Autoral e polifônico

Conversa com o Grupo XIX de Teatro e o Espanca! sobre a peça Marcha para Zenturo

30 de outubro de 2010 Conversas

Por acasião da temporada do espetáculo Marcha para Zenturo, criado pelo Grupo XIX de Teatro e pelo Espanca!, Felipe Vidal conversa com os integrantes de ambos os grupos. A conversa foi realizada em setembro de 2010 no Espaço SESC. Participaram da conversa: Luiz Fernando Marques, Janaina Leite, Juliana Sanches, Ronaldo Serruya e Paulo Celestino (do Grupo XIX); e Marcelo Castro, Gustavo Bones e Grace Passô (do Espanca!).

Felipe Vidal – Acho que a gente pode começar falando de uma coisa mais objetiva sobre os grupos para depois entrar na história do espetáculo. Queria saber como é a sobrevivência dos grupos, como se dá o dia a dia, como acontece isso para vocês – individualmente e coletivamente?

Janaina Leite – No Grupo XIX a gente tem um contexto bastante específico que é o movimento teatral em São Paulo, que nos anos 90 abriu uma porta enorme de possibilidades pro teatro de grupo. Ainda com todas as restrições, dentro do cenário do país, acho que São Paulo tem uma realidade pra realização do teatro de grupo que é bastante singular. São 10 anos de trajetória e a gente se cola totalmente às conquistas do movimento em São Paulo. Tem a ver com a Lei de Fomento, com todos os editais que vieram depois; com a Lei de Fomento, sobretudo, que foi o que estruturou o grupo. Estruturou, criou um espaço, a gente se entendeu como grupo a partir da Lei de Fomento. O que significa esse entendimento sobre o que é ser grupo, o que é fazer um trabalho continuado, o que é ter uma pesquisa. Então, a gente hoje em dia tem essa força muito grande que é estar ligado a um espaço – o que potencializa muito nossas atividades não só internas, como possibilidade de interação, de receber outros grupos e atividades no espaço – e essa manutenção que vai se dando por esses editais públicos.

Felipe –Vocês conseguiram o espaço através do quê, de uma parceria, de um consórcio…?

Janaina – O espaço tem a ver com pesquisa do Hygiene. Foi uma sorte de alguma maneira. A gente começou a procurar espaços em São Paulo que pudessem ser assim, um lugar histórico, que fosse uma paisagem, que fosse um elemento de dramaturgia espacial…

Luiz Fernando Marques – Mas também nasceu muito de uma necessidade de dialogar com a cidade…

Janaina – Sim, sem dúvida…

Luiz Fernando – Acho que o fomento trazia isso, ele traz muito isso no seu bojo: o fomento para a cidade de São Paulo. Então, acho que os grupos de São Paulo começaram a pensar: O que eu faço? Como isso responde à cidade e não responde a uma platéia vazia numa “caixa preta”? Então acho que, não à toa, a gente foi parar na Vila Maria Zélia. Por uma questão da temática, do século XIX e de tudo que nos envolvia, mas também, como outros grupos de São Paulo, a gente foi atrás de um diálogo mesmo, que não se dá também só no momento da apresentação, se dá em toda a produção, se dá no dia a dia inclusive. É um grupo que tem vizinho MESMO. A gente trabalha aqui (indica com a mão) e tem gente morando em cima, do lado, na frente.

Juliana Sanches – E no próprio ato de habitar um lugar que tava fechado há quarenta anos…

Janaina – Ocupação mesmo…

Juliana – Um prédio público, que estava fechado, sendo usado como depósito…

Felipe – Mas isso partiu de vocês ou foi uma coisa da prefeitura?

Juliana – Não, não, partiu da gente.

Ronaldo Serruya – A gente “invadiu”. Foi uma ocupação que foi sendo legitimada, obviamente, durante o tempo…

Janaina – Pela ação…

Ronaldo – A gente foi tentando entender que caminhos eram esses, mas como os caminhos burocráticos eram sempre muito confusos – é um papel, serve, não serve, um dia alguém vai pedir, vai passar pra prefeitura – enquanto isso a gente foi revitalizando e devolvendo aquele espaço e re-significando ele tanto pra comunidade, pra própria Vila Maria Zélia – tinha pessoas que tinham nascido ali, tinham quarenta anos e nunca tinham entrado naqueles espaços – como colocando a Vila Maria Zélia nesse mapa cultural da cidade.

