A poética do espectador

Crítica da peça Solano e Rios, de José Sanchis Sinisterra

19 de maio de 2011 Críticas
Rogério Garcia e Leonardo Chaves. Foto: Sergio Santoian.

Solano e Rios são dois atores que perambulavam pelas estradas empoeiradas de uma Espanha medieval, herdeiros de uma tradição cômica dotada de cinismo, ironia e alegria e que, muito provavelmente, faziam a festa da multidão em eventos não oficiais, tanto nas praças quanto nas feiras públicas do longínquo século XVII. Mikhail Bakhtin já havia identificado o caráter anárquico e carnavalesco desse pano de fundo social-popular na obra literária de François Rabelais. E é no interior desse contexto histórico que os dois pândegos famintos se desviam de suas rotas, fugindo de cobradores que resolvem acertar suas contas, e acabam caindo de pára-quedas na, não menos anárquica, festiva, idosa e erótica Copacabana, Espaço SESC, no Rio de Janeiro do século XXI. Deixam para trás sua terra natal e caminham longe, cruzando as fronteiras mais vastas de estilos, estéticas e influências artísticas.

A dupla de pícaros, saídos da imaginação do dramaturgo espanhol José Sanchis Sinisterra, se defronta com esse novo público, bem mais comportado, desarmado de esterco, tomate podre ou outra coisa que o valha, e que, na época, funcionava como termômetro de avaliação do gosto de uma plateia. Eles encaram frontalmente o público contemporâneo da revolução tecnológica, perguntam para alguém da plateia “que tempo é esse de hoje?” e se assustam quando descobrem que vieram parar no ano de 2011. A atmosfera de insegurança e medo se instala no convívio entre os dois personagens-atores, afinal de contas, quem é essa nova e desconhecida plateia, para quem esses indivíduos precisam se apresentar? Os que entram mudos e saem calados, esboçando apenas reações esporádicas de riso ou tosse no decorrer da representação? Quais são suas necessidades atuais? Que tipo de informação ou imagem eles retêm na mente? O público vira tema dessa construção dramatúrgica do autor espanhol.

As situações que problematizam o comportamento do espectador, na encenação de Alexandre Mello, podem ser ilustradas por dois exemplos distintos: O primeiro acontece quando Solano e Rios dialogam sobre questões inerentes ao fazer teatral, propõem inverter as convenções estabilizadas do jogo cênico e passam a assistir, por alguns segundos, em silêncio, sentados do meio do palco, a plateia iluminada, exposta, constrangida em seu lugar “intocável”. O local da atuação transforma-se no local da contemplação. No segundo exemplo, muito próximo do final da peça, a dupla de atores puxa o tapete do espectador, comprovando o quanto o público ainda mantém um comportamento passivo frente ao que é apresentado em cena. Solano (Leonardo Chaves) apela à plateia que o ajude a lembrar de uma série de acontecimentos ocorridos ali no decorrer da representação. Ele tenta, persiste, mas em vão. A plateia permanece muda. Parece que não lembram de nada que presenciaram nos quase cinquenta minutos que dura o espetáculo. Um esforço inútil que faz com que seu parceiro Rios (Rogério Garcia) deixe o espaço cênico, abandone seu amigo em cena aberta e vá embora.

Neste momento, a esfera minimalista que subjaz na montagem alcança um maior efeito estético, quando as fronteiras espaciais entre os sujeitos que dividem o mesmo instante temporal são cindidas. Os atores se colocam frontalmente diante da plateia e esperam certo tipo de interação, de participação, são instigados a receber, mesmo que por alguns breves segundos, o foco das luzes e dos olhares daquela audiência. Percebe-se que se instaura uma outra zona de força, decorrente do desejo de comungar com o público a felicidade de partilharem o mesmo instante, o presente da situação teatral. Daí o caráter inconclusivo e indeterminado do final do espetáculo, deixado em aberto para qualquer tipo de interferência sonora, física ou intelectual do espectador.

A grandeza poética que se desloca do texto dramatúrgico de Sinisterra, para além da simplicidade com que a linguagem cênica se deixa escrever no espaço de atuação, deixando a impressão de que esse espetáculo pode ser encenado em qualquer lugar, inclusive numa praça pública, reside justamente nessa experiência que confronta o espectador com sua própria condição de passividade. Quando esse instante acontece, quando há essa tentativa de abertura para a manifestação do público, manifestação esta que se apresenta como o grande clímax da relação ativa e direta entre o autor, os atores e os espectadores, um hiato é pressentido no interior da Sala Multiuso do SESC, um espectro de provocação incômoda paira no ar, causando aquela sensação de fobia que atinge o receptor, sempre que o ator ousa cruzar a fronteira de sua delimitação territorial e expandir sua faixa de atuação junto do público. O silêncio nervoso, o riso abafado, os olhares que evitam o contato direto com o ator em cena, além de outras reações similares, viram fluidos espalhados pelo ar, desencadeados pelo último conflito reservado ao final da peça.

A poesia que emana da encenação de Solano e Rios está contida na eficácia do jogo que os atores instauram no espaço cênico, arrastando com seus corpos e gestos histriônicos toda carga energética dos tempos mais remotos do fazer teatral, sem impregnar, na linguagem cênica, uma época histórica realisticamente datada ou pré-definida. Quando Rios deixa o espaço de atuação, se dirigindo para o exterior da cena, podemos imaginar que retoma a velha estrada metafórica. Não sabemos, entretanto, como será a recepção da dupla pelas próximas e futuras gerações de plateias. Sua andança ainda não chegou ao fim.

Pedro Allonso é ator e aluno do curso de Teoria do Teatro da UniRio.

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