Adultério

Crítica da peça “Quatro pessoas”

10 de maio de 2008 Críticas

 

Foto: divulgação.

Para compreendermos o que acontece com a peça Quatro Pessoas precisamos olhar brevemente para o texto original e lembrar o que se passava na época de sua gênese. Mario de Andrade pesquisou durante um bom tempo de sua vida quais eram os aspectos humanos que formavam as características do brasileiro. Chegou a formular estereótipos bem reconhecíveis em nossa sociedade. Resgatou uma cultura nacional extremamente ligada às nossas raízes indígenas e africanas, deixando uma larga contribuição registrada em sua obra, como em Danças Dramáticas do Brasil: Folclore. Em uma de suas pesquisas pela brasilidade, reconheceu perfis comportamentais característicos, como o do João bobo, um tipo de malandro que busca revelar a falsidade de que o verdadeiro macho é o que se fixa em amar uma fêmea só, perfil que aparece em um dos personagens do texto Quatro Pessoas. Outros perfis foram sendo codificados na busca por reconhecer figuras e relações sociais; Violeta, esposa conformada de João; Carlos, o homem admirável e Maria, sua esposa. Nesse estudo, Mario de Andrade queria entender qual são as semelhanças que ligam a diversidade humana, o que acabou por se tornar uma busca por auto-conhecimento.

Porém, a Segunda Guerra Mundial o fez pôr de lado esse aspecto do seu trabalho. Mario de Andrade ficou desiludido com a queda de Paris em 1940 e não deixa inacabada sua tão anunciada obra Quatro Pessoas: ele a abandona, abandona o conceito. Ele abandona a caracterização de um modelo de mundo que inclui o homem por um modelo de mundo feito pelo homem.

A peça mostra quão caricatos são esses antigos perfis de comportamento. Os discursos que reforçam esses preconceitos soam anacrônicos. O modelo antigo de família, de alta sociedade, de amizade e de amor são postos em questão quando vemos na peça quão frágeis eles são. A apresentação do projeto Quatro Pessoas, com esse distanciamento histórico, nos faz identificar em nossas vidas os resquícios da antiga fórmula que norteava as escolhas do início do século XX, oferecendo uma possibilidade de reflexão sobre as nossas escolhas nos dias de hoje.

O Modernismo nos faz repensar antigos temas sem a preocupação de estarmos questionando tabus. Por esse ponto de vista é que o leitmotiv da peça, o adultério, se mostra interessante. Cada uma das quatro pessoas expressa de forma inesperada dentro das cenas suas angústias por conviver com o adultério alheio. Talvez nesse ponto o pianista Mario de Andrade tenha composto na trama um verdadeiro quarteto: as reações vividas em cena parecem dançar sobre o tema da traição, levadas pela trilha de piano, que aos poucos nos ajuda a olhar o todo e a eliminar o preconceito por qualquer um dos personagens. A desconfiança e a incerteza entre eles fica evidente e os incomoda. No momento da peça em que João dança um tango com Maria, na festa de aniversário de Carlos, quase todos os fatos da trama são postos na mesa, mas continuamos sob suspense. A partir deste momento, a peça entra num jogo de negociação entre o esperado e o inesperado. No esquema do livro deixado por Mario de Andrade o adultério é um fato certo; na peça permanece, um tom de dúvida que enfraquece a verossimilhança da reação dos personagens, tornando-as desmedidas. João não tem um motivo forte o suficiente para chantagear Maria, mulher de Carlos (seu melhor amigo). E Carlos não tem motivo para odiá-la com a tal intenção fatal.

A ambientação da peça em maio de 68 foi pouco aproveitada no perfil dos personagens, o movimento passou apenas do lado de fora e de forma um pouco antiquada. Ambos os casais foram isolados entre quatro paredes, formando um claustro psicológico que, na verdade, ajudou a destacar apenas a visão de mundo deles. Apenas por antítese poderia haver uma conversa entre os ideais dos manifestantes e as tradições carregadas pelas quatro pessoas. Na primeira metade da peça, os personagens falavam sobre temas banais e corriqueiros e, a partir de determinado momento, foi difícil identificar uma coerência entre aqueles personagens e seus respectivos discursos. Não é crível que o personagem criado para Maria pela atriz Mônnica Emilio tenha lido Proust, nem que o João de Renato Livera tenha visto Oiticica e Lygia Clark, e não parece que tiveram contato com o cinema de Godard e Truffaut para conhecer Jean-Pierre Leaud. Todos os citados nessas referências, em seus tempos, mostraram o intolerável, forçando, através da percepção, o pensamento e a reflexão. Os personagens não se encaixam nessa condição e parecer forçado vê-los conversar com naturalidade sobre tais artistas.

Sem dúvida um trabalho baseado na obra de Mario de Andrade pressupõe algo de antropofágico, onde o homem se devora e se renova. Isso acontece com os personagens, de alguma forma, na cena que parece ser o clímax da peça. Nos momentos finais, em meio à explosão de sentimentos confusos, é possível vislumbrar suas epifanias e descobrir que eles não são quatro figuras estereotipadas que estão sendo retratadas: são quatro pessoas.

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