Juliana – Inclusive com a ajuda deles. Na nossa primeira entrada, foram os moradores que ajudaram a tirar os entulhos, a lavar. Foi tudo feito muito como coletivo. A “tomada”…

Luiz Fernando – E já fazendo o link com o Espanca!, acho que nos últimos dois anos o apoio da Petrobras – porque também houve uma mudança nesses editais, quer dizer, no nosso caso, do XIX, ganhamos o primeiro edital. Foi a primeira vez que saiu essa ideia da Petrobras e que abriram um edital específico para manutenção de grupos, durante dois anos contínuos. Nós, entre outros grupos, ganhamos esse primeiro edital e, na vez seguinte, acabou que foi o Espanca!…

Juliana – O nosso tá acabando o deles tá começando…!

Ronaldo – Eles agora vão sustentar a gente! (risos)

Juliana – Nós vamos mudar pra BH, agora! (risos)

Felipe – Bom, eu ia perguntar o porquê da junção dos grupos, já entendi tudo! (risos)

Gustavo Bones – Falando um pouco do Espanca!, BH também tem uma “tradição” muito forte de teatro de grupo. Tem muitos coletivos lá, uma coisa que o país inteiro também reconhece. Embora a gente não tenha uma política pública estruturada como São Paulo tem, a cidade vive de coletivos teatrais. É praticamente a única maneira de se fazer teatro “investigativo” em Belo Horizonte. Um teatro que não seja “comercial”, digamos. Então a gente fundou o grupo e viveu basicamente às custas de cachês de apresentações e leis de incentivo – de renúncia fiscal – que é, ou era no começo, a única maneira de se fazer dinheiro em Belo Horizonte com teatro.

Felipe – Mas lei estadual ou municipal?

Gustavo – Estadual e municipal, às vezes federal. E a gente acompanhou o processo de criação do Fundo Municipal e do Fundo Estadual de Cultura, embora a gente nunca tenha sido contemplado. Acho que a gente nunca nem pediu dinheiro nesses editais, nunca teve um projeto neles. Agora a gente começou um processo de articulação de um movimento político em BH também, junto com outros coletivos. Acho que isso também é importante falar, que a gente tem esse olhar pra política pública, pra uma forma de manutenção e de incentivo à cultura que não passe pela iniciativa privada. E agora, especificamente, pela primeira vez, a gente ganhou o edital da Petrobras, que vai manter a companhia por dois anos. E a gente nunca teve isso, sempre viveu numa instabilidade, sem saber como seria o próximo semestre. Então, a gente vai começar o projeto agora, que também inclui a abertura da nossa sede que, como os meninos falaram, buscando um diálogo com a cidade, a gente vai abrir um espaço no centro de Belo Horizonte, que também é um espaço que tava muito abandonado e a gente acompanhou no último ano, ano e meio, um processo de revitalização cultural e simbólico do centro da cidade. Então a gente tá indo agora pro centro dessa história.

Felipe – Bacana… E como é que se deu o encontro dos grupos pro espetáculo?

Ronaldo – Foi um namoro…

Marcelo Castro – A gente começou a se encontrar em Festival…

Juliana – Já tinha uma coisa de gostar do trabalho do outro. De assistir as peças e gostar e conversar.

Tem até uma história engraçada, que a gente pediu pra uma jornalista de BH, a Carol, pra apresentar a gente pra eles. A gente tava no Festival de Curitiba e pediu: “Apresenta eles pra gente…”. Se admirava e não se conhecia.

Ronaldo – Mas mesmo antes de ver os espetáculos já tinha isso de as pessoas chegarem pra gente e dizerem: “Ah, vocês precisam conhecer o pessoal de Minas”…

Gustavo – As histórias dos grupos são muito parecidas. Os meninos estrearam em Curitiba e a gente também. E a gente, quando foi pra Curitiba já sabia do “sucesso”que o Hysteria tinha feito há um tempo atrás. Então a gente também foi meio na história deles, sabendo como seria…

Felipe – Vocês foram com Por Elise?

Gustavo – É. Foi quando a gente estreou o grupo. E aí a gente se conheceu no outro ano quando foi estrear o segundo trabalho, os meninos estavam com Hygiene, também estreando o segundo trabalho. Foi aí que a gente se conheceu.

Luiz Fernando – Sem dúvida a trajetória dos festivais nacionais que também – falando de política – teve um retomada de uma maneira mais forte, foi o que fez a nossa união. A gente se encontrou em muitos festivais, praticamente em todos.

