Sonoridades beckettianas

Conversa com o diretor Rubens Rusche sobre a dramaturgia de Samuel Beckett

31 de março de 2014 Conversas
Bete Dorgan, Nivaldo Todaro, Linneu Dias e Antônio Galleão em Fim de Jogo (1996). Foto: João Caldas

Rubens Rusche é diretor teatral paulistano. Estreou na direção com Katastrophé (1986), composto pelas peças curtas Eu Não, Comédia, Cadeira de Balanço e Catástrofe, montagem emblemática de Samuel Beckett no Brasil. Encenou vários textos do dramaturgo irlandês, em diversas montagens nos últimos 26 anos, entre elas Fim de Jogo (1996), pela qual foi premiado com o APCA 1996 (Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte), Crepúsculo (2006), outra compilação de textos curtos, sendo seu mais recente trabalho Oh, os belos dias, que estreou na capital paulista em 2013 e onde também fará temporada em abril de 2014. Dirigiu peças de outros autores e concepções próprias, no entanto, destacam-se as montagens do teatro beckettiano no Brasil.

A conversa foi realizada em 06 de setembro de 2012, em São Paulo, SP, e dá ênfase às implicações da dramaturgia de Samuel Beckett na criação vocal dos atores e atrizes que atuam nela.

MANUEL E SUELY: Como se deu seu primeiro contato com a obra de Samuel Beckett?

RUBENS: Assisti o Esperando Godot com Cacilda Becker em 1969, mas só fui ler grande parte da obra, tendo um contato profundo com ela, no início dos anos 1980, numa comunidade rural em que morava na época. Tinha feito parte do TUCA, Teatro da Universidade Católica de São Paulo, na década de 1970 e lá tive uma experiência com um teatro mais ligado ao corpo, que negava a palavra. Na biblioteca dessa comunidade, estava lendo um filósofo indiano que citou o Beckett. Havia lá as três peças longas. Então, quando as li, fiquei tão emocionado que chorei, sabe? Agora é engraçado ao recordar, mas lembro de que chorava, porque achei aquilo tão intenso. Fiquei apaixonado pelo que estava lendo. Perguntava-me, “como esse homem continuou escrevendo?” Porque não é possível ir além depois disso. Porque não é possível continuar depois de Esperando Godot… Foi um xeque mate. A seguir, fui ler o Fim de Jogo e, mesmo não tendo possibilidade de continuar, ele continua e a impossibilidade é o próprio jogo. É impossível e mesmo assim se continua. O Fim de Jogo bem montado, deixa o público uma hora e meia totalmente absorto por aquilo. Preso, não no sentido de ser manipulado, da ilusão, mas realmente no aqui e agora diante de algo que está acontecendo naquele instante. Porque é isso que liberta. Como não está acontecendo nada, no sentido do que se espera, que é avançar para alguma coisa, logo se percebe que não vai caminhar para nada. Aquilo é algo que está acontecendo aqui na sua frente, naquele momento. Então, a sua atenção tem que se voltar para os mínimos detalhes do que está se passando, para você não perder, porque já percebeu que se trata do jogo no presente. Isso é fantástico. Fiquei surpreso quando percebi que Beckett é um dramaturgo que faz uma peça do aqui e agora, que não leva nossa atenção para o depois, não ilude com isso, não vai contar uma história, que daqui a pouco terá um fim, um conflito, um nó ou um desfecho. Uma catástrofe, como diziam os gregos. Não. Aliás, muito pelo contrário, todas as peças de Beckett são como se fossem esse momento. Elas já começam pelo fim.

MANUEL E SUELY: Pode-se dizer que o teatro beckettiano é do tipo que questiona o próprio teatro?

