A questão da identificação e da presença

Crítica da peça Histórias de amor líquido, de Walter Daguerre

19 de janeiro de 2011 Críticas
Atores: Ana Kutner e Márcio Vito. Foto: Chico Lima.

“Comprometer-se com um relacionamento, irrelevante ao longo prazo, é uma faca de dois gumes. Faz com que manter ou confiscar o investimento seja uma questão de cálculo e decisão.”

Zygmunt Bauman em Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos


O espetáculo Histórias de Amor Líquido é constituído por três tramas paralelas, organizadas de maneira fragmentada. O autor Walter Daguerre baseou-se, como fonte de inspiração fundamental para constituir sua dramaturgia, na obra do sociólogo polonês Zgymunt Bauman, em especial no estudo intitulado Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Desta maneira, opera-se no espaço cênico do Teatro Poeira, sob a batuta do diretor Paulo José, um sistema de procedimentos criativos em que situações fabulares, vivenciados por sujeitos ficcionais problematizados em sua individualidade e em graus variados de complexificação, são elaborados pelo autor do texto teatral numa aproximação com dados e conceitos apontados por Bauman na sua tese. O sociólogo discorre sobre visíveis mudanças nos relacionamentos afetivos instaurados pela pós-modernidade líquida (metáfora que muito vem a calhar e que se contrapõe à era das ideologias sólidas dos séculos passados) nas últimas décadas, provocando efeitos singulares no atual modo de pensar e agir com o próximo na contemporaneidade.

Neste pano de fundo apresentado como desequilibrado e fugaz por constantes mudanças nos regimes superficiais de convivência, a linguagem do espetáculo tensiona o efeito de presença na interação entre os indivíduos ficcionais, inseridos nas cenas descritas pelo autor como “Rua sem saída”, “A corretora” e “A casa da ponte”. Esses três cosmos, estruturados no entrecruzamento das ações, acolhem personagens que procuram tanto se situar no limite desse sentimento de insegurança que a nova ordem do pensamento pós-moderno os envolve, quanto escamotear a vulnerabilidade a que estão submetidos nos conflitos do dia a dia, condições pré-estabelecidas pela falta de certezas e perspectivas nas relações interpessoais.

Em todo caso, o que Walter Daguerre promove como experiência estética é o sentimento de identificação que se pretende no jogo de relações do receptor com os protagonistas da cena – uma espécie de espelho cênico-dramatúrgico atual, que pretende refletir como representar as neuroses e frustrações do nosso tempo sem que respostas prontas sejam impostas por comportamentos de uma camada social vigente (como no teatro naturalista burguês). Pelo contrário, aqui vejo a exposição de máscaras que a contemporaneidade nos oferece, como leque de opções, a fim de enfrentar as novas regras do jogo, para que se possa continuar sobrevivendo sem que sejamos atingidos por armadilhas sentimentais que nos façam parecer fragilizados e impotentes.

Sintomas como a solidão e o abandono são captados pelo espectador, como na trama envolvendo a secretária Graça e o vigilante Zé Carlos (interpretados respectivamente por Ana Kutner e Marcio Vito) no primeiro episódio apresentado em cena. A cancela é um dispositivo cênico indicativo de que a rua onde o segurança trabalha, sem folgas e sem descanso, está possivelmente interditada. Este elemento acaba adquirindo também uma outra leitura, à medida que vamos conhecendo o passado dos dois sujeitos e as histórias de vida que levavam com seus parceiros amorosos, histórias de abandono. Seus pares os preteriram, ou por uma nova chance de se dar bem na vida, como no caso de Graça, que viu o namorado Marcus (Alcemar Vieira) trocá-la pela filha de seu chefe, Raquel (Natália Garcez), ou por uma falta de visão de expectativas no outro, como foi o caso de Teresa (Bel Kutner), esposa de Zé Carlos. A cabine onde o vigilante descansa e guarda seus objetos (como o rádio que ouvimos tocar e que se torna signo de ligação com o mundo fora daquele microcosmo) é também refúgio, esconderijo, uma vontade de dizer para o outro que não há mais vontades, não há mais desejo de lutar para viver, não há mais porquês.

A noção de presença é tensionada, como foi dito acima, não de maneira tão radical que fuja dos códigos preestabelecidos da interação entre sujeitos por meio de diálogos, próprios do gênero dramático, mas sim quando a configuração do espetáculo utiliza-se do aparato tecnológico, como o recurso de projeção de imagens (de Rico Vilarouca e Renato Vilarouca), no intuito de apreender um efeito ainda mais indefinido para a composição virtual daqueles indivíduos.