Marcelo Castro – É, mas depois teve um desejo muito claro e muito legal, também, eu acho, de se conhecer, mesmo. Os meninos primeiro, chamaram a gente pra um jantar, que é um projeto deles, que chama Encontros Antropofágicos, com objetivo de falar de teatro, de falar dos grupos…

Luiz Fernando – Teve o Acto 1…

Marcelo – Ah, é, depois teve o Acto 1 que é um projeto nosso que se chama Acto 1 Encontro de Teatro, que a gente chamou o XIX e Companhia Brasileira, de Curitiba…

Gustavo – Na verdade o projeto é com esses três grupos… (risos)

Marcelo – Agora a gente vai fazer o Acto 2, que é a mesma coisa…

Juliana – Os mesmos grupos…!

Marcelo – Os mesmos grupos.

Juliana – Continuamos, gente…!

Gustavo – Aí a gente fez o Acto 1, os meninos foram pra BH, a gente começou uma conversa e depois colocou no projeto doFomento [Lei de Fomento de São Paulo].

Juliana – É gracas ao Fomento… nesse Acto1 a gente teve vontade de verticalizar. Porque o Acto 1 foi muito legal, deu pra mostrar pedacinhos de processos. A gente tava começando o Arrufos, a Companhia Brasileira mostrou… e deu vontade de realmente ir pro trabalho. Ter alguma experiência maior, juntos.

Luiz Fernando – E prática, né…

Juliana – E prática, exatamente. Daí nós mandamos um projeto pro Fomento que nós fomos contemplados, que permitia a eles ficarem em São Paulo dois meses…

Gustavo – Quase três…

Juliana – Exato. Daí arrumamos as agendas, os buraquinhos, não foi sem parar, foram uns blocos, que juntou um tempo bom e virou um cena que foi o Barco de Gelo.

Luiz Fernando – Não sei se olhando de fora as pessoas vêem tantas semelhanças entre os grupos. Claro que existe admiração mútua pelas peças, mas acho que o que foi dando essa liga foi perceber o quanto a gente entendia a produção da cena de uma maneira muito parecida. Os dois grupos tinham três peças, todas elas inéditas, todas elas construídas colaborativamente, nessa dinâmica – com suas especificidades, que cada grupo tem… Tanto que eu posso dizer que não ouve um grande atrito, um desconforto, tipo: “Nossa, como tá sendo difícil entrar na do XIX! Ou o do XIX entrar na do Espanca!…” Existia uma identificação…

Marcelo – Eu acho que é uma identificação mais ética do que estética. Uma forma de ver as coisas, de entender o teatro…

Felipe – Eu imagino… Olhando de fora, eu já assisti dois espetáculos do Espanca! e três do XIX e entendo o que vocês dizem. Tem diferenças – que depois até quero saber mais – que são bastante claras, mas ao mesmo tempo não é estranho falar de uma junção. Tem uma afinidade possível, talvez, como vocês estão dizendo, seja mais ética…

Luiz Fernando – Até a divisão do trabalho mais banal. Do grupo todo estar envolvido, de não existir hierarquia dentro do grupo… Tanto que as coisas fluíam…

Juliana – É, foi até engraçado… tanto que quando chegou o momento mesmo desse encontro, a gente tinha muito medo porque era a primeira vez que a gente fazia isso, realmente trocar por um tempo com outro grupo. Então a gente tinha muito medo de impor alguma coisa e do lado deles, sinto que eles estavam na mesma “vibe”. Tanto que a gente ficou uma semana, assim, meio que se olhando… Pra ver o que podia realmente ser fruto desse encontro, que não fosse simplesmente convidei você pra fazer a minha proposta. Queríamos que essa proposta surgisse realmente desse encontro. Isso que eu achei que foi muito forte.

Gustavo – É, também não tinha isso da gente chegar com uma proposta – pelo fato de ser um projeto do XIX – nem do XIX chegar com uma proposta convidando o Espanca!. A ideia era que a gente fizesse alguma coisa desse encontro.

Juliana – Acho que foi isso que legitimou e mostrou a necessidade de virar um espetáculo, de ser um tempo maior, uma pesquisa maior, porque essa cena que surgiu realmente foi uma cena desse encontro. Sabe, foi fruto de todas essas pessoas reunidas…

Gustavo – O legal foi que acabou que se criou um terceiro coletivo, que é essa mistura…

Paulo Celestino – E foi uma lufada de ar. Porque as nossas histórias são muito semelhantes, tem toda essa afinidade; e os dois grupos viviam um momento em que algumas pessoas tinham saído. Também tinha esse fator de re-fortalecer e se reencontrar.

