Liberdade pela metade
A ideia de entrar no teatro para ver uma releitura de Shakespeare, ainda mais com este belo título, O animal que ronda, me deixa sempre numa expectativa prazerosa. Não só porque as releituras dos clássicos são mais raras do que eu gostaria na cena teatral carioca, mas sobretudo porque, ao ver uma nova interpretação de uma obra canônica, duas vertentes muitas vezes antitéticas do meu trabalho, a de crítico teatral e a de professor de filosofia, encontram uma síntese que faz com que eu me sinta menos partido. Afinal, como professor universitário, eu sou fundamentalmente um leitor de releituras de obras clássicas. Nesse sentido, independentemente da minha vontade consciente, me sentei na arquibancada do Espaço Municipal Sergio Porto com duas perguntas (ou exigências) na cabeça.
A primeira: em que medida essa releitura me revela outras camadas do original (de Shakespeare) que eu não teria percebido sem a sua mediação? Em que medida inventa/descobre um Shakespeare que teria permanecido para sempre desconhecido, ao menos para mim?
A segunda: em que medida essa releitura é consciente do seu tempo e do seu lugar? Em que medida assume o seu lugar de fala como uma releitura brasileira (de uma obra inglesa escrita a partir de um mito escocês)? Em outras palavras: essa releitura me faz entender melhor o meu tempo? Ela é, neste sentido, contemporânea?
Além dessas duas perguntas características de um professor mais interessado na traição do que na tradição dos clássicos e que portanto desconfia da exigência de “correção objetiva” característica de professores mais ciosos de seu saber especializado – me lembro da Barbara Heliodora falando que o cenário de uma tragédia grega dirigida por Malu Galli e Bel Garcia em 2012 estava errado… –, uma terceira pergunta, esta de cunho mais estético-teatral, também se impôs: quais são os procedimentos cênicos e dramatúrgicos de “atualização” da obra original empregados? O desejo sem dúvida legítimo de torná-la atual e acessível a um público contemporâneo sacrifica excessivamente a sua complexidade? A peça opta por mecanismos de criação de empatia fáceis demais?
Tendo esclarecido o que normalmente me instiga diante de uma releitura como a realizada em O animal que ronda, o começo da peça estabeleceu com clareza que o objetivo do trabalho era usar o Macbeth de Shakespeare para criar uma alegoria do Brasil atual.
Em vez das três míticas bruxas do original, duas prostitutas e um travesti, funcionárias do Charneca Dance Cu – o l e o b do letreiro original tinham caído – predizem a Mac e a seu sócio Banco (que repete não gostar desse apelido, preferindo o seu nome verdadeiro, PC, alusão ao PC Farias de Collor) que eles seriam grandes, que Mac se tornaria rei e que a Banco caberia algo ainda maior no futuro. Mac e Banco são apresentados como dois escroques, funcionários da empreiteira “Nova Escócia”, que estava desapropriando um terreno ocupado por uma comunidade para construir um condomínio de luxo.
No início da peça, sabemos que uma criança havia sido baleada pelos policiais encarregados da desocupação, o que faz com que o antigo gerente geral da “Nova Escócia” perca o seu emprego e Mac, de acordo com a profecia, se torne o novo gerente geral. A criança baleada é mandada por Banco para uma clínica particular e o sucesso da desapropriação, em consideração à opinião pública, passa a depender de sua sobrevivência.
Numa festa para comemorar a promoção na casa de Mac, capitaneada por sua mulher, Lady – a atriz reclama que nem nome próprio tinha, afirmando a nossa pretensa distância histórica com relação ao machismo característico da era elizabethna – somos apresentados ao Rei da história, não um rei no sentido estrito, mas um desses novos ricos tão inescrupulosos quanto cafonas ironicamente chamado de Reinaldo. (Luciano Moreira está perfeito no papel.) O fato de seu filho se chamar Thor estabelece que Rei seria uma espécie de Eike Batista antes da queda.
A casa fica num condomínio de luxo da Barra da Tijuca e a festa seria um “churrascão”. Na preparação para a festa, Lady instiga Mac a matar (o) Rei, e põe em dúvida sua virilidade caso ele não fosse capaz de cometer esse ato. Mac, desastradamente como no original, faz o que a mulher manda e assume o poder, mas Banco desconfia da armação, já que a desculpa dada por Mac para o assassinato – as duas empregadas da casa teriam matado Rei – é de fato tão frágil quanto a atribuição de culpa à guarda pessoal do rei Duncan em Shakespeare.