RUBENS: Questiona, contudo, não apenas isso. Instaura-se a partir desse questionamento, mas não fica somente nele. Para mim, Beckett criou um novo tipo de teatro que não faz apenas uma crítica a todas as regras da dramaturgia, mas rompe com elas e cria algo novo. O que, é claro, já estava sendo tentado desde o fim do século XIX por outros dramaturgos. Em Beckett, você tem uma dramaturgia que realmente cria uma cena, não está desligada dela. Sua criação dramática é a primeira dramaturgia, não teatro em si, do século XX, que traz o corpo à cena. Antes de Beckett não tem corpo na dramaturgia. Há o teatro que se afasta da dramaturgia. Beckett é pós-Artaud e leva muito a sério as observações que este fez. Principalmente aquela de que havia uma ausência do corpo no teatro. Quer dizer, havia uma palavra desencarnada, uma voz sem corpo. Com Beckett, pela primeira vez, vamos ter no palco o nascimento de um teatro onde há um corpo e uma palavra profundamente vinculada a esse corpo, sem nenhuma separação dele.

O questionamento proposto por Beckett na prosa é “o que é o livro?” O jogo no teatro é: “o que é teatro?” “O que é uma peça de teatro?” Temos um teatro que resgata o homem em seu veículo básico: o corpo. A respiração, a palavra que nasce dele e que tem um vínculo orgânico com o mesmo, não está desvinculada desse corpo dizendo a sua fábula. Não é uma mente que pensa. É um corpo que fala. Poder-se-ia dizer que a palavra em Beckett se tornou fragmentada, no entanto, não gosto de usar esse termo. Acho que não se tornou fragmentada, se tornou boca. Ela é o que resta. Beckett é o teatro do que resta, dos resíduos, daquilo que realmente resta falar.

MANUEL E SUELY: Levando essas características em consideração, como você conduziu os ensaios nas montagens de Beckett que realizou?

RUBENS: Beckett exige do ator um tipo de interpretação que o forçará a ultrapassar seus limites. É dificílimo. Como o ator ou a atriz vai descobrir a relação corpo/voz em sua atuação? Descobre primeiro que a voz é do físico. Pelo menos, é assim que trabalho, achei que esse era o melhor caminho. Não adianta ficar lendo o texto na mesa, descobrir o que é isso ou aquilo. No caso da peça Passos, a atriz pode ficar pensando que se trata somente do drama da personagem com a mãe e partir daí para a criação. Nada disso. É no ensaio que a atriz tem que descobrir que quando ela para e vai falar “mãe?”, como é que nasce esse “mãe?”. Como pega? Qual é o som? Ela vai descobrir a voz, a emissão da personagem, mas a partir do físico vai buscar essa voz. A peça Eu Não, por exemplo, é rápida, violenta, porque é um vômito. Então, a voz também é descoberta desse jeito, a palavra, que aquela boca não para de soltar. É uma boca que não pode parar, está enlouquecida. Para pegar é difícil, quer dizer, tudo tem um começo nos ensaios, todavia você parte de um chão. Tem que ter um chão que é o próprio Beckett, é o próprio teatro dele. Nos ensaios começo a falar sobre isso, a teoria artística que se pode deduzir de Beckett. Falo da vida dele, da sua simplicidade. Vou contando para os atores e tentando, em primeiro lugar, atraí-los, seduzi-los e dar uma base sólida a eles. Mais que um chão, uma paixão. Mais que uma paixão, uma necessidade de fazer aquilo.

Nádia de Lion em Passos, Crepúsculo (2007). Foto: Jean-Charles Mandou.

MANUEL E SUELY: Levando em conta que a voz e a fala são tão importantes no teatro beckettiano, sobretudo nas últimas peças, nas quais o texto e a maneira como ele será dito se tornam mais radicais, você se preocupa em realizar algum tipo de preparo técnico vocal com os atores que trabalha?