Gustavo – E a gente fez isso em 2008, segundo semestre, e estreamos o espetáculo no final do primeiro semestre de 2010. Então, na verdade, a gente ficou dois anos em processo. A gente fez esse exercício, parou, apresentamos em Minas como ele estava; no final do ano passado fizemos um seminário em São Paulo, e este ano o Espanca! mudou pra lá no primeiro semestre pra criar o espetáculo.

Felipe – E como foi essa criação? Pelo que eu percebo, assistindo os espetáculos, vejo que a maneira de criação dramatúrgica é diversa. Talvez o processo colaborativo seja alguma coisa em comum, de alguma maneira, mas é diferente. Então, como se deu isso pra vocês?

Janaina – Não sei do Espanca!, porque pra eles não teve essa novidade…

Ronaldo – Pra gente era a grande diferença, a maneira de trabalhar a dramaturgia…

Janaina – Muita… Era um momento que a gente tava precisando. A gente cumpriu um certo ciclo com o Arrufos. A gente escrevia sempre coletivamente os espetáculos. Eram sempre assinados por todos. E a gente tinha um questionamento sobre o que é o colaborativo, o que é que ele gera enquanto possibilidade de dramaturgia. Tem vários pensamentos sobre isso. O que isso gera de bom e de potente e o que gera de problemas. Então acho que pra gente era um lugar novo pra experimentar, que a gente não sabia muito como, tinha medo, porque a gente é muito autor, sempre teve muita propriedade, as nossas escolhas acabavam ficando muito. Como seria ter alguém assumindo essa palavra? Mas tinha muita abertura e muita vontade de experimentar esse lugar!

Juliana – A gente até brincava e dizia: – Traz alguma coisa só pra eu falar!

Paulo – Traz um texto pronto!

Janaina – Fazia leitura de mesa!!

Felipe – Isso a Grace que ia trazendo, né?

Juliana – Exatamente. E o legal é que vinham coisas e ao mesmo tempo eu sentia a Grace muito aberta pra isso – a gente continua dando pitaco da mesma forma…

Felipe – Imagino…

Janaina – Sempre muita opinião…

Luiz Fernando – É que o “macro” da coisa tinha nascido nesse primeiro momento. Com todo mundo, sem uma escrita. Então toda essa dinâmica do delay, do grupo que chega na metade, do Réveillon, da saída, do que isso transforma, do Tchecov… Então não era aquele tipo de processo em que chegou o texto e “Nossa!…” Tinham discussões tipo “Será que a gente dá uma profissão pra cada um?” Então pra mim – claro que nesse sentido eu não sou ator – foi muito tranquilo. Claro que existia uma diferença, mas nunca teve uma coisa tipo “Nossa, um texto!”

Juliana – Vinha um tratamento das ideias e aí dava uma unidade muito legal. Porque, ao mesmo tempo, a gente também sentia todo o desespero de não ter isso no Grupo XIX. No final das contas todos os nossos trabalhos tinham num primeiro momento, sei lá, três horas de peça. Até chegar nas duas horas, uma hora e quarenta, eram seis – antes oito – pessoas pra resolver, pra falar o que cai e o que não cai. E também o que eu escrevo tem um tratamento, o que a Jana escreve tem outro tratamento, e aí tinha que juntar tudo isso…

Felipe – Ainda tinha o público escrevendo junto com vocês…!

Juliana – Exatamente! Então tem uma coisa gostosa porque você sente essa abertura das ideias colocadas, mas vem com um tratamento único; com uma linha muito clara.

Gustavo – E no Espanca!, não sei o que você acha, Marcelo, mas eu vejo o [Marcha para] Zenturo como um passo “a delante”, um passo à frente, porque, não sei se eu posso falar isso, mas a gente não trabalha com processo colaborativo. A Grace sempre escreveu os nossos textos. No Congresso [Internacional do Medo], ela não tinha um texto pronto, mas foi ela quem trabalhou a situação, embora a gente tivesse criado os personagens, digamos, junto com ela. E no Zenturo a gente partiu do zero no primeiro momento com os meninos, foi a primeira vez que a gente fez isso. E depois tinha uma coisa… o fato de a gente estar morando juntos. Nós fomos pra São Paulo e moramos juntos, nós três, num apartamento. Então isso também fazia a gente estar envolvido em cada momento da criação da Grace, do texto, da palavra. Acho que a gente conseguiu…

Luiz Fernando – Vocês abriam o laptop e apagavam…!!! (risos)

Gustavo – A gente fazia atos terroristas de madrugada…! (risos)

Paulo – Trocavam umas falas, reescreviam…! (risos)

Janaina – Embebedavam a Grace…! (risos)

Gustavo – Não… Mas eu acho que foi a vez em que a gente esteve mais juntos no texto que a Grace escreveu.

