O mundo contemporâneo em desalento

Crítica da peça O céu está vazio, de Julia Spadaccini, com a Cia Casa de Jorge

13 de maio de 2012 Críticas
Foto: Divulgação.

Antes de iniciar, gostaria de deixar duas questões, com suas respectivas respostas, para a reflexão.

1ª questão: Por que o mundo virtual é tão atraente?

Porque é lúdico. É um mundo coerente com a maneira de viver dos jovens, não exige engajamento nem compromisso. Ali qualquer um pode viver uma série de vidas sucessivas sem nenhum compromisso definitivo. As pessoas querem se distanciar da realidade não porque ela seja assustadora ou sem-graça, mas porque ela implica sempre um limite. Além disso, a realidade requer uma identidade, um objetivo mais ou menos claro na vida, ao passo que esses exercícios virtuais não pressupõem nenhuma identidade, nenhuma perspectiva e ainda derrubam todos os limites, incluindo os do pudor e da polidez.

2ª questão: Por que atualmente os casamentos não duram? A vida a dois ficou inviável com o novo arranjo social que igualou os papéis do homem e da mulher?

Pelos padrões vigentes na sociedade atual, nos é recomendado ao longo da vida renovar os objetos dos quais nos servimos. Trocar de carro, de tapetes, de mobília, etc. As relações afetivas acabaram seguindo esse mesmo princípio, dos objetos descartáveis. Elas não resistem a esse apetite de rejuvenescimento e renovação da sociedade contemporânea.

O trecho acima é parte integrante de uma entrevista concedida pelo psicanalista francês Charles Melman, na qual, entre outros assuntos, ele discorre sobre a vida contemporânea e suas peculiaridades, referindo-se ainda à falta de fé nos tempos atuais, a falta de chão afetivo e sobre a grande transição pela qual a sociedade contemporânea está passando.

A peça O céu está vazio, esteve em cartaz no Rio de Janeiro em duas oportunidades. No mês de janeiro no Centro Cultural da Caixa e no mês de março na Casa de Cultura Laura Alvim. A peça foi escrita por Julia Spadaccini, dirigida por Jorge Caetano e encenada pela companhia Casa de Jorge, que desde 2005 traz para os palcos os textos de Julia. O céu está vazio é a terceira parceria entre a Cia Casa de Jorge e a dramaturga, os dois trabalhos anteriores foram Não vamos falar sobre isso agora (2007) e Os Estonianos (2008). Nesta nova empreitada, Julia foi buscar inspiração nos escritos do psicanalista lacaniano francês Charles Melman, para discutir as agruras do homem contemporâneo, abordando as dificuldades das relações humanas, das relações familiares, a solidão, a afirmação individual e a necessidade do outro.

Em O céu está vazio, somos convidados a acompanhar a história de Ivan (Paulo Giardini), que é casado com Laura (Ticiana Passos) e mantém um caso extraconjugal com Sandra (Thais Tedesco). Ele vive ambas relações de maneira tediosa e não está satisfeito nem com uma e nem com outra. Ivan segue seu cotidiano sem grandes perspectivas ou planos, é um homem de meia idade sem grandes objetivos na vida. Ele apenas vive um dia após o outro e isso lhe basta. Além disso, Ivan tem dificuldades de comunicação com o filho adolescente, Lui (Rael Barja). Um jovem melancólico e solitário, adepto do movimento Emo – tribo que cultua músicas em tons melódicos e expressivos e que por vezes é associado a estereótipos emotivos, ou mesmo melancólicos, uma pessoa jovem que é considerada excessivamente emocional – que tem suas atitudes censuradas pelo pai que não o compreende. A trajetória de Ivan passa por um momento extremamente conturbado quando ele é expulso de casa por sua esposa Laura, depois que ela descobre um bilhete deixado por Sandra propositadamente em seu bolso. Para agravar ainda mais a situação, Ivan padece de problemas auditivos. Ele tem crises recorrentes de uma doença chamada síndrome do zumbido – um distúrbio que se caracteriza por ruídos intermitentes que ecoam dentro de sua cabeça – e que insiste em incomodá-lo indefinidamente, com períodos ocasionais de trégua. Não suportando mais sua condição, ele sai à procura de tratamento e encontra uma terapia que promete lhe trazer alívio. Logo em sua primeira consulta, ele conhece uma jovem, Emília (Priscila Steinman). A partir da convivência com ela, Ivan transforma a sua vida e melhora seu relacionamento com o filho. Emília é uma jovem Cosplayer – atividade praticada principalmente por jovens e que consiste em disfarçar-se ou fantasiar-se de algum personagem das histórias em quadrinhos ou dos mangás – que possui o mesmo problema auditivo que Ivan, porém, sua atitude positiva diante da enfermidade e sua visão otimista ajudam Ivan a perceber o mundo de outra maneira, de um modo mais lúdico, mais leve, fazendo com que este passe a compreender um pouco mais o universo jovem presente e consiga enfim manter um diálogo com seu filho.

A encenação dirigida por Jorge Caetano procura ser bastante fiel ao universo criado pela autora. Não obstante, a dinâmica do espetáculo segue a linguagem das histórias em quadrinhos, em que as cenas são mostradas em quadros e em sequências breves que vão envolvendo o espectador de forma bastante peculiar. Em um primeiro momento, não há uma total compreensão daquilo que vemos em cena, pois um grande caldeirão referencial se descortina às vistas do público e que pode, em um primeiro momento, desagradar aos menos familiarizados com os elementos do universo pop-contemporâneo – Emos? Cosplayers? – que aparecem em cena como pano de fundo da peça. Entretanto, com o desenrolar do espetáculo, somos abarcados pela história e temos mesmo a sensação de estarmos lendo uma Graphic Novel, no melhor estilo de Will Eisner ou Frank Miller, e somos conduzidos pelo clima nonsense, pelo kitsch, pela comédia e pelos exageros próprios dos quadrinhos, de maneira bastante integrada à peça. Quando nos apercebemos, já estamos conectados às personagens e seguindo atentamente os desenrolar dos fatos.

Além do texto ágil de Julia e da direção eficaz de Jorge Caetano, que compreendeu de forma inequívoca o universo retratado em cena, os outros elementos que compõem a encenação contribuem para um belo espetáculo teatral. Vale a pena destacar a cenografia de Fernando Melo da Costa, a iluminação de Ana Kutner, os figurinos de Flávio Graff e os videografismos de Rico Vilarouca. Menciono também a trilha sonora escolhida por Jorge Caetano, além é claro, de um elenco bastante coeso. Não há destaques individuais que possamos salientar. Aqui a atuação conjunta dos atores é um dos pontos fortes desta montagem.

O céu está vazio prova ser uma experiência bastante interessante. Uma fusão bem equilibrada entre o mundo contemporâneo – com suas referências pop – e o pensamento filosófico entorno do comportamento humano atual no que diz respeito às relações afetivas e familiares.

Referência bibliográfica:

SOARES, Ronaldo. A psicanálise não promete a felicidade. Abril de 2008. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/entrevistas/charles_melman.shtml>. Acessado em: 26 de abril de 2012.

Raphael Cassou é ator, iluminador e graduando em Teoria do Teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.

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