Uma dramaturgia da fragmentação

Conversa com José Sanchis Sinisterra

22 de dezembro de 2014 Conversas

Vol. VII, nº 63, dezembro de 2014

Tradução: Betch Cleinman

Resumo: A entrevista com José Sanchis Sinisterra foi concedida em 2008 no Teatro Poeira (RJ), dentro do contexto da oficina de dramaturgia promovida pelo projeto Puente. Esta conversa aborda algumas questões norteadoras da investigação cênica de Sinisterra, perpassando técnicas de escrita teatral, referências teóricas e a relação entre espetáculo e espectador.

Palavras-chave: José Sanchis Sinisterra, dramaturgia da fragmentação, investigação cênica, espectador

Resumen: La entrevista con José Sanchis Sinisterra fue realizada en 2008 en Río de Janeiro en el Teatro Poeira, dentro del contexto del taller de dramaturgia organizado por el proyecto Puente. Esta charla aborda algunas cuestiones que direccionan la investigación escénica de Sinsterra, permeando técnicas de escritura teatral, referencias teóricas y también la relación entre el espectáculo y el espectador.

Palabras clave: José Sanchis Sinisterra, dramaturgia de la fragmentación, investigación escénica, espectador.

Dramaturgias da fragmentação

Foto: Divulgação.

A conversa foi realizada em 10 de setembro de 2008, no Teatro Poeira, ocasião em que Sinisterra ministrava uma oficina neste teatro sobre dramaturgias da fragmentação.

JULIANA: Quais as questões fundamentais que norteiam a sua investigação dramatúrgica neste momento?

SINISTERRA: Do ponto de vista técnico, artístico, formal? Ou do ponto de vista de temas, conteúdos, problemas que queremos tratar através da dramaturgia?

JULIANA: Todos.

SINISTERRA: Estão todos relacionados. Eu digo, às vezes, que cada tema, cada temática reclama a sua própria forma, sua própria poética. Pelo menos no meu caso, certo? Então, eu diria que de um ponto de vista estritamente poético, dramatúrgico, estético – como queira chamar – eu me interesso efetivamente pela dramaturgia da fragmentação, ou seja, como renunciar, deixar de lado conceitos de coerência, de unidade, trazidos pela lógica no tratamento dramático dos textos e encontrar formas dramáticas que reproduzam este deslocamento, essa percepção fragmentária que temos do mundo, da realidade e que freqüentemente nos coloca diante de uma sensação de perdidos dentro do caos. Minha preocupação é como podemos, apesar de admitir a causticidade da experiência da realidade e do mundo, encontrar uma ordem que nos permita continuar refletindo, continuar tentando compreender, tentando descobrir uma outra ordem por trás desta aparente perda de sentido, contra esses grandes sistemas explicativos dos grandes relatos como fala (Frederic) Jameson, o autor da Pós-Modernidade. É isso que me interessa. Nesses dias (do curso) vimos como podemos atenuar, reduzir a função narrativa do teatro, a continuidade, a causalidade convencionais, sem nos perder no que chamo de “qualquer coisismo”, isto é, uma forma dramática na qual vale tudo e que não se importa com a desorientação do receptor. Este é um aspecto de composição: até que limites posso chegar para renunciar à unidade, coerência, continuidade, sem perder o fio da meada, sem que o espectador se sinta, como costumo dizer, “expulso”?

Justamente no último texto que terminei e que se chama El inimigo interior – com o qual me sinto muito inseguro porque não sei se acabei por deixar coisas sem resolver, enigmas, níveis de realidades distintos que não acabam de se articular… É um certo experimento que fala do que parece ser a coluna (suporte, pilar) do indivíduo, sua biografia, sua memória biográfica…. Podemos também encontrar esta desarticulação na situação desta peça, o inimigo interior, é um velho militante de todas as causas perdidas do século XX que dita a sua autobiografia a uma jovem escritora. Isso me permite explorar esta descontinuidade que está no próprio ser, no próprio indivíduo. Inclusive, eu diria, esta impossibilidade da arte de representar uma visão unitária, coerente e no fundo tranqüilizadora do ser humano.

JULIANA: Você acredita que esses limites têm a ver com um pacto com a recepção? É o limite do pacto possível?

SINISTERRA: Exatamente. E por isso, em ultima instância, a validade ou não da exploração destes limites tem que ser verificada na prática. A apresentação da peça a públicos diversos é a única coisa que pode me fazer entender se o limite foi transposto ou se continuo numa zona ainda… A minha insegurança vem do fato de eu ter tido muitas surpresas. Muitas peças que eu diria que eram menores, muito experimentais, que nasceram de minha necessidade de “escavar túneis”, viraram sucesso sem eu jamais entender o porquê. Outras, que eu considerava mais comunicativas, mais inteligíveis, não sabemos por qual motivo não funcionaram. Muitas vezes o problema não está no texto, mas na maneira como é montado. Frequentemente a encenação, a interpretação, podem dispersar, podem confundir o que no texto está mais condicionado pelas suas leis internas.

JULIANA: Quais os seus principais interlocutores e referências?

