Ao redor da sala de estar

Crítica da peça As horas entre nós, do grupo Dragão Voador Teatro Contemporâneo

21 de julho de 2013 Críticas
Foto: Paula Kossatz.

A peça As horas entre nós, que esteve em cartaz no Espaço Cultural Sérgio Porto, provocou minha percepção principalmente pelo cenário, de concepção de Joelson Gusson. Junto com Diego de Angeli, a dramaturgia assinada também por Gusson parece se calcar na estrutura espacial proposta pelo cenário, a partir do qual extrairei algumas possíveis leituras desse trabalho, que buscou ser ele mesmo uma releitura de Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, com ecos inevitáveis do livro e filme As horas, de Michael Cunningham e Stephen Daldry, respectivamente.

O público no Sérgio Porto se depara com um círculo estofado, formando uma espécie de grande sofá em “u”, que dá as costas para a plateia. O círculo se fecha com um aglomerado de móveis que, face à plateia, fornecem a ambiência de uma sala de estar, domínio por excelência da dona de casa burguesa, a ansiosa e atarefada Clarissa. Como se visualizássemos uma espécie de relógio à nossa frente, vasos de flores de plástico, conforme veremos adiante na narrativa, serão colocados nas posições de 3 e 10 horas. Um último vaso, mais à frente da história, será colocado na posição das 12 horas, com as flores compradas pelo marido de Clarissa, o burocrata militar Ricardo (interpretado por Leonardo Corajo). Mais significativa que o plástico das flores — que indicam a artificialidade kitsch da sala de estar burguesa —, a centralidade das flores do pai de família (no meio-dia do relógio) parece dignificar o lar pela patente do Estado, dentro do contexto do milagre econômico brasileiro.

No entanto, para além de um espaço da convenção e da ilusão social, o círculo de As horas entre nós demarca principalmente um espaço ritual. Dele, os atores entram e saem de cena de maneira algo forçada ou, no mínimo, peculiar, pois as entradas e saídas desse círculo se dão apenas em dois pontos, obrigando os atores a um trânsito incômodo e fortemente demarcado no palco. Sempre indo e vindo por essas duas saídas, os atores parecem ressaltar a densidade e a imantação simbólica do círculo da sala de estar, indicando quase que ritualmente sua entrada e saída desse espaço. Nesse círculo, o passado e o presente se misturam, os atos constrangidos denunciam afetos latentes, as diferentes realidades concretas dos personagens se cruzam, como se a sugerir um plano não histórico e simultâneo que atravessa física e subjetivamente todos os personagens em jogo, ontem e hoje. O fato de casais como Ricardo e Clarissa, Septimus e Lucrécia, partilharem da mesma sala de estar em planos de realidade supostamente diferentes (que frequentemente se cruzam), faz com que o círculo seja uma espécie de centro teatral, fulcro de experiências dramáticas diversas e sobrepostas. Uma sala onde ocorrem igualmente embates do presente e festas do passado.

De uma maneira geral, o cenário em círculo de As horas entre nós parece incorporar um esforço de memória. O que é a memória senão uma tentativa de se acercar de um sentimento, valor ou pessoa, de algo que é extremamente precioso, porém altamente perecível? O sofá de Clarissa demarca um espaço circular em que, ao mesmo tempo, testemunhamos o resgate de um passado pungente e a própria morte desse passado. Dentro desse círculo, a inocência e as ideologias morrem, os amigos e os amores morrem, mas ainda restam as horas entre nós. Talvez seja o peso dessas horas que provoque a morte e a angústia dos poetas, o retorno e o fracasso dos amantes arrependidos e, no caso de Clarissa, os mais desesperados planos de festas. A memória, nesse contexto, oscila entre a denegação de um presente adverso — caso de personagens como Clarissa e Lucrécia —, e a abertura ao dilaceramento provocado pela passagem do tempo, no confronto do passado com a atualidade — exemplar em personagens como Pedro e Septimus.