RUBENS: Sou diretor e não fonoaudiólogo. Ou seja, minha função em relação ao ator não é trabalhar a voz dele. Pressuponho que ele já fez isso. No teatro, em geral, quando o ator ou atriz começa a falar estraga tudo, não é?! Porque a voz não está no corpo. Mas isso é uma questão do ator, a voz tem que estar no corpo dele. Tem que descobrir essa voz no corpo dele, tem que ter um centro de onde essa voz e os movimentos emanem. Como é que o ator faz para ter um centro? Tem que estar num estado de relaxamento. Não pode estar na cabeça, nos pensamentos e nas tensões musculares. Quando falo em relaxamento, não se trata de o ator estar num estado de passividade total, no qual não consegue fazer mais nada. Não é torpor, não está anestesiado, é um relaxamento ativo, que é o verdadeiro. É o que permite ao ator um fazer, dentro de um não fazer. O ator ou a atriz não deve fazer, não deve falar e isso se aprende no teatro de Beckett. Porque um ator dentro do teatro de Beckett não pode falar, ele é falado. Isso já está dentro da necessidade do próprio texto. Por exemplo, em A Piece of a Monologue, que montei com o nome de Solo, o personagem se chama Speaker, o Solista. Quando a peça começa, há uma longa pausa e o solista começa a falar. A primeira frase dele é: “Seu nascimento foi a sua morte”. A primeira frase já aponta para a circularidade. Quer dizer, entre nascimento e morte, não tem espaço algum. Aquele espaço que ainda havia na fala do Vladimir, em Esperando Godot, que diz que entre o nascimento e a morte ainda temos tempo de envelhecer, não há mais. Apesar de trágica, é a grande piada beckettiana. Ria quem puder. Porque em Beckett é preciso rir disso. Você precisa conseguir rir da maior tragédia que é essa, do seu nascimento e da sua morte. “E daí?” “E agora?” Então, em Solo, o Solista começa com essa frase que é uma porrada, isso vale para qualquer um, e essas palavras nascem dentro dele e têm que sair de alguma maneira. Porque esse personagem, se é que se pode chamar de um personagem, narra a situação dele. Tudo o que está narrando é a descrição de como ele chegou até ali. Levantou, acendeu o candeeiro, se pôs virado para parede e, então, foi nascendo de dentro dele uma palavra, que foi crescendo e por mais que mantivesse a boca fechada, ela explode. A palavra explode! Ou seja, a emissão é o próprio nascimento dela. Esse personagem é obrigado a falar, está virado para a parede em silêncio até vir a primeira palavra, então, não pode mais parar.

O trabalho de voz, claro, não é básico, o ator ou a atriz já tem que ter esse preparo. A maioria dos atores com os quais trabalhei já tinha uma grande consciência da voz. Porque a voz é uma questão de consciência, não se pode esquecer isso. Aliás, não se pode esquecer nada. Não se pode esquecer do pé, do dedo, porque senão você está inconsciente, não está prestando atenção ao que está fazendo. O ator tem que ter uma atenção, não é concentração, é atenção excepcional, como nenhum outro tem.

MANUEL E SUELY: Como você lida com a sonoridade ou musicalidade desse texto?