SINISTERRA: Creio que os meus principais interlocutores estão fora do teatro. Não quero dizer com isso que o teatro não tenha figuras e linhas de desenvolvimento absolutamente ricas e férteis que tenham me influenciado. Um dos autores que eu cito – dos interlocutores imaginários (risos) – é o Beckett em primeiro lugar. Pinter também, o Peter Handke e, ultimamente estes autores que cito como o Schimmelpfennig, Martin Crimp. Juan Mayorga, na Espanha, é um autor com quem tenho uma interlocução real, nos falamos constantemente, apesar de não nos encontrarmos muito porque ele tem três filhos pequenos, e ele é um pai responsável… (risos) Mas nós trocamos textos, comentamos as peças um do outro… Mas tenho uma certa orfandade neste momento porque não soube encontrar interlocutores teóricos no campo do teatro, eles são muito parciais. Anos atrás tínhamos muitos interlocutores. Brecht, por exemplo, era uma referência com quem era possível estabelecer um “diálogo” de aceitação e crítica que ajudava muito no desenvolvimento…

Hoje em dia, por exemplo, tenho um “diálogo” com o Stanislavski da última fase, algumas coisas do pensamento inicial do Peter Brook me interessam muito, mas não há uma figura que possa ser o meu “pai”, com quem eu queira dialogar.

Em compensação, fora do teatro, como disse, estou continuamente encontrando discursos e posições intelectuais, estéticas, políticas que me enriquecem, me questionam. Neste momento estou interessado pelas implicações filosóficas do darwinismo que, creio, vai muito mais além da biologia. Mas continuo tentando entender coisas da teoria do caos, da teoria geral dos sistemas. Mas há autores que não são do teatro, como Kafka, por exemplo, que me mobiliza sempre. A cada vez que o releio, encontro estímulos e perguntas… O romancista Coetzee, um autor sul africano branco que ganhou o prêmio Nobel também me é muito estimulante, me ajudando a fazer a transposição do narrativo para o dramático. Há um poema do poeta espanhol

barroco, Francisco de Quevedo, que diz: “retirado na paz destes desertos/ com poucos mas doutos livros juntos/ ando conversando com defuntos (…)”. A literatura, os livros, são grandes interlocutores na vida, isto que chamamos de vida.

JULIANA: Como que os seus trabalhos de professor e diretor interferem na sua dramaturgia?

SINISTERRA: Há uma absoluta interpenetração a ponto de que muitos dos temas, problemas, que tento sistematizar para transmitir e compartilhar nas aulas e nas oficinas incidem sobre o meu trabalho de escrita ou dele se originam. Há um vai-e-vem permanente. O meu trabalho de professor me obriga a me instalar no campo teórico. É uma das fontes de alimentação do meu trabalho dramatúrgico.

BETCH: Como você explica a falta de interlocução teórica dentro do teatro?

SINISTERRA: Eu diria que tem a ver com a urgência da busca dos resultados. Digamos, um grupo de pessoas fazendo teatro, um autor, um diretor imersos no processo, se não entram no sistema teatral e mostram este trabalho ao público, podem cair numa espécie de autismo. Mas o sistema é muito refratário a processos longos de reflexão e de pesquisa e quer resultados imediatos. Na Espanha pelo menos, normalmente o que fazem os grupos é encontrar um texto e montá-lo em um mês e meio, por aí. Há muitos grupos aqui na América latina que podem levar um ano pesquisando, fazendo tentativas, com texto e material de improvisação. Na Espanha e na Europa, um processo assim é muito raro. Há uma exigência de produzir resultados. Há também o divórcio entre a universidade – que seria um espaço adequado para a pesquisa – e a prática criativa teatral, que faz com que o estudo do teatro na universidade seja teórico, especulativo, às vezes filológico, semiótico sem uma conexão concreta e imediata com a criação, a dinâmica e prática cênicas. A universidade espanhola é muito refratária ao teatro como fato físico, se apega a textos de autores clássicos e reconhecidos. Há, portanto, uma fissura sem espaço para a reflexão.

JULIANA: Qual a sua impressão sobre a dramaturgia realizada aqui no Rio de Janeiro a partir desta sua experiência bastante específica com as oficinas de dramaturgia no Poeira?

SINISTERRA: Tenho poucas oportunidades para ler texto, comentar, analisar, mas a partir das perguntas e intervenções dos participantes da oficina, pude observar um nível muito mais alto do que na Espanha por exemplo.

JULIANA: É mesmo?

BETCH: Em que sentido?

SINISTERRA: Porque não são perguntas banais e buscam realmente o porquê e como das coisas, perguntas que me obrigam a me referir a outros campos, perguntas sobre aspectos importantes da técnica. Isso me chamou muito a atenção já na oficina do ano passado. Fiquei impressionado ao ver atores capazes de refletir sobre o que aparecia nos exercícios com alto nível de compreensão dramatúrgica. Além do que o teatro brasileiro tem uma enorme força e muita vitalidade, embora a sua dramaturgia não tenha ainda obtido um reconhecimento suficientemente grande.

JULIANA: Como tem sido a recepção das suas peças no Brasil?

SINISTERRA: Bem, é melhor perguntar aos responsáveis pelas montagens das minhas peças no Brasil. (risos) As informações que me chegam são sempre muito positivas como, por exemplo, a do Leitor por horas, que é uma peça difícil. Ay, Carmela! também funcionou muito bem. As experiências até agora foram muito boas. Tomara que continuem assim!

Betch Cleinman é jornalista, escritora, produtora cultural. Bacharel em Comunicação Social pela Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ; Diplôme de l’Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris) em Cinema e História; Diplôme des Etudes Approfondies em História Contemporânea (Paris I). Autora dos livros Despache-se e Capital da Libido: os EUA em MM.

Juliana Pamplona é dramaturga, diretora teatral e doutora em Artes Cênicas pela UNIRIO.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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