No enredo de “A corretora”, Maritza (Bel Kutner), workaholic por excelência, desempenha a função de cuidar dos bens financeiros de Antônio (Marcio Vito), empresário do jogador de futebol Rudson (Alcemar Vieira) atleta que se encontra envolvido em um escândalo midiático. A relação estabelecida entre os dois empresários é mantida, na maioria das vezes, à distância, cada qual em seu próprio espaço, trocando informações de negócios, madrugada adentro, via Internet. Maritza precisa fazer com que Rudson se case, para tentar minimizar de certa forma a imagem ruim do jogador depois que este se envolvera num trágico acidente de trânsito, e, para isso, tenta seduzir Michele (Natália Garcez), uma jovem cantora de sucesso promissor, politicamente correta (virgem e, se não me engano, católica) e prestes a se casar, para que esta aceite ter um filho com ele, o atleta.

Atores: Marcio Vito e Bel Kutner. Foto: Chico Lima.

A estrutura tecnológica opera uma cisão no espaço cênico quando a figura dos dois personagens (Maritza e Antônio) é projetada no suporte que amplia e redimensiona a imagem desses dois sujeitos. Reconfigura-se um outro entendimento de presença, quando a visualidade das expressões faciais são captadas com as características próprias de uma transmissão de longa distância, com seus pequenos defeitos e imagens desfocadas, sem muita nitidez. Podemos vê-los em cena, na materialidade de seus corpos e presença física, mas também de maneira virtual, dividida, reiterando ainda mais o código instaurado na representação de uma duplicação da espacialidade. No episódio de “Rua sem saída”, o recurso da interação do ator em cena com a imagem projetada também é explorada quando aquelas duas figuras insones (Graça e Zé Carlos) travam um enfrentamento dialógico com os fantasmas de seus passados, ou seja, seus pares amorosos, em flashback. Marcus, Raquel e Teresa surgem diante de nós, enquadrados na “moldura” do suporte que os projeta, porque não fazem mais parte da vida de seus ex-cônjuges. Novamente, fica perceptível uma outra duplicação, dessa vez não só de espaços (da presentificação dos personagens na área cênica e da captação de sujeitos em vídeo) mas também de tempo (o instante presente da representação e o passado que surge por meio das recordações).

A tecnologia ou a falta que ela faz ao indivíduo contemporâneo, principalmente quando torna-se falha, vira pretexto no último episódio do espetáculo, “A casa da ponte”, em especial quando o autor cria situações onde os protagonistas da trama, Ricardo (Alcemar Vieira) e Sofia (Ana Kutner) viajam para uma casa de campo e esquecem de levar baterias, carregadores de celulares, laptops e outros artefatos que mantenham os aparelhos funcionando. Sozinhos e ilhados na casa que Ricardo herdara de seus pais – onde vão esperar pela visita do advogado para negociar a venda do antigo imóvel – sem ter o que fazer ou ouvir, já que o universo conspirou para que nada funcionasse na noite em que chegassem à residência, não resta muita coisa a fazer a não ser discutir a situação de amantes do casal, a necessidade que ambos, em especial Ricardo, sentem em buscar sexo casual com parceiros desconhecidos, além de questionamentos sobre insegurança numa aposta de assumir uma relação mais duradoura, centrada e com um filho à caminho.

Uma atmosfera lúdica se estabelece no decorrer da cena, principalmente quando Ricardo conta a história da maneira como a ponte fora construída quando este era criança e o medo que o próprio sentia ao chegar do outro lado dela, já que uma bruma muito espessa impedia (e impede até depois de crescido) a visão de seu fim. Esse tom de fábula que se articula na trama vai instaurando na cena zonas de poeticidade, na medida que os dois hóspedes da casa abandonada vão vasculhando os velhos objetos guardados ali durante os anos, obrigando Ricardo a se permitir e resgatar da memória os significados que os mesmos objetos representavam tanto para ele quanto para seus familiares.

Os signos dispostos no espaço cênico, como baú, cavalete, discos, vitrola e outros adereços transformam o ambiente da sala num velho sótão (transformação apenas alusiva) já que este lugar é por excelência aquele onde despejamos resquícios materiais de nosso passado, como os próprios objetos que já foram mencionados e outros elementos considerados ultrapassados. É neste cenário da casa que Ricardo se depara com a materialização dos fantasmas de seus pais (Marcio Vito e Bel Kutner). Essa liberdade poética provoca um efeito de respiro no conjunto da obra, permitindo ao receptor se deixar envolver pela sensibilidade que aquela efêmera reunião familiar constitui no âmago das relações tumultuadas, estruturadas e apresentadas na arquitetura cênica do espetáculo.

Pedro Allonso é ator e aluno do curso de Teoria do Teatro da UniRio.

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