O teatro como extrema unção aos crimes hediondos

Crítica da peça Ay Carmela! de José Sanchis Sinisterra

29 de abril de 2011 Críticas
Atores: Virgínia Buckowski e Kiko Marques. Foto: Divulgação.

Guerras, com todas as suas incongruências e todo o seu fatídico cenário de genocídio, carnificina, destruição e mutilação costumam produzir, contraditoriamente, um rico, fascinante e instigante material artístico. Quanto maiores e mais absurdos são os atos provocados pelos homens, mais contundente é o seu esmiuçar nas artes. A Guerra Civil espanhola – que ocorreu entre 1936/1939 – foi o acontecimento mais traumático que ocorreu antes da 2ª Guerra Mundial. Nela estiveram presentes todos os elementos militares e ideológicos que marcaram o século XX. Podemos dizer, sem margem de dúvidas, que foi um dos três piores momentos vividos pelo mundo ocidental no século passado. Junto com o fascismo italiano e o nazismo alemão – talvez o mais hediondo de todos eles -, nada foi mais trágico do que estes três acontecimentos. O que poderia ser uma guerra interna, apenas espanhola, ganhou contornos exteriores, pois o que estava em jogo também era a hegemonia do mundo, dividido entre duas forças: a do capitalismo (direita) e o socialismo (esquerda). Assim, pode-se dizer que a Alemanha nazista e a Itália fascista apoiavam o golpe do General Francisco Franco enquanto a União Soviética se solidarizou com o governo Republicano.

Pois bem, é levando em conta que a produção artística encontra elementos poderosos em períodos de conflitos (talvez como forma de transmutar as dores e os sofrimentos em alegria e afirmação, como diria o filósofo Nietzsche), que podemos dizer que a guerra civil espanhola exerce, ao mesmo tempo, fascínio e repulsa, pois inspirou momentos de expressões artísticas antológicas, que habitam até os dias de hoje o nosso arquivo de memórias: o impressionante quadro Guernica, pintado magistralmente pelo espanhol Pablo Picasso é um exemplo disso. Guernica representa o ambiente de terror instalado pela destruição da cidade de Guernica, atacada pelos alemães no dia 27 de abril de 1937. Desenhado em preto e branco, com corpos decepados, agonizantes, tudo isso expresso em sua fase cubista. Esta é uma das imagens mais emblemáticas do horror das guerras no século XX. Picasso disse a seguinte frase, na ocasião do lançamento da obra: “No, la pintura no está hecha para decorar las habitaciones. Es un instrumento de guerra ofensivo y defensivo contra el enemigo.” (Não, a pintura não é feita para decorar casas. Ela é uma arma de ataque e defesa contra o inimigo).

Outro grande fato que marcou definitivamente esta sangrenta guerra foram os crimes praticados contra artistas de expressão mundial como o poeta Federico Garcia Lorca, fuzilado pelo exército espanhol por ser simpatizante da república espanhola e homossexual assumido. Lorca nos deixou obras-primas da dramaturgia mundial: Bodas de sangue (1933), Yerma (1934) e A casa de Bernarda Alba (1936).

Em cartaz no Teatro SESC/Casa da Gávea, o espetáculo Ay Carmela!, de José Sanchis Sinisterra, com direção de Marco Antonio Braz, e produção da Velha Companhia de São Paulo, vem até o Rio de Janeiro nos contar uma das vertentes desta guerra civil espanhola. Dois atores, duas personagens, que vivem dois atores: Carmela (Virgínia Buckowski) e Paulino (Kiko Marques), cuja missão principal é apresentar um pequeno espetáculo de variedades para prisioneiros de várias nacionalidades condenados à morte no regime militar espanhol.

