Uma experiência do tempo, do espaço e da visão

Crítica da peça Marcha para Zenturo, do Grupo XIX de Teatro e da Cia Espanca!

24 de setembro de 2010 Críticas
Foto: Alexandre Ramos

Assistir a um espetáculo como Marcha para Zenturo é poder dizer que partilhamos de uma experiência teatral que aborda uma das questões mais caras ao drama: a do tempo. Não que essa peça seja um modelo perfeito do drama mais convencional, como os modelos que podemos destacar em Henrik Ibsen ou Anton Tchekov, mesmo que nos dois autores a crise da forma dramática já esteja instaurada e embora possamos perceber a maestria dramatúrgica que chega a velar essa crise, sabemos que suas escritas não procuram seguir à risca o modelo de pièce-bien-faite do drama clássico. O que a dramaturgia e a cena de Marcha para Zenturo apresentam são indícios de uma estrutura dramática no seu sentido mais singular, que pode ser exemplificada por Peter Szondi no livro Teoria do drama moderno: uma espécie de corte na cronologia, o domínio absoluto do diálogo intersubjetivo e o passado que se irrompe no presente dos diálogos ou aparece atualizado como próprio tema. É o caso da peça do Grupo XIX de Teatro e do Espanca!, duas importantes companhias do cenário teatral paulista e mineiro que se uniram para realizar um espetáculo onde o tempo (passado, presente e futuro conjugados de forma simbiótica), o “ver o outro” (a experiência do olhar o outro e ver a si) e uma melancolia que beira uma renúncia da vida (como aqueles personagens de Tchekhov) são questões primordiais para o que propõem em cena nesse belo espetáculo.

Começo pela experiência do tempo tematizada no espetáculo. Parecendo ser o pretexto para essa montagem, a questão pode ser percebida desde o princípio no texto de apresentação do programa da peça. Fala-se de uma “co-habitação de um mesmo tempo e espaço de criação”. Desde essa primeira informação e no decorrer do espetáculo, a questão do passado, do presente e do futuro exposto na ação e no texto aparece como uma referência norteadora dessa criação artística, assim como o espaço redimensionado na cena entre personagens e plateia, na medida em que se ocupa um lugar comprimido pela ação temporal.

A história se passa num fictício 2441, quando, nas ruas de uma cidade, acontece uma série de manifestações: a marcha para Zenturo. Cinco grandes amigos, Noema (Janaina Leite), Patalá (Marcelo Castro), Gordo (Gustavo Bones), Lóri (Juliana Sanches) e Marco (Rodolfo Amorim) se reúnem para comemorar a passagem de ano e relembrar o passado, falar do presente e festejar o futuro. Falam do que são, do que foram e o que poderão ser num futuro tão presente. Mas estranhamente não conseguem se relacionar de verdade, não olham um no olho do outro, não são sequer capazes de tirar uma foto juntos. Quando uma trupe de teatro composta por três irmãos (Ronaldo Serruya, Paulo Celestino e Grace Passô) chega à casa para encenar uma peça – que também fala sobre o tempo –, os espaços, visões e tempos dos amigos e da trupe se envolvem e se confundem. O presente vai se impor para todos ali.

Tanto os personagens que se encontram para comemorar o Réveillon como a trupe que encena para eles trazem em seu bojo uma referência ao universo dos personagens tchekhovianos: uma nostalgia no olhar e nas falas remetem sempre a um passado, desejam um futuro distante e pulsam numa certa inadequação do presente. Vivem, assim, uma espécie de renúncia destacada pelo próprio Szondi em sua análise de Tchekhov:

“Nos dramas de Tchekhov os homens vivem sob o signo da renúncia. A renúncia ao presente e à comunicação: a renúncia à felicidade em um encontro real. (…)A renúncia ao presente é a vida na lembrança e na utopia, a renúncia ao encontro é a solidão. As três irmãs representa exclusivamente seres solitários, ébrios de lembranças, sonhadores do futuro.” (SZONDI: 2001, 46)

Foto: Alexandre Ramos

O tempo da “encenação na encenação” é o tempo em que a personagem cozinha a calda para um bolo. Três irmãos conversam sobre suas vidas, a família – como o caçula cresceu – e falam de uma Moscou de outrora, de suas lembranças e desejos vindouros na cidade, onde a relação com a história das personagens de As três irmãs, a meu ver, se estabelece. Mas é na forma como aqueles cinco amigos que assistem à peça se relacionam que o paralelo pode ser traçado: vivem uma vida regada pelas lembranças de um passado que não lhes pertence mais. Estão num espaço entre esse presente inadequado de suas vidas e o futuro por vir que não parece poder se concretizar. Não conseguem efetivamente perceber o outro e as mudanças que a ação do tempo engendrou em cada um. Vivem uma inadequação naquele espaço, estão juntos para celebrar o futuro (o Réveillon), mas não conseguem estar no aqui e agora do presente que os cerca. Suas falas parecem pairar na superficialidade. Pergunta-se para um e outro responde algo completamente descompassado. Em momento algum da encenação eles se olham nos olhos. Nesse sentido, o personagem Marco, o quinto amigo e último a chegar, é aquele que consegue perceber o estado de presença-ausente de seus amigos. Há uma pista na peça de que esse personagem seria o motivo pelo qual aquelas pessoas resolveram se encontrar, pois Marco estaria com problemas. É interessante que o personagem que enxerga e olha de verdade, a realidade e o outro seja, na visão dos amigos, aquele que passa por problemas.

