Tensão na vida familiar

Crítica da peça Amores surdos, do grupo Espanca!, com direção de Rita Clemente

24 de novembro de 2012 Críticas

É totalmente possível concordar com o personagem Joaquim, que abre Amores surdos: todas as histórias já foram escritas e todas as histórias já foram contadas. Joaquim anuncia o que se passará – a história comum de uma família, fazendo coisas, comendo e brigando, cuidando um do outro, existindo em um determinado intervalo de tempo entre dois telefonemas. Situa ainda o espectador em sua condição de assistência de uma ficção teatral. Escutamos com Agamben o eco de Godard nas Histoire(s) de que “não temos necessidade de filmar, basta-nos repetir e parar”. Todas as imagens já foram filmadas. Temos imagens demais. Para que façam algum sentido novo precisamos recortá-las, colá-las em outra arrumação, montar e remontar as imagens. A questão é como estamos construindo estas imagens para sabermos de qual mundo estamos falando ou, por outra, como estamos andando no mundo, o quê do disponível para todos estamos escolhendo para colocar em jogo.

A meu ver este é um possível lugar inicial para se falar do trabalho do grupo Espanca!, de Belo Horizonte, que está em temporada no CCBB até o final de novembro e segue depois com mais dois trabalhos em repertório no Rio. O espetáculo O líquido tátil abriu a mostra, seguido por Amores surdos. Na sequência o grupo exibe Por Elise no Teatro Ipanema e ainda tem temporada agendada de Marcha para Zenturo no teatro Nelson Rodrigues. Pelo que se mostrou até agora, a cidade ganha com a empreitada.

A dramaturgia de Grace Passô em Amores surdos expõe o tema da incomunicabilidade da linguagem em que esta diz do outro, muitas vezes falando de si mesma, como é o caso dos vizinhos do andar de cima que gritam uns com os outros todo o tempo e escutam música em altíssimo volume. Este aspecto se materializa e se insinua na estética da cenografia de Bruna Christófaro, baseada no transparente em função dramatúrgica, um jogo entre ocultar e mostrar como nas tramas rendadas da parede ao fundo que divide o ambiente e deixa ver seu interior, ou na porta do apartamento que nos oferece a visão do sofrimento que acompanha o medo-fobia do filho Samuel.

Uma das proposições da qualidade de síntese estética da dramaturgia está justamente em sua capacidade de, usando mesmo dos atributos da linguagem em dizer o diferente, se fazer como prenúncio, como elemento de devir, abrindo a possibilidade de vidência ou de aventura da compreensão para o espectador. Neste sentido, a dramaturgia ultrapassa uma certa condição dramática e mostra seu potencial trágico. Mesmo que a carta dos vizinhos, que traz a situação do passado para o presente, ou o telefone que se incumbe de revelar um tempo simultâneo ao da representação possam ser assimilados como elementos dramáticos, a ressonância fundamental vem pelos acontecimentos trágicos. Um deles é anunciado no início, o que imprime o fator trágico em que se conhece a história e se aguarda o sabido desfecho. Mas a consequência inusitada e sub-reptícia é sabermos do destino do pai da família nos segundos que antecedem sua revelação.

O lugar do guardado, do passado, do recalcado que insiste em aparecer para desmontar ainda mais as descontinuidades dos familiares, ainda que este seja um ponto central da revolução dramática e do desmonte da chamada “peça bem feita”, cria um campo imanente para além de Ibsen em O pato selvagem, por seu teor surreal. Nota-se uma operação de montagem que propõe o desenlace de um tempo homogêneo e quantitativo e o realce de um tempo povoado de instantes repletos de outras qualidades temporais, bifurcadas, como atesta a “surpresa esperada” da mãe quando pergunta sobre o tempo de desaparecimento do marido. Este momento da peça talvez invoque um pensamento crítico em direção a alguma coisa que se possa denominar de um dispositivo teatral, na media que resulta de uma condição inseparável entre dramaturgia, encenação e espectador de maneira ainda a se poder especificar mais precisamente.

A operação de montagem faz surgir, sem dúvida, uma complexidade temporal na dramaturgia ao se deparar com seu passado histórico. Talvez possamos aqui nos confrontar com um dos gratos sintomas da dramaturgia contemporânea que faz saltar formas do passado transformadas, atravessadas por nossos estados de presente.

A interpretação dos atores mostra certas tipificações que são contrapostas por desenhos límpidos de movimentação, incluindo aqui a coreografia do sapateado que irrompe na cena. Podemos tratar esses momentos, se quisermos, como fragmentos que, além de quebrar o fluxo narrativo, oferecem um modo de fruição que se abre para outras formas imaginativas. Tais momentos se assemelham ao efeito do romance que provoca um processo de imaginação no leitor por meio dos detalhes. Este aspecto possibilita uma focalização do olhar que constrói zonas de dessemelhança entre o visual e seu significado. Isso ameniza, por exemplo, o infantil do personagem Pequeno vivido por Gustavo Bones, que nos oferece uma espécie de religiosidade profana ao lidar com o brincar da criança. Nota-se nesta mesma direção a paralisia que Marcelo Castro imprime em seu Samuel.

A atuação de Grace Passô arrebata o espectador. A atriz parece ter consciência da dramaticidade atravessada pelo trágico e compõe uma mãe enigmática entre a doçura, o amor e aquela que sabe a causa do sofrimento que perpassa todos. É como a dupla visão que, em alguns momentos, nos é oferecida pelo Joaquin vivido por Assis Benevenuto, ou que aparece nos jogos entre Pequeno e sua irmã vivida por Mariana Maioline.

O Espanca! oferece provocações sobre nossos comportamentos sociais em uma reflexão afetiva que toca visivelmente os espectadores. Sabemos que não existe modos seguros de aferir a fruição, mas trata-se de um trabalho que afeta nossos sentidos.

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