravidão à Vanda. Não existe a menor transição dos estados do diretor, a não ser a convenção teatral da representação da atriz em sua primeira fala. A convenção teatral no dispositivo-cinema abre o lugar do misterioso na imagem do real.

Garib nos oferece uma construção aprimorada de um personagem que consegue reunir uma série de clichês de fragilidades e atrapalhações masculinas – como uma radiografia de fluxos de afetos internos retidos que desemboca em falas e ações. Uma das inspirações da dramaturgia é Fragmentos de um discurso amoroso de Roland Barthes, livro que se propõe a resgatar aspectos desgastados do discurso amoroso que o tornou um instrumento solitário, algo que embora “seja falado por milhares de pessoas” não encontra sustentação nos meios da ciência, do conhecimento ou da arte, como nos diz Barthes. A dedicação ao detalhe em que se implica o amoroso de Barthes (ou à sutileza no caso da Cia.) parece encontrar tradução nas pequenas ações titubeantes de Garib. Assim também como na ficcionalização – posta nos detalhes do olhar – que a personagem Ana faz de supostos encontros entre Romeu e Julieta ou entre os personagens-atores que ela narra. A Ana vivida por Marina, mais pragmática do que romântica, é uma atriz que encontrou alguma projeção protagonizando comerciais de shampoo para a televisão e que com o convite de Pedro vê uma oportunidade de fazer teatro. Sua atuação segue um registro naturalista numa investida de presença que não mostra evidências de aspectos de construção, mas que ganha força pela simplicidade e pelo desejo do verossímil. A síntese amorosa parece se construir, e não tentar se resolver, por meio das diferenças dos personagens, não oferecendo para o espectador motivos plausíveis estampados em causalidades que levem ao apaixonamento dos dois. Mas será que existem motivos plausíveis para o amor e a paixão?

Adriano Garib, Marina Provenzzano e Antonio Rabello. Foto: Divulgação.

Os vídeos na peça, que em um primeiro momento mostram a personagem Ana (e a graça é que seu meio é o televisivo) antes de sua entrada em cena e que mais adiante mostram momentos dos dois pelo bairro de Copacabana, rejeitam as experiências do “ao vivo” no teatro e funcionam como comentadores do drama romântico, ao mesmo tempo em que o constroem com todos os seus truques e quiproquós. A dramaturgia, no caso dos vídeos, não lida com a questão do real no teatro (“fetiche do ao vivo”, nas palavras de Emanuel), mas simplesmente tenta dizer que a tela é o fora de quadro convencionado pelos momentos em que os personagens saem de cena. A intenção é dizer que o menino não narra somente histórias, mas que narra o mundo ao narrá-las. Mas não seria o vídeo um modo de colocar pensamentos em imagens? Ou então mais precisamente como vê Philippe Dubois o filme seria um modo de tornar uma teoria sensível.

O vídeo é uma forma que cria possibilidades para que o espectador seja um produtor de modos de interpretar o mundo e construir conhecimentos sobre o mundo em correspondência com os sentidos, e mais explicitamente com a visão, por meio da tecnologia que está à mão. O vídeo ao final da peça não deixa de fazer uma correspondência com o propósito inicial do menino de criar o final da história do par Romeu/Pedro e Julieta/Ana. Essa correspondência cria uma certa circularidade na dramaturgia, mas uma circularidade talvez em outro nível – como uma espiral. O espectador fica convidado a espiralar também.

Referências bibliográficas:

BARTES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Martins Fontes, 2003.

DUBOIS, Philippe. Cinema, Vídeo, Godard. Cosac&Naify, 2011.

SARRAZAC, Jean-Pierre, O futuro do drama. Porto: Campo das Letras, 2002.

Informações sobre o grupo: http://www.ciadasinutilezas.com/

Leia na Questão de Crítica:

Crítica de Meu avesso é mais visível que um poste, de Emanuel Aragão, por Dinah Cesare: http://www.questaodecritica.com.br/2012/01/o-movimento-do-visivel/

Crítica de Um homem e três janelas, do mesmo autor, por Dinah Cesare: http://www.questaodecritica.com.br/2009/02/entre-o-ruido-e-o-esvaziamento/

Dinah Cesare é teórica do teatro, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na Linha de Pesquisa Poéticas Interdisciplinares e mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

Vol. VII, nº 61, março de 2014

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