O movimento do visível

Crítica da peça Meu avesso é mais visível que um poste

25 de janeiro de 2012 Críticas
Foto: Renato Magolin.

Uma das possibilidades mais instigantes para a crítica é o fato de que as obras proporcionam experiências materiais nas quais os conteúdos teóricos se movimentam e mostram suas evidências e seus desvios. Isso promove uma espécie de alegria que leva ao desejo da escrita, sempre insuficiente, mas na tentativa de se ultrapassar, ou seja, ultrapassar o crítico. Assim nos tornamos meio sobreviventes dos nossos conjuntos mal armados de referências, de escolhas e do idolatrado panteão das nossas memórias. Esse é um dos efeitos que a peça Meu avesso é mais visível que um poste provoca por meio de uma operação que se constitui por insistentes desconstruções de um lugar metafísico separado do mundo sensível. O modo ideal dessa desconstrução na peça se dá no confronto entre o âmbito da memória e uma visualidade de material sintético – o visível do avesso é uma coisa construída. De modo semelhante, a dramaturgia é uma estrutura do fluxo do pensamento que é colocado como coisa visível.

Em cartaz no Mezanino do Espaço Sesc Copacabana, Meu avesso é mais visível que um poste é o quinto trabalho da Cia das Inutilezas dirigida por Emanuel Aragão que também assina a dramaturgia. A peça dá a ver um final de semana na vida de um grupo de familiares e amigos em um sítio que acabou de ser vendido. O lugar pertenceu durante muito tempo à família e está repleto de lembranças. O motivo da ida ao sítio é recolher o que ainda resta dos objetos para dar lugar aos novos donos. Nesse contexto se desdobram as relações pautadas pelo olhar do outro que é o que nos forma, como revela a fala de uma das personagens, que constrói um refinado campo visual complexo na medida em que se mostra atravessado pelas temporalidades da memória. O título instala suavemente o convite para que os espectadores ativem a percepção do olhar que vê o que está visível. Mas coloca também uma contradição quando anuncia que o que compõe o campo visual da peça – o que os espectadores irão ver – é justamente a porção invisível das coisas – o avesso.

Um dos caminhos possíveis para a realização de uma proposta como essa seria uma composição cênica que apresentasse os fatos e as coisas balizados pela liberdade que é condição de toda e qualquer recepção e, assim, promovendo um movimento que se estabelece entre o que se vê (os meios materiais) e o que se pode pensar e sentir juntamente com eles. Não deixa de existir, nesse caso, um modo que preconiza a ideia de interior e exterior. Não que esse modo seja necessariamente ruim, mas é que a herança moderna da recepção dos objetos artísticos instaurou um fundo interpretativo para as obras que, muitas vezes, reduz suas possibilidades de sentidos. A construção em Meu avesso se dá por um modo diferente que expõe o interior do pensamento e das sensações dos personagens em um espaço quase nu – ao mesmo tempo interior e exterior – que oferece largas margens para nossas apreensões ali mesmo nos meios que constroem o evento. Tentarei fazer verificações a respeito.

A composição cenográfica no Mezanino, elaborada pela Cia das Inutilezas, invoca um efeito de tensão entre o que se aproxima do olhar – uma piscina de lona no centro direito, algumas cadeiras de praia, uma mesa na frente lateral esquerda com um laptop no qual os atores operam as músicas – e o que se afasta – ao fundo direito uma escada aberta, no esquerdo, uma mesa pequena com um forno elétrico e, ao lado, uma tela que toma toda a verticalidade do fundo do espaço. A dimensão da piscina a coloca como elemento importante do que virá à tona. Essa composição descortina um visível que se assemelha a uma vitrine de loja de objetos de praia/piscina que, ao mesmo tempo, marcada pelo teor do mínimo, amplia a sensação visual do espaço. O chão está coberto por uma espécie de linóleo amarelo claro que é como um sol invertido e tudo o mais é o vasto mundo que aparece avessado. O amarelo favorece um tênue reflexo luminoso na fisionomia de tudo o que se mostra. Assim a presença dos objetos e atores como âmbito do real se mistura com a sensação de que estamos diante de uma pintura em movimento. Isso revela a ideia de que não existem objetos puramente das artes visuais e desmonta as barreiras entre as artes. O olhar que é demandado do público é como o que escaneia uma superfície pictórica.