Marcelo – E eu sinto que isso da gente ter ficado lá na Vila também, essa experiência que eles já tinham de ter essa sede tão em contato com a comunidade, com as pessoas. Acho que isso é modificador, gera outras coisas. Um lugar que é em São Paulo, tão distante das outras coisas, que você vai lá pra aquilo mesmo. A gente sempre trabalhou com espaços não nossos, sabe? Alugando ou então espaços cedidos, dividindo com outras pessoas. E eu sentia que isso também se vê no trabalho. Acho que foi um aprendizado nesse lado. Para além do espetáculo.

Gustavo – E teve uma coisa também que eu acho que os meninos já tinham vivido muito que é esse domínio que você tem, que tem a ver com o espaço e tal… mas quando a gente resolveu fazer a direção de arte do espetáculo, isso pra gente também era muito novo. Os meninos já tinham trabalhado com uma pessoa dentro do grupo, fazendo isso, mas pra gente fazer o figurino e bordar, costurar e colar era uma coisa um pouco nova. Embora a gente tenha criado e participado das criações, a gente sempre trabalhou com as coisas chegando. A gente no máximo monta. Mas essa criação diária, processual, manual, acho que foi uma coisa que o XIX trouxe, que pra gente vai continuar…

Luiz Fernando – Mas é verdade essa coisa de assumir a direção de arte, dividir, uma parte ficar com o cenário, outra parte ficar com o figurino, luz, foi muito – primeiro que a gente fez sem querer até, nem foi pensado, eram grupos mistos – foi muito gostosa essa troca, “Como é que você entende como é que o outro entende”…

Juliana – Foi uma loucura, não tinha tempo, não tinha dinheiro…

Luiz Fernando – Foi um mês antes que a gente decidiu isso…

Janaina – Se deu as mãos e “bora lá”!…

Juliana – Mas acho que deu muito certo. A gente tava numa harmonia, tava todo mundo com um foco muito claro, então ficou o menor dos problemas a gente ter que assumir isso. Ficou, claro, um trabalho muito maior, mas foi canalizado, foi o que a gente queria…

Luiz Fernando – A gente entendeu muito a peça nesse momento, a gente precisou conversar e verticalizar. É uma coisa que, de fato, tá na nossa prática, no caso do XIX isso sempre aconteceu muito. Eles falando me lembrei de uma coisa da crítica que saiu na Questão de Crítica, que ela fala muito da mistura dos tempos, do futuro e do passado, e eles falando da Vila… Outro dia assistindo a peça é que eu pensei nisso, de como a Vila, que é de 1917, e é uma Vila mesmo com 130 casinhas, igrejinha e moradores mais idosos e tal… A Vila é uma espécie de Tchecov dentro de São Paulo… Traçando um paralelo com a peca, você tem São Paulo que é essa cidade que se diz do futuro e você chega na Vila e é esse espaço de um outro tempo…

Juliana- Que parece que parou no tempo…

Luiz Fernando – E foi muito gostoso re-olhar a vila com os olhos deles. Depois da gente já estar lá há seis anos…

Felipe – Acho que isso é muito determinante. Aqui no Rio a gente não tem muito essa relação com a cidade. Em alguma medida, tem, em alguns lugares. Muito poucos. Tem, por exemplo, na Fundição Progresso alguns grupos que se desenvolvem ali e é muito efetivo o trabalho, bacana. Tem também, sei lá, o Nós do Morro… e quando essa relação acontece é muito bacana. Mas não é um pensamento muito daqui do Rio. Pra gente, acho que é um aprendizado interessante. Temos que pensar nessa perspectiva. E eu vejo que isso pro Fomento em São Paulo foi muito determinante. Se espalhar pela cidade e ter os trabalhos que são feitos, pulsantes.