Assim começa a se desenhar esta patética tragicomédia. O ambiente é de total destruição, espalhados pelo palco estão escombros de guerra, um gramofone e três luminárias. Tudo nos leva a crer, desde o primeiro instante que estamos diante de uma obra de teatro aberta e que ali será reproduzida uma peça de ficção, fazendo-se valer da metalinguagem. Em um palco escuro uma narração nos situa no período histórico, onde se projeta o quadro Guernica e onde se escreve que esta história não aconteceu em Belchite (citação que nos faz pensar durante toda a encenação sobre o porquê de não ter acontecido em Belchite, ou porque não aconteceu em Belchite…). Isto já nos coloca em um patamar de espectador atuante, que precisa fazer conexões, ativar o cérebro para embarcar num jogo teatral em todos os sentidos. Afinal de contas, o que importa onde a ação de fato aconteceu? O que importa mesmo é que ela aconteceu. E isso no plano histórico já nos causa muito desconforto e agonia. A ação é ambientada em dois mundos paralelos, ou seriam três: o mundo dos atores que vivem as personagens de Carmela e Paulino, o mundo das personagens que interpretam as personagens do espetáculo de variedades, e o mundo da fantasia. Contada em planos distintos, o jogo teatral narrativo toma conta da cena e vemos assim a história que viveu Carmela e Paulino ser contada, e em seguida representada. Uma narrativa épica que, ao contrário da narrativa dramática, já aconteceu e assim pode ser revisitada de forma anacrônica, sem lógica cartesiana. As cenas são independentes e estruturadas com começo, meio e fim. Um espaço cênico utilitário à cena: terra, a devastação da guerra, e luminárias, o teatro. Dois atores são convocados para se apresentarem a uma platéia composta por um grupo de prisioneiros das Tropas Internacionais, que serão fuzilados no dia seguinte. A apresentação, como sendo o beijo da morte, o canto do cisne, deverá celebrar patrioticamente o exército vitorioso e a “libertação” de Belchite. O que vemos a seguir é um furacão cênico, Carmela e Paulino se dividem entre reflexões sobre as suas vidas, a vida dos artistas/atores, as suas concessões na arte, os seus truques e canastrices, a miserabilidade humana, enquanto ensaiam a apresentação de alguns números toscos de um varietè, com força e vitalidade impressionantes.

Situado em espaços absolutamente surreais, comunicam-se em italiano com um oficial que cuida da organização e iluminação do show, passando a limpo os momentos que antecedem uma grande tragédia em suas vidas. Carmela, uma mulher forte, contundente, autêntica, emocional, um vulcão em erupção contra a injustiça humana e Paulino, um homem comedido, assustado, covarde em diversos momentos. Juntos realizam uma antológica discussão sobre o papel do artista e cidadão na sociedade. Será que é possível termos o tablado em nossas mãos e não utilizarmos o mesmo para discutirmos os fatos que movimentam o mundo: as grandes guerras, as injustiças sociais, os regimes políticos? Será que podemos entrar em uma sala de espetáculos e desligarmos o nosso cérebro como se ele fosse um simples comando de stop em nosso computador? A Velha Cia, o diretor Marco Antônio Braz, José Sanchis Sinisterra e Brecht pensam que não… Alias, já nos dizia Brecht: “…A arte não é uma imitação da vida. A arte é uma recriação…”. E como tal, deve exercer uma função transformadora, que atue revolucionariamente sobre os ambientes sociais.

Referências bibliográficas:

BERTOLLI FILHO, Cláudio – A Guerra Civil Espanhola. Editora Ática. 1996.

BRECHT, Bertolt. Estudos sobre o Teatro. Tradução de Fiama Pais Brandão- Editora Nova Fronteira. 2005.

BRECHT, Bertolt. Uma introdução ao Teatro Dialético. Tradução de Fernando Peixoto – Editora Paz e Terra. 1981.

Ricardo Schöpke é crítico de teatro infantil e juvenil do Jornal do Brasil, encenador da Cia Boto-Vermelho, cineasta, presidente da RENATIN Rio de Janeiro (Rede Nacional de Teatro Infantil) e curador internacional da FITA.

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