Os figurinos são parte importante também dessa composição na medida em que são roupas cotidianas de algodão em tons nude e branco com toques cromáticos de uma camisa preta, toalhas com cores quentes e escuras e ainda fazem saltar aos olhos a cor fechada e os florais dos belos maiôs das atrizes. O que é usado por Thiare Maia se transforma em um objeto à parte, como um pequeno jardim que caminha – um aspecto da personagem que a atriz oferece com a sutileza de seu modo de estar em cena, o que, algumas vezes, conduz o olhar do espectador pela superfície visual. Então a percepção faz um movimento que se abre em outras temporalidades da memória que podem ser convocadas a participarem do evento. O espaço interno da casa só aparece verbalizado e se dá a ver como um lugar escuro – a luz do local da ficção é produzida por um gerador movido à água – e os possíveis insetos, os acúmulos de poeira, mofo ou coisas do gênero que as casas vazias acumulam precisam vir à tona do lado de fora.

Foto: Renato Mangolin.

Uma primeira sensação da dramaturgia de Meu avesso é que ela desmonta a noção frequente de que uma imagem artística é um problema que só será resolvido quando se evidencia o que é obscuro nela. Para dar início à dramaturgia, Emanuel Aragão, utilizou dois diários – um com projeções e desejos e outro com avaliações de momentos vividos – escritos por pessoas que foram selecionadas em um anúncio de jornal que procurava por quem morasse sozinho na cidade do Rio de Janeiro e tivesse interesse em participar de um trabalho artístico. Nesta operação, Emanuel percebeu que muito do que leu se parecia com o que dizem os personagens de Anton Tchekhov. Esse caminho parece ter sido aproveitado com reflexão pelo próprio Emanuel que em Meu avesso parece deixar seu lugar de autor, que aparecia mais afirmativo em outros trabalhos que realizou com a Cia, e se entregou ao desaparecimento dessa figura como salientam Michel Foucault e Roland Barthes. A não ser pelo momento inicial da dramaturgia projetada na tela, o que se vê (escutando) é a multiplicidade de vozes que não estão pleiteando autoria. Um bom exemplo é o uso que se faz das piadas ditas por Arthur Schmidt – algo que por si só é aleatório e sem autor definido.

A já referida projeção da dramaturgia na tela se mostra justamente como pensamento polissêmico, como pluralidade tanto das vozes dos personagens, quanto o que seria o próprio movimento do pensar revelando seu teor de construção e sua contradição. Se as falas dos personagens do autor russo são como figurações de suas solidões, aqui as projeções ainda dão conta de outras possibilidades de sentido para além do que é dito. Uma intenção de transparência, quase uma transubstanciação visual do desejo dos personagens tchekhovianos ao falarem. Desse modo, as palavras projetadas mostram sua potência de criação de imagens, sobretudo por que não é esclarecedora e funciona como uma escrita alfanumérica, cheia de interrupções.

Os atores falam suas próprias rubricas, mas sem sublinhar sua artificialidade, o que causa uma inusitada naturalização do artificial, uma escolha sutil que mostra a impureza temporal do contemporâneo construído por uma série de atravessamentos. A duplicação do personagem Pedro também contém essa direção, ou seja, mais de atravessamentos de tempos e de modos ligeiramente diferentes de lidar com um mesmo evento, ou dando a ver o tanto que cabe em uma ação. Mesmo que a dramaturgia aponte constantemente para sua própria construção – como quando insiste em que se tenha em conta que se trata de uma artificialidade, que nos lembre dos constantes acontecimentos exteriores à sala e à vontade dos que ali se encontram – seu efeito ao longo da peça parece ser menos o aspecto metateatral, do que o comentário sobre nossos modos de apreensão das coisas.

Os atores constroem um registro natural de atuação que coloca a própria questão da dramaturgia. O fato é que as contradições, a espontaneidade, a graça natural do cotidiano, os sentidos abertos e as desconstruções estão presentes na atuação. Ela formaliza o irrestrito dos afetos, sobretudo, pela ausência de qualquer tonalidade que arrogue verdades. Penso que este é um importante diferencial da encenação. Não existem afirmações, apenas simples incertezas e delicadas nuances como as de Liliane Rovaris, Thiare Maia e Michel Blois. Em Arthur Smith, ainda aparecem certas possibilidades do abandono de si instaladas mesmo em sua dimensão física. Carolina Bianchi oferece contraponto de uma rigidez suave. Os atores são sujeitos maleáveis e se relacionam. O modo como Rossini Viana Jr. e Gabriel Pardal realizam o diálogo final – ótimo e inusitado texto – transfigura e desconstrói prazerosamente a situação sem deixar que se chegue a nenhuma espécie de clímax. Isso dá a impressão que tudo o que nos afeta vai continuar em movimento.

Dinah Cesare é Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na linha de pesquisa Poéticas Interdisciplinares, é mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

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