Tal oscilação entre essas tendências da memória parece se ajustar a uma certa topografia cênica, que estabelece planos expressivos diferenciados dentro e fora do círculo, motivando uma distinção de traços dos sujeitos em jogo. De fato, há personagens cuja ação se dá eminentemente dentro do círculo — espaço em que detecto a denegação ou a manutenção de aparências —, e personagens cuja ação e simbolismo se desenrolam fora do sofá, nas cercanias ou margens do círculo burguês e quiçá do próprio drama.

O interior do círculo, a sala de estar, é por excelência o mundo de Clarissa e, em certo sentido, de Lucrécia. A despeito de flashbacks e lembranças desestabilizarem o imaginário burguês (conforme vemos na própria projeção que inicia o espetáculo), ali se dá a manutenção um tanto desesperada da aparência, com flores de plástico perfumadas, carpete roxo, figurino kitsch (especialmente no caso de Clarissa)(1) e muitas visitas ao médico. Tais elementos sugerem uma atmosfera de simulação de aparência e cegueira deliberada. Exemplo disso são os enormes óculos e boinas utilizadas pela Lucrécia de Cristina Flores, quando insiste em mais uma inútil visita de Septimus ao médico, ou quando compulsivamente come bombons de costas para o público. Na mesma medida, o corte de cabelo da Clarissa de Cris Larin faz com que o personagem constantemente ajeite os cabelos que insistem em cair nos olhos, ao passo que o salto alto um tanto desproporcional lhe confere uma caracterização frívola e falsamente sofisticada. Nesse sentido, os adornos e roupas estão ali como uma tentativa de mascarar algo, reverberando o próprio círculo cênico que se fecha em si mesmo, num mundo protegido e artificial.

Foto: Paula Kossatz.

O desempenho de Cris Larin me sugeriu um outro aspecto desse círculo interno burguês: a atriz caminha em saltos excessivamente altos, sobre um tapete fofo. É inevitável reconhecer-lhe uma certa debilidade do andar. A atriz caminha como em pernas de pau, exibindo um andar não apenas afetado, mas sobretudo obstruído, travado. Nesse sentido, Clarissa se equilibra na corda bamba da aparência, da mesma maneira que Lucrécia se agarra desesperadamente à saúde mental do marido, apesar de sabermos desde o início que Septimus recusa qualquer tratamento. Penso que, nessa perspectiva, a crise já está instalada nesse mundo fechado ao exterior, a despeito dos vários anteparos dos olhos (óculos, festas, médicos) que tentam bloquear o confronto com uma verdade inevitável. De maneira a reforçar essa ambiência de denegação à beira do fracasso, a iluminação vertical sobre a sala de estar (de Paulo César Medeiros) parece demarcar o isolamento e a alienação da estrutura circular, ao mesmo tempo em que cria frequentemente uma sombra no rosto dos atores, com especial destaque para um momento privilegiado em que o rosto de Septimus (Joelson Gusson) encara a plateia, logo antes de seu monólogo. Consequentemente, dentro da sala de estar, todos estão ameaçados pelas suas próprias sombras, e apenas o burocrata Ricardo não prevê a iminência da crise.

Por sua vez, a crise tem seus arautos. De maneira sintomática, eles dominam o espaço fora do círculo, provocando-lhe fraturas. Pedro e Septimus frequentam o limbo entre a hipocrisia social da sala de estar e a quarta parede do teatro, ou seja, os dois extremos da ficção. Nessa área da topografia cênica, uma espécie de conscientização determina o dilaceramento dos personagens, seja por amor, seja por angústia existencial, o que acarreta experiências totalmente distintas das de Clarissa e Lucrécia. Pedro parece um estrangeiro que possui a tímida esperança de resgatar Clarissa do grand monde. Aproxima-se do círculo social somente para atestar seu não pertencimento, sua distância do mundo de Clarissa. Já Septimus sente todo o peso mundano da vida com Lucrécia, de festas como a de Clarissa, e projeta-se para fora desse círculo, na direção do apagamento de si.