Gustavo – Eu acho que teve um dia desse processo que… Primeiro queria falar esse negócio da direção de arte, que é realmente muito legal você estar em cena e daí eu olho pra aquele sofazinho dos meninos e penso: “Ah, a gente que foi lá um dia no Bela Teatro…” E a gente ia ensaiar, decidiu-se não ensaiar e ficar costurando, pregando, colando… os meninos imprimindo projeto do Fomento, a nossa produtora na rua comprando coisas na [Rua] Vinte e Cinco de Março, a Grace chegando com o texto, mudando cenas… Então, acho que aquele dia foi muito legal mesmo, que deu pra entender como que uma peça de teatro se constrói em todos os sentidos. No modo de produção, no modo de criação, nas liberdades que se tem, nos coletivos conversando, nas individualidades decidindo…

Juliana – E até chegar pro diretor e dizer – porque o Lubi [Luiz Fernando Marques] sempre quer ter ensaio e não importa!… E tinha muita coisa pra terminar, tinha projeto pra entregar, figurino costurando, cenário pintando, enfim, tava todo mundo ao mesmo tempo lá… daí nós olhamos pro Lubi e dissemos: “Não vai ter ensaio” Aí ele: “Tá bom, né… vamos fazer o quê…” Então tem isso, todo mundo lá, fazendo e cada um fazendo parte de alguma coisa.

Ronaldo – Não dá pra ser uma coisa só. A gente é tudo ao mesmo. As vezes dá uma sensação, queria tanto só ser ator, queria só aquecer e fazer, mas ao mesmo tempo dá uma propriedade outra. Isso tudo se cola à cena de alguma maneira. Saber que a gente colou, que a gente fez… e a gente tem pensar no Fomento, porque é o Fomento que vai nos permitir continuar essa história. Acho que quando a gente começa a fazer teatro a gente tem uma certa ingenuidade – eu tinha pelo menos – que ser ator era chegar três horas antes, aquecer e pensar na cena e tal… e hoje em dia você vai percebendo que tudo é. Quando você opta por um coletivo, construir uma história, todas as coisas são, pensar no espaço, pensar no vazamento, pensar: “Não, não pode pedir essa nota que ela não serve”… e a gente tá o tempo inteiro tendo que aprender a se produzir e a ser cada vez mais autônomo como artista. Por que a gente tem uma tendência como artista a dizer: “Não conheço, não sei…” A experiência da produção, por exemplo – a gente pretende assumir cada vez mais essa produção, porque tem o entendimento de quem tá dentro, porque a gente se representa melhor.

Marcelo – Porque isso é muito importante pra ser deixado pra ser deixado pra alguém de fora.

Juliana – E é muito difícil alguém entender a nossa lógica.

Felipe – Engraçado vocês falarem isso porque eu tinha pensado em perguntar uma coisa que pra mim é particularmente uma questão: a de pensar o papel do ator hoje em dia. E acho que vocês já estão respondendo um pouco isso, dizendo que é alguém que se posiciona em outras instâncias para além daquelas estritamente ali nas “quatro linhas” do trabalho do ator. E acho que isso se manifesta também esteticamente, isso se desdobra. O que vocês pensam do papel do ator hoje em dia? Para além disso que vocês já estão falando de ter que se colocar como artista.

Marcelo – Eu acho isso mesmo que a gente tá falando. Pelo menos sempre foi uma questão do Espanca!, dos meninos não preciso nem falar, que é essa, o ator é sim, um criador de tudo. Teve uma época que a gente assinava “ator criador”…

Gustavo – “Intérprete criador”…

Marcelo – “Interprete Criador”… Aí um dia a gente falou assim: “Gente! Não precisa!” A palavra ator já contém isso. Você não precisa acrescentar isso porque é e ponto, sabe? E quem achar que não é, pelo amor de deus!

Juliana – E acho que ainda mais em coletivos. E acho que tanto o Espanca! quanto o XIX têm isso de semelhante, é que nós fazemos peças de coisas que nós queremos dizer. E nós TODOS queremos dizer. Eu posso até dizer uma coisa completamente diferente da Janaina, mas aquilo me toca e me dá vontade de dizer tanto o quanto. Mesmo que sejam opiniões opostas. Mas que nos instiga a falar disso, a pensar nisso… Porque nós passmaos anos… essa peça mesmo nós estamos dois anos com essa ideia na cabeça. Todos os trabalhos são de processos, então o processo é muito importante. Pro processo ser importante, aquilo tem que me dizer respeito. Eu acho que principalmente em coletivos teatrais a autoria do ator tá – independente dele ter escrito ou não texto – tá ali, grudada.