RUBENS: Para chegar aí preciso falar dos corpos nos textos beckettianos, que são sutis, não são grosseiros, vão ficando sutis com o tempo. Desde Godot, até as últimas peças, esses corpos vão ficando menos densos, mais soturnos, mais fantasmagóricos, mais esfumaçados, menos densos, enfim. Então, isso influi na voz, ela é mais delicada, mais sussurrada e suave. Não é bruta, é mais musical. Agora, como se descobre a sonoridade? Repito novamente, descobre-se primeiro que ela é do físico. Pensar a criação vocal no teatro beckettiano é um bom caminho, porque a voz no teatro de Beckett é interessante, se você consegue associar a ideia dessa coisa do corpo que estamos falando e a voz como esse elemento físico que me relaciona com o outro, com essa necessidade desse vínculo com a palavra, que pode levá-la e com uma palavra necessária, corpórea. Palavra necessária é aquela que tem corpo. Que tem uma necessidade e está ligada ao corpo. Ela tem uma necessidade física de existir. E a voz enquanto construção do personagem tem que pegar a ideia de partir do físico também. Porque assim era Beckett como diretor, ele trabalhava assim, buscava a fisicalidade daquele ator e sabendo que não existia um jeito só de fazer, que dependeria de cada um. Beckett, em 1967, começa a ser diretor de sua própria obra teatral e, ao encarar a direção de seus textos, vai encontrando todos os problemas técnicos envolvidos na realização dos mesmos. Começa, então, a criar uma prática, uma teoria do ator, uma metodologia do ator no teatro de Beckett e de uma encenação beckettiana. No entanto, não como uma verdade única, pelo contrário, é um teatro vivo. Ele sabia que cada ator é único, tem uma voz específica etc. Nesse sentido, cada ator ou atriz vai trabalhar com aquilo que possui. Estou falando de alguém com voz trabalhada, contudo, isso não significa ter voz bonita, isso tem que ficar muito claro, não é bonita nesse sentido. É voz sincera, encarnada, é a voz da pessoa mesmo. É nesse sentido que importa e no qual estou falando de voz. A palavra se torna orgânica. Você já não pensa no que está falando e você fala sem errar. Como se fosse uma partitura musical.

E essas palavras são como a música de Beethoven, na qual as notas saem do silêncio. Quem prestar atenção exatamente em Beethoven vai entender isso. Elas saem do silêncio com muita humildade, com um respeito pelo silêncio, como nunca tinha havido igual na música até então. Esse respeito nunca se dissolve e aquele som, que é a música, sempre sabe, que, digamos assim, a mãe dele é o silêncio e que, cedo ou tarde, tem que voltar a ela. Quer dizer, é uma energia que depois que brincou, agradece e se entrega de novo a esse silêncio. Entretanto, há um conflito nessa música, ou melhor, uma tensão, no sentido material. Que é esse som que briga, de certo modo, com esse silêncio. Porque ao mesmo tempo ele não quer mais voltar para lá, pois voltar é a morte e aqui é a existência dele. É a mesma coisa no mundo das palavras. Se você vai para o silêncio, é como se deixasse de existir de novo, como se morresse, como se sua história parasse. Você contou a sua história e agora? Você vai para o silêncio de novo. Mas assim é a vida, não é? Isso já estava em Shakespeare.

MANUEL E SUELY: Continuando ainda sobre a criação do ator ou da atriz, que lugar eles ocupam no processo de montagem ao se trabalhar com uma dramaturgia tão rígida e específica como a beckettiana, na qual o próprio texto define a movimentação, as pausas, a atuação etc.?

RUBENS: A resposta a essa coisa fechada, das especificações das rubricas, que tem uma partitura, é como na música. Então, não há razão em tocar uma música, porque todo mundo já tocou? A música é mais exigente ainda, porque tudo está ali e você não pode mudar, senão, vai alterar a obra do compositor. A não ser que seja essa a proposta, como fazer uma bachiana e brincar com Bach.

Sempre escolho a dedo os atores para fazer Beckett. Na verdade, não é bem uma escolha. Vendo determinado ator, ele me inspirava a fazer um Beckett. Isso aconteceu com alguns atores, e alguns outros eu escolhi, mas sempre muito criterioso. Somente aqueles que realmente seriam producentes para trabalhar naquele momento. Não é qualquer um que pode fazer Beckett. Tem-se que estar predisposto a fazer aquilo. Porque não há como não trazer uma mudança a todo mundo que trabalha com Beckett. Altera-se a maneira como a pessoa começa a ver teatro. Ela se torna bastante sensível. Escolho a pessoa quando a mesma já tem essa sensibilidade. O teatro de Beckett atua numa afloração da sensibilidade. É algo que os atores não têm, na verdade, não aprendem isso na escola. Os professores que dão aula de teatro não sabem o que é isso. Porque nós temos uma formação muito brechtiana, de uma coisa mais para fora. E quando se pensa em algo mais interior, se cai em Stanislavski. Há essa importância fundamental no teatro do Beckett de trazer o corpo à cena. O ator e a atriz têm que entender que a palavra então se torna corpo e esse entendimento não pode ser racional e não é possível construir um personagem, pelo menos, não de uma maneira tradicional. Então, do ponto de vista da interpretação, não dá para recorrer a uma metodologia de construção, quer seja brechtiana ou stanislavskiana. Em Beckett, nenhuma das duas serve, não é uma coisa, nem outra. É uma coisa neutra.