Os signos dramatúrgicos ficam bem mais diluídos para Lucas Gouvêa e Joelson Gusson, respectivamente Pedro e Septimus. Supostamente responsáveis pelas experiências subjetivas mais pungentes e profundas (e, talvez, mais desafiadoras), os atores contaram menos com a plasticidade de adereços e figurino, recaindo numa expressividade mais narrativa ou literária. Ao personagem de Lucas Gouvêa restaram a emotividade das lágrimas e a conexão com a juventude de Elisabeth, filha de Clarissa. Já a Joelson Gusson, fica a leitura da carta-despedida de Virgínia Woolf e o pequeno monólogo em que praticamente quebra a quarta parede teatral. A propósito desse fato, é interessante notar que nos discursos desses dois personagens podemos verificar certo didatismo: político, em Pedro, e existencial, em Septimus. Quando Pedro, na suposta condição de exilado, critica a postura sociopolítica de Ricardo, ou quando Septimus denuncia (quase literalmente em direção à plateia) a lama em que chafurda o mundo alienado burguês, senti como espectador um certo “dedo em riste” que busca suplantar o círculo ficcional e cênico, na direção da realidade extradramática. Se isso, por um lado, enfraquece a suposta trajetória dramática dos personagens, é igualmente certo que um singular efeito surge desses agentes das cercanias externas da sala de estar em círculo: eles falam mais diretamente ao público (especialmente no caso de Septimus), ou seja, são personagens que falam de um lugar de quase porosidade entre palco e plateia, entre realidade e ficção.

Por fim, penso que todos os personagens que compõem esse núcleo nostálgico de amizades podem ser vistos como vetores que atravessam a zona circular da sala de Clarissa. Septimus e Pedro, mais próximos um do outro, possuem, no entanto, trajetórias de sentidos opostos. O primeiro abertamente se dirige ao aniquilamento para longe do círculo, e o último parece fracassar ao penetrá-lo cada vez mais — afinal, Pedro se identifica à figura de Elisabeth, personagem feito de pura nostalgia e memória de um tempo irrecuperável, já que se parece fisicamente com Sylvia, um dos amigos falecido prematuramente (não à toa ambas são interpretadas por Carolina Ferman). De maneira similar, Clarissa e Lucrécia têm esforços emparelhados mas distintos — a anfitriã mergulha com cada vez mais afinco na vida burguesa, e a esposa de Septimus se encaminha para a epifania proporcionada pelo ato derradeiro do marido.

Assim, todos os personagens parecem cumprir modulações entre o dentro e o fora da sala de estar, encarnando tentativas que procuram lidar com a memória e com o peso do presente, “o peso esmagador de tanta coisa acontecida”, como escreveu Gabriel García Márquez em Cem anos de solidão. Ao longo dos anos e das horas, através de pressões históricas ou subjetivas, os amigos de Clarissa atravessam o tempo e reatualizam uma fraternidade, com todas as arestas e desencontros que o tempo apenas deixou explícitos. Entre a reunião de amigos regada a drogas e música no início dos anos 60, até os preparativos para a festa social em 1978, o distanciamento entre os indivíduos apenas se revestiu de instituições — os amigos agora são militares, exilados, loucos, donas de casa. A distância emocional e as horas são as mesmas. A memória, nesse sentido, se torna nostálgica por acreditar que as horas, tão vazias no presente, pareciam preenchidas no passado. Porém, elas permanecem com a mesma opacidade, que aparece sob a roupagem da utopia e do idealismo na juventude do passado, ou da nostalgia e da melancolia no presente.

Para superar esse esforço vão da memória, será preciso a experiência da morte, o legado de Septimus, para entender que as horas sempre estiveram aí. Ou melhor, aqui. Diante das horas, ou diante do impacto da irreparável perda delas — a morte, só nos resta fazer como Clarissa: “A gente precisa conversar…”. Sim, precisamos.

Renan Ji é doutorando em Literatura Comparada pela UFF, Mestre em Literatura Brasileira pela UERJ.

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