Gustavo – Tem uma coisa que a gente sempre falou no Espanca! – e como isso vai amadurecendo com o tempo. De que a nossa preocupação como ator é de estar pensando o teatro. Além de estar pensando o mundo – que eu acho que também é uma função do ator – a gente tá pensando o teatro. Então a gente tem uma preocupação com a cena, com a encenação, com a plasticidade, com a trilha sonora, querendo construir uma obra.

Marcelo – E a preocupação de querer acrescentar algo a essa linguagem. Além do assunto que você tá tratando. Eu vejo muito isso de querer acrescentar algo. Acho que essa peça cumpre muito isso.

Juliana – A coisa viva da comunicação todo o tempo com a plateia. De ser vivo. De ser presente. De estar ali e estar ali é tudo.

Gustavo – E acho que além da peça de teatro, da arte teatral, também tem esse entendimento do fazer. Que tem a ver com a produção, com os mecanismos de fomento, incentivo e financiamento ao teatro…

Juliana – E nessas uniões políticas da classe…

Gustavo – Então a gente tá cada vez mais se embrenhando nesse entendimento de todo o processo teatral. Acho que isso que faz um trabalho ser autoral.

Luiz Fernando – Mas ao mesmo tempo eu sinto que quando a gente tenta colocar esses nomes: ator- criador, ou intérprete-criador, a gente tenta um pouco responder a uma dinâmica externa que vai muito contrária a isso. Primeiro que tem uma ambição nos coletivos – na maioria deles – que é a de ser ao mesmo tempo autoral e polifônico. Acho que essa é a grande loucura. Quando você pensa em ser autoral você pensa na questão do que está aqui dentro (aponta pra si mesmo), no que EU quero dizer. Mas ao mesmo tempo eu quero dizer e quero dizer em coletivo. E pra mim essa é a grande metáfora política pra uma cidade, pra uma nação, de que maneira as pessoas se sentem autoras e pensam: “mas eu vou fazer isso no coletivo” – senão vira uma imposição. Então, acho que quando a gente sai desse ambiente do coletivo, do grupo, aonde você cai é num lodo do inverso disso. O do “vou me servir de você” ou do “o que você pode fazer por mim”. Ou do: “Ah, assisti o seu trabalho e acho que você pode fazer não sei o quê por mim!” (risos) A gente não pode fazer nada por essa pessoa! Ou então a gente recebe críticas de um lugar muito bizarro, tipo: “não sei quem está mal aproveitado”. Como se fosse um mamão ou um vestido, tipo: “Ah um vestido tão bonito e ela só usou uma vez!”. É um lugar louco! Tem que estar muito louco da cabeça pra escrever isso! Eu cada vez mais entendo que o que a plateia gosta, ou uma das coisas talvez que tenham impacto, é o fato de estar diante disso. Eu sinto nessa experiência da Vila, que é constante – imagina, senhoras que nunca foram ao teatro e que assistem não só o que a gente faz, mas também o que os outros grupos fazem – eu acho que o que encanta é essa força de algo feito de uma maneira coletiva. Não nos moldes da juventude delas, mas é uma tentativa política de ação, ou reação.

Ronaldo – É feita cotidianamente. Acho tem essa coisa de estar na Vila… Tem crianças que quando a gente chegou tinham seis, sete anos, hoje têm treze, catorze; elas estão crescendo em contato com aquilo e percebendo que o teatro é um ofício como outro qualquer. E quase que – uma brincadeira, mas enfim – acho que o grande serviço é tirar a “magia”. E tirar a ideia de que…

Paulo – Você é um escolhido…

Ronaldo – Um escolhido, eleito, que é inspiração… e elas vêem que é TRABALHO, que a gente vai lá todo os dias fazer isso.

Luiz Fernando – E você tira essa magia, mas você dá outra magia que é a magia do “você pode fazer” que você não precisa ter nascido especial…

Ronaldo – Você dá a concretude…

Luiz Fernando – E pode ser pra fazer teatro ou para o que elas queiram fazer. E não essa expectativa do esperar ser encontrado, achado. Essa visão de fazer teatro pra se vender pra uma outra coisa (Chega Grace Passô) Grace Passô!