Quando o ator vai querer construir o personagem, quer dizer, realizar a performance do texto melhor dizendo, porque essa coisa de construir a personagem não existe. Quando vai fazer a performance desse texto, tem que deixar que isso aconteça. A palavra nasce de uma necessidade interior, que ele não sabe qual é. Quer dizer, essa palavra é necessária. Ela não é dita, é vomitada. É como um vômito. É expulsa. Ela sai. É como se perfurasse esse orifício que é a boca, passa através dele. E é uma palavra que sai e volta para esse corpo, que fala dele e que se volta para ele. Quer dizer, não é a palavra psicológica. Você não constrói um personagem beckettiano através de conflitos psicológicos. Muito pelo contrário, são conflitos físicos. Estamos falando de como o ator interpreta, então, se não pode buscar um passado histórico, psicológico, “qual é o conflito?” E se há conflito, não é psicológico. Todavia, há tensão e é isso que o ator ou a atriz terá que buscar: a tensão. Mas como é que se busca? Através do corpo. É por esse motivo que se volta a ele. O primeiro passo é o ator entrar naquela postura e fisicalidade exigida pelo personagem, quase sempre bem definida no próprio texto. Claro que o ator não vai entrar de uma vez por todas, mas esse é o caminho. Para começar é preciso ser aquele corpo.

E há, para os personagens beckettianos, uma necessidade de contar. Por exemplo, o personagem da peça Solo vai tentar contar sua vida, mas não porque ele quer e sim porque necessita. Não é contar por contar. Há uma necessidade interior nesse contar sobre si, como se aquilo fosse uma espécie de castigo, uma pena, algo que sou condenado a fazer todos os dias e, claro, aí é uma metáfora do teatro, todo o dia o ator é obrigado a repetir aquilo que fez no dia anterior. E os personagens de Beckett, a mesma coisa, eles têm que todo dia repetir aquilo que fizeram ontem.

É muito clara essa ideia do ator se descobrir, ou melhor, se redescobrir. Chegar aos seus limites e tentar levá-los além. Porque Beckett exige do ator um tipo de interpretação na qual se tem que ir além dos limites conhecidos. É dificílimo. É uma entrega, uma abnegação ao trabalho, que a pessoa sabe que está trabalhando para uma coisa que está além, em algo muito importante. E não é pelo ego. É por uma transcendência, não só como ator, mas como ser humano. É uma experiência inigualável de vida.

Sandra Dani em Oh, os belos dias (2013). Foto: Jean-Charles Mandou.

MANUEL E SUELY: Poderia falar de algumas dificuldades durante a criação e na atuação, que você tenha vivenciado com os atores?

RUBENS: O personagem é uma boca. É difícil para o ator ou a atriz entender que é uma boca e até chegar lá terá muita dificuldade. Acredito mesmo que não existe nenhum entendimento racional e premeditado quando se trabalha no teatro beckettiano. É como música e dança. O teatro de Beckett, por ser corpo, é como dança, você não precisa entender racionalmente para poder fazer. Muito pelo contrário, se você for racionalizar, não acontece nada. Tem que entrar naquilo e descobrir o que é, pois nem o ator sabe, nem o diretor e nem mesmo o autor. Porque Beckett não sabia se Eu Não, por exemplo, era uma peça de teatro, se era dramático ou não. Antes de ser realizada a primeira performance, até o momento da execução, tinha dúvidas se o que tinha escrito era um texto para teatro ou era um texto em prosa, que não caberia ser encenado.