Esse personagem, deflagrador da instabilidade daqueles seres diante da presença dos outros, chega na casa carregando sacos de gelo. Sua chegada é recebida com festa e, nesse momento, os atores espalham pelo espaço o gelo trazido por ele. O chão da cena fica quase totalmente encoberto por pedras de gelo, sobre as quais os atores caminham com dificuldade, mas imprimindo uma naturalidade para aquela situação. A ideia do gelo evoca mais uma vez o tempo, no sentido de algo que se cristaliza no instante de um acontecimento: o gelo como forma de conservação de algo diante da ação do próprio tempo; e sua durabilidade, que pode ser experienciada pela plateia enquanto a cena se desenrola.

O espaço da cena é bastante delimitado. Imprime uma sensação de cenário de um filme futurista (luz neon, o roxo que salta aos olhos, o plástico, o gelo) em contraste com uma cadeira de balanço, outra referência à questão do tempo na peça. Marcas de tempos opostos que se tensionam em cena. À medida que cada um vai adentrando no lugar, esse espaço aparentemente enxuto fica cada vez menor, comprimindo aquelas pessoas. Nesse espaço pequeno, com o chão escorregadio pelo gelo que derrete, os atores se movimentam constantemente, sem se esbarrar e sem olhar um no outro. Esse espaço dividido por esses personagens e depois pelos três irmãos da trupe, que não conseguem ir embora pois “as ruas estão tomadas por manifestantes”, só é rompido quando todos olham por uma janela, com a intenção de ver a manifestação. Neste que é um dos momentos mais bonitos da peça, os atores estão posicionados como num quadro, vendo o fora que se materializa, que se reflete na plateia. A relação que estabelecem é de espanto com o que se vê do outro lado: espectadores sentados em fileiras. A peça parece tensionar a posição ocupada por quem assiste àquela ação. Desse modo, o personagem que vê, interpretado por Rodolfo Amorim, rompe o espaço da cena e fala diretamente para a plateia, quebrando totalmente a forma de relação que até então estava estabelecida entre cena e público, gerando uma instabilidade no espectador, que se vê e vê o outro ao seu lado. Um silêncio domina o espaço e reverbera na ação direta do tempo que ultrapassa a cena.

Em outro momento muito importante da encenação, quando todos saem de cena, há uma projeção da própria plateia no presente momento da peça. Há uma suspensão no tempo: aquele que somente vê o outro vê a si próprio no ato de ver. O espectador compartilha com outro espectador a experiência daquele instante ao se ver projetado ao vivo. Agora, quem estava na situação de contemplação do outro contempla a si mesmo, como um espelho. Experencia-se de fato essa questão do tempo e da visão tão bem construídos na direção de Luiz Fernando Marques e na dramaturgia de Grace Passô. Um jogo dos tempos, espaços e visões que se concretiza na cena de Marcha para Zenturo.

Em uma era de relações dialógicas instantâneas em que as pessoas procuram se comunicar (com limite de caracteres), se divulgar, serem vistas, 2441 está logo aí. Poderá ser um tempo em que não conseguiremos mais olhar no olho do outro, ou viveremos num estado de renúncia da própria vida e do que ela fez de nós. Seremos seres anacrônicos como os personagens da peça e talvez tenhamos o mesmo triste final. Nesse sentido, a experiência engendrada pelos grupos de co-habitarem um mesmo espaço e tempo de criação relacional revelou-se uma experiência coletiva entre suas trajetórias e com o público que assiste Marcha para Zenturo.

Referência bibliográfica:

SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno. Tradução: Luiz Sérgio Repa. São Paulo: 2001, Cosac e Naify Edições.

Leia na Questão de Crítica a conversa realizada com os dois grupos, por Felipe Vidal: http://www.questaodecritica.com.br/2010/10/autoral-e-polifonico/

Informações sobre temporadas nos sites dos grupos:

Grupo XIX de Teatro: http://www.grupoxixdeteatro.ato.br/

Espanca!: http://www.espanca.com/

Foto: Alexandre Ramos

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