Felipe – Eu imagino então que essa sensação e esse pensamento, se espalhe para além da Vila, pelo Brasil, e pelos outros países que vocês foram. Talvez trabalhar dessa maneira, esse jogo, é que possibilita que vocês saiam da cultura da Vila Maria Zélia ou de Belo Horizonte e que possa ter uma comunicabilidade e uma empatia com outros públicos tão variados…

Juliana – Acho que a própria postura de ir pra outro lugar pra conversar realmente com o outro lugar… o Hygiene, nós criamos na Vila e agora, por exemplo nós vamos pro Acre e pra BH, que são lugares completamente diferentes, e o que interessa é realmente conversar com esses lugares. Ser afetado por isso. Então acho que tem esse diferencial mesmo que é o do diálogo que se propõe. Acho que isso que o Lubi falou que acha que encanta. Porque é uma adaptação da peça, mas é uma adaptação vivenciada. Acho que isso aparece no trabalho. Por que é uma busca de comunicação real com aquele lugar e isso é muito forte. Nos modifica.

Felipe – E quais são os projetos futuros e perspectivas?

Luiz Fernando – Pagar as contas! (risos)

Janaina – Bom, a peça acabou de nascer, tá muito fresca ainda. Ela tem essa dificuldade de gênese por ser de grupos de cidades diferentes. Então, cada vez, pra ela acontecer a gente precisa deslocar um coletivo inteiro, tem essa questão de gastos. Acho que tem algumas dificuldades com relação a isso, então a gente vai tentar ao máximo que ela tenha uma vida longa…

Felipe – Vocês já fizeram onde? Estrearam em Rio Preto, não é isso?

Janaina – Estreou em Rio Preto, fez quatro apresentações, essa do Rio de Janeiro foi nossa primeira temporada, fazemos agora em Belo Horizonte mais quatro, e aí…

Juliana – Quanto a planos futuros a gente tem muita vontade de em janeiro estrear em São Paulo!

Gustavo – E em fevereiro a gente deve voltar pra BH!

Luiz Fernando – E nós vamos fazer 10 anos, então o ano de 2011 é um ano comemorativo…

Janaina – Acabamos de pegar o Fomento agora…

Ronaldo – E vamos fazer o repertório na Vila e circulando pela cidade inteira…

Luiz Fernando – E vamos continuar um projeto bem legal, que tem a ver com a Vila, que são os núcleos de pesquisa, que é uma coisa que a gente já vem fazendo um tempo. Onde a gente abre espaço pra receber outros artistas e se formam novos núcleos com a orientação de cada um de nós…

Paulo – Que a gente quer chamar agora de Armazém XIX…

Luiz Fernando – E isso gera novas peças ou experimentos coletivos. Inclusive tem gente do Rio, tem gente de Minas, tem gente de outros lugares que acabam indo. Esse nosso ano está super cheio nesse sentido, de pegar esses dez anos, talvez, pra verticalizar o que a gente tem, porque somos um grupo de dez anos que faz as quatro peças que tem até hoje, e faz bastante.

Gustavo – A gente vai fazer o Acto2 agora com os meninos e a Companhia Brasileira em BH. A gente estreia um espetáculo no começo de dezembro, porque o Espanca! tá dirigindo um espetáculo de formatura de uma escola de atores lá de Belo Horizonte. Também é uma história de uma turma que está se formando conviver com um grupo de teatro, entender esses processos coletivizados de criação. Este espetáculo estreia no final do ano. Ano que vem a gente deve abrir, de verdade, a sede. Fazer o repertório inteiro do grupo em BH, também. Daí tem oficinas, tem uns estudos nossos também pra um próximo espetáculo que será em 2012…

Luiz Fernado – Esses editais também deram agenda!! (risos)

Gustavo – Ainda bem, né? (risos)

Luiz Fernando – Mas o que é incrível em termos de Brasil! A Marcha mesmo, a gente sabe que vai fazer desde 2008. Quando a gente ganhou a Petrobras, sabia que nos final de dois anos teria uma peça. Isso é raro e é muito bom que isso aconteça.

Gustavo – E é a primeira vez que isso acontece! Nós estamos super surpresos ainda com essa situacão…

Luiz Fernando – Já têm uma agenda em 2012!

Gustavo – 2012!! Que mais? É isso…

Felipe – Quer falar alguma coisa, Grace? (risos)

Grace Passô – Eu imagino que tudo tenha sido dito e estou bem satisfeita já!

Informações sobre temporadas nos sites dos grupos:

Grupo XIX de Teatro: http://www.grupoxixdeteatro.ato.br/

Espanca!: http://www.espanca.com/

Leia a crítica de Dâmaris Grûns de Marcha para Zenturo na Questão de Crítica: http://www.questaodecritica.com.br/2010/09/uma-experiencia-do-tempo-do-espaco-e-da-visao/

Veja o vídeo da conversa na TV-QdC:
http://www.youtube.com/user/questaodecritica#p/u/3/1qCU5vxnB8o

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Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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