Vamos continuar com o exemplo de Eu não, a velocidade com que aquela boca tem que falar um texto fragmentado em doze, treze ou quinze minutos no máximo, é alucinante. Quando ensaiava a peça em 1986, a atriz Maria Alice Vergueiro, que fazia o papel da Boca na montagem de Katastrophé, chegou a um momento em que estava fazendo toda a peça em vinte e cinco minutos, tinha começado com trinta e cinco e foi baixando, até que num ensaio ela falou: – “Olha Rusche, cheguei ao meu limite, aqui não dá mais. Quanto deu?” Falei: “Vinte e cinco.” “Então, esse é o meu limite!” Contudo, durante as apresentações, a Maria Alice percebeu que não dava mais para fazer em vinte e cinco minutos, porque os músculos faciais dela estavam atingindo um limite de possibilidade, não só os músculos, a possibilidade da palavra também. “Como acelerar mais ainda?” “Como vou me lembrar?” Esta aí o ponto, não tem mais como lembrar. A palavra se torna orgânica. Você já não pensa no que está falando e fala sem errar. Como se fosse uma partitura musical, a atriz não pode errar. Porque se errar é um labirinto, ela se perde e não saberá para onde ir depois.

No caso da Vera Bonilha, que fazia a voz da mãe em Passos, na montagem de Crepúsculo de 2006, foi muito mais difícil. Ela podia cair em algo muito formal, de querer fazer uma voz, que foi o que aconteceu no início dos ensaios, que estava totalmente desencarnada. Não tenho nada contra o formal. Claro que tudo tem uma forma. Entretanto, tem uma musicalidade, tem que estar ligado, ter uma coisa orgânica, que não é psicológico. Repito: é uma necessidade. Quanto mais se é intelectual, menos se capta Beckett, menos se entra nele. Quanto mais achar que sabe, menos você sente. É exatamente um processo de encarnação da voz, de aproximação muito mais carnal com a obra, do que mental e isso é difícil.

MANUEL E SUELY: Poderia falar um pouco da interação do texto com as imagens no teatro beckettiano?

RUBENS: Sempre as peças de Beckett, principalmente as curtas, começam com uma narração que vai culminar com aquela cena parada que se está vendo no palco. No caso do Cadeira de Balanço, somente na quarta parte do texto a voz conta que aquela mulher sentou na cadeira, contudo, ela é vista sentada desde o início. A May, da peça Passos, com aquele andar para lá e para cá, aquilo já está estipulado no texto. Tem que ser nove passos para cada lado. A área de encenação já está delimitada, a personagem não pode ultrapassar aquilo, porque a palavra não deixa. A outra personagem, que é só uma voz, conta os nove passos e ainda diz “gira”, repete novamente e, assim, vai andando junto da primeira através da fala. Claro que depois para de contar, mas o espectador continua contando os passos dela em sua cabeça. Este é um exemplo fantástico no qual a palavra está fechando a própria cena. Além do que, a fisicalidade não pode escapar daquilo que a palavra está delimitando e esta, por sua vez, está descrevendo aquele movimento físico. Uma coisa está atrelada à outra. Gesto, movimento, luz, palavra etc., está tudo organicamente mesclado, formando um todo. Nada está separado. Mesmo a luz em Beckett, a palavra fala dela. Um exemplo está em Solo, no qual o texto dito pelo personagem se refere à luz que está iluminando a cena. A luz é narrada, então, ela tem que ser aquela que está sendo descrita. Há uma imagem, um espaço cênico, que depois é exatamente aquele que a palavra vai descrever. Entretanto, ela nasce dele.

