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Tradução da crítica de Manifesto Ciborgue, publicada por ocasião do Four Days Festival, em Praga

17 de maio de 2012 Traduções
Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Tradução de Denisa Václavová e Joelson Gusson para o texto de Marcela Magdová, publicado originalmente na revista Divadelní Noviny em 19 de outubro de 2011.

Grotesco e elegante, com ritmo modernista tipicamente brasileiro, Manifesto Ciborgue, apresentado no Archa Theatre, junta português, inglês e tcheco. Especial diversão – na noite de quarta-feira no Four Days Festival – misturada com gotas de uma reflexão profunda.

Joelson Gusson, um dos diretores proeminentes no atual cenário do teatro experimental do Brasil, diz ter sido inspirado pelo ensaio homônimo, escrito pela bióloga e filósofa norte-americana Donna Haraway durante os anos 80 do século passado, em que a identidade do “ciborgue” é descrita como uma ligação entre o humano e a tecnologia. Ciborgue como uma espécie de estágio intermediário, de transição, entre o homem e a mulher, ou entre o artificial e o natural. A transformação do corpo humano, seja pela mudança de gênero ou através de intervenções na matéria, é o tema principal desta peça criada para dois performers e um esqueleto.

A peça tem início com a criação de diversas imagens como, em uma referência ao discurso hamletiano, um dos performers dança com um crânio, esvazia os seus sapatos que estão cheios de cinzas, porque “você é pó e ao pó hás de voltar”; ou a pequena demonstração de um médico sobre as diferentes possibilidades de implantes corporais e cirurgias plásticas extremamente bem construída e bem humorada. Um ator nu, dançando ao som da música do ícone pop e também símbolo de cirurgia plástica, Michael Jackson, não pode ser pensado a não ser pelo seu lado ridículo.

Aos poucos, porém, revela-se uma atmosfera muito mais complexa e pesada. Um dos atores se dirige ao público e pergunta: Você sabia que as unhas de um cadáver continuam a crescer? Lutamos para melhorar a aparência, mas para quê? Depois de tudo isso só resta o nada? Se há um Deus, como pode tudo isso acontecer? Insistentemente toca um telefone vermelho, o que, aliás, é o único elemento de cor no cenário inteiramente branco. No outro lado da linha ninguém responde. Poderia ser Deus… ou a Morte?

A mutação sexual mostra o ator – com grande habilidade – travestido de mulher em uma longa capa de chuva (por dentro desta revela-se um maiô cor da pele com enchimentos e uma peruca entre as pernas), referindo-se ao pós-silicone mal sucedido. Seu rosto com aparência masculina recebe uma camada de massa modelada como se fosse uma operação plástica. Mas a massa está sujeita à deterioração. O rosto se decompõe, a boca estica, criando um sorriso alongado, monstruosamente engraçado, que lembra a famosa pintura de Edvard Munch, o Grito.

As piadas originais oscilam, em uma linha muito tênue, entre a ironia, de um lado, e o pathos e o pessimismo do outro. Felizmente, o equilíbrio entre os lados é tão perfeitamente construído que não nos incomoda a possível superioridade de qualquer um deles.

A última cena acaba por enredar totalmente os espectadores. Durante toda a peça os dois atores lidam com o público como se quisessem “apenas” entretê-lo, para, ao final, tocar profundamente na ferida, embora ainda com uma risada discreta

Em primeiro plano, o ator no papel do médico expõe as pequenas coisas que possui, como se estas o constituíssem enquanto indivíduo: um isqueiro, cigarros, dinheiro e tudo mais do que há de inútil… Ao fundo o paciente com um porta-soro preso à sua mão se deita na mesa de dissecação à espera de sua morte. Ele abraça um esqueleto, que, com uma jaqueta preta estendida sobre o crânio, não parece nada diferente do que a própria Morte.

Este trocadilho muito bem construído usando a linguagem teatral moderna deixa-nos uma conclusão trágica, majestosamente acompanhada por uma pitada de auto-ironia. As tentativas de reconstrução e de desconstrução do corpo, a desilusão e a degeneração definitiva.

Este espetáculo não é totalmente novo (2007/2008), e, portanto, é necessário apreciar também os atores (Leonardo Corajo e Lucas Gouvêa), que, com tanta facilidade, diversão e vigor, ainda dominam completamente o palco.

Link para o texto original: http://www.divadelni-noviny.cz/4-4-8-12-no-3/

Leia também a crítica de Dinah Cesare, publicada na edição de novembro de 2008: http://www.questaodecritica.com.br/2008/11/identidade-em-questao/

E a de Daniele Avila Small, publicada na edição de março 2010: http://www.questaodecritica.com.br/2010/03/ritmo-estrategia-critica/

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