Até aí, o estilo bagaceira e bastante livre da montagem – permeada por músicas cafonas que evocam o último trabalho de Joelson Gusson, “Tran_se”; por figurinos hilários que caricaturam o novo-riquismo dos personagens; por exageros cômicos e trocadilhos infames; por cacos dos atores que se posicionam criticamente diante dos personagens que encarnam – promete uma atualização bem sucedida. A tragédia do poder de Macbeth – o número de crimes que um corrupto tem que cometer é virtualmente infinito, porque ele precisa não apenas cometer o crime, mas matar todas as testemunhas, e sonha em vão com o último assassinato que tornará possível limpá-lo de todos os anteriores – é transposta para o contexto brasileiro de maneira a um só tempo livre e rigorosa. Até o assassinato de Rei, as opções estéticas da direção e da dramaturgia me pareceram todas muito bem pensadas e ao mesmo tempo sensorialmente saborosas.
Uma vez estabelecida a releitura alegórica de Macbeth, pensei com os meus botões: a lógica da situação brasileira exige agora uma traição mais radical do original. Esse Mac do texto de Um animal que ronda, que elimina o presidente da “Nova Escócia” para assumir traiçoeiramente o seu posto, como o temerário Temer, não tem como sucumbir nem ao remorso, nem ao braço da lei e nem mesmo às maquinações de seus “aliados”. A lógica desta nova Escócia chamada Brasil obriga que ele seja bem sucedido. Sua esposa, evidentemente, tampouco teria como sucumbir ao remorso, pois toda a sua caracterização de perua da Barra torna pouco crível que nela ainda habite algum estrato mais profundo de moralidade para além do seu arrivismo.
É sempre difícil falar que tipo de caminho uma releitura “deveria” ter tomado, pois a um crítico digno deste nome cabe apenas analisar o que é, expor as entranhas da proposta cênico-dramatúrgica efetivamente apresentada, mais do que opinar sobre o que o trabalho deveria ter sido. Como o intuito deste texto não é propriamente construir uma crítica, mas apenas dialogar com os artistas envolvidos na produção a partir de algumas impressões compartilhadas, vou direto ao ponto: me pareceu que a instigante liberdade trash empregada na construção da cena e na apresentação dos personagens vai perdendo o rigor e a direção na medida em que a dramaturgia tenta se manter fiel ao enredo original de Shakespeare.
As manchas de porra e sangue que a prostituta da cena de apresentação consegue apagar com relativa facilidade no início deveriam também poder ser facilmente apagadas por Lady no final. “Lavou tá novo!” Quando isso não ocorre, o seu suicídio se torna gratuito e injustificado, assim como a queda de Mac, que acaba substituído por um Banco redivivo que volta dos mortos de maneira pouco convincente. Ainda que Banco, ou PC, deixe claro, com razão, que os bancos nunca morrem, nunca perdem no jogo sujo da política brasileira, que depois de um PC assassinado sempre aparecerá um Fred ou um Rocha Loures para carregar as malas cheias de dinheiro para os temerários colloridos do futuro, a opção por manter intocada a filosofia da história de Shakespeare – aquele Grande Mecanismo que sempre faz com que um rei ilegítimo seja assassinado por outro rei ilegítimo, até o final dos tempos, que permanecerão para sempre “fora dos eixos” – me parece inadequada ao contexto brasileiro, onde as mesmas poucas famílias mantêm o poder político e econômico por gerações e gerações e onde um mesmo partido, o PMDB, jamais deixou o poder desde a abertura.
A meu ver, a tragédia do Brasil é que os poderosos conseguem sempre limpar o sangue das próprias mãos. Assim, depois que, no final da peça, o menino baleado na desocupação morre, me pareceria mais coerente com a releitura do caráter dos personagens à luz do contexto brasileiro que eles dessem um jeitinho de comprar a imprensa e limpar o próprio nome. Como Brecht já tinha antevisto na Ópera dos três vinténs, a maior tragédia não é a morte trágica do protagonista, um destino individual irrelevante sob uma perspectiva histórica mais ampla, mas o fato de que os Mac (Beths ou Navalhas) quase sempre têm um final feliz. A maior tragédia, portanto, não é a dos donos da história, mas a nossa, que a sofremos passivamente, como os espectadores de um teatro grotesco.
Se, em O animal que ronda, os autores tivessem tomado a liberdade de apresentar um grande acordo final entre Mac, Lady, Banco e Thor (o filho do Rei que vem reclamar a sua parte na herança do papai), eu certamente teria saído do teatro com a alma lavada, o que não chegou a ocorrer, a despeito de todas as inegáveis qualidades da primeira parte da montagem. Oh, this damned spot!
Patrick Pessoa é professor do Departamento de Filosofia da UFF, crítico e dramaturgo.
RESPOSTA DO DIRETOR, JOELSON GUSSON
Oi Patrick,