Todos esses elementos não têm um vínculo causal e nem casual, mas de necessidade. É algo aqui e agora. Mas que espaço é esse? Onde é isso? Você não sabe. É como se aquela coisa viesse do além, são como fantasmas que habitam o palco. E aquilo começa escuro. Uma escuridão, um breu e de repente, nasce uma luz que ilumina um corpo ou uma cabeça ou uma boca ou um corpo que anda para lá e pra cá ou uma figura imóvel, toda de branco, um verdadeiro fantasma.

MANUEL E SUELY: Como é a experiência, como artista e como pessoa, também, de se aprofundar em uma obra teatral como a de Samuel Beckett?

RUBENS: A arte é para trazer as pessoas para a vida, para elas nascerem, se encontrarem consigo mesmas ou, mais modestamente, pelo menos se lembrarem de que existem. Ter um pequeno insight sobre sua existência. Em minha opinião, se isso se der, a obra de arte cumpriu a sua função. E isso o teatro de Beckett cumpre de uma maneira exemplar.

Trabalhar com uma peça de Beckett é um processo de acordar, de se tornar mais sensível, mais vivo, mais aqui e agora, de viver no presente. Pelo menos, da maneira como dirijo, como levo o processo. Quando terminava uma temporada, sem dúvida, era um novo momento para todos os envolvidos. Também, pode não acontecer nada. Não é que passando por Beckett vá se chegar a algo novo, talvez, antes de chegar ao Beckett já tenha que se ter uma iniciação. Não é uma iniciação intelectual, cultural, não é isso.

A arte não pode ser algo separado da vida. Nesse sentido a arte é sagrada. Alguns artistas, não sei o porquê, conseguem atingir uma arte que é da vida e não de ódio. Buscam uma arte íntegra, mais ligada ao corpo. Ou é ligada ao corpo ou não é. E quando usam a palavra, mesmo quando escrevem, no caso da prosa, usam uma palavra que não está desvinculada do corpo. Uma palavra encarnada. O lance é esse, a arte encarnada. Uma arte que atua com o corpo, como a vida. Quando eu falo o corpo é vida. E para mim, Beckett é um desses artistas.

Linneu Dias em Aquela Vez, Beckettiana #2 (2000). Foto: João Caldas.

Nosso agradecimento a Beatriz Calló, atriz e aluna da licenciatura em Teatro na UNESP, que gentilmente nos auxiliou na transcrição desta conversa.

Leia nesta edição da Questão de Crítica:

Estudo de Cláudia Maria de Vasconcellos sobre o estranhamento na dramaturgia de Beckett: http://www.questaodecritica.com.br/2014/03/relacao-entre-palco-e-plateia-no-teatro-de-samuel-beckett/

Conversa com Ana Kfouri e Isabel Cavalcanti sobre o Projeto Beckett, por Cassiana Lima Cardoso: http://www.questaodecritica.com.br/2014/03/duo-beckett/


Manuel Fabricio A. de Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Londrina (2004) e mestrando em Artes/Teatro na UNESP, onde desenvolve pesquisa sobre a criação vocal de atores e atrizes que atuaram nas peças curtas de Samuel Beckett e integrante dos grupos Grupo de Pesquisa e Estudos sobre Samuel Beckett, USP e GREVI – Grupo de Estudos em Voz e Interpretação, UNESP.

Suely Master é professora do Departamento de Artes Cênicas e do Programa de Pós-Graduação em Artes/ Artes Cênicas do Instituto de Artes da UNESP. Líder do Grupo de Pesquisa GREVI – Grupo de Estudos em Voz e Interpretação. Fonoaudióloga Especialista em Voz, com atuação em Teatro, Cinema e Música / Canto. Graduada pela Universidade Federal de São Paulo (1978), onde também obteve os títulos de Especialização (1980), Mestre (1989) e Doutor em Ciências da Saúde (2005). Prêmio CAPES de Tese 2006. Pós-Doutorado no Programa de Estudos de Lingüística Aplicada da PUC-SP (2009).

Vol. VII, nº 61, março de 2014

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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