O teor fantástico da redenção

Crítica da peça Criados em cativeiro, de Nicky Silver

9 de fevereiro de 2012 Críticas
Foto: Daniela Dacorso.

Criados em cativeiro é um texto do dramaturgo americano Nicky Silver, escrito em 1995, que problematiza a ideia dos atos de redenção nos percursos da vida. A redenção que aparece é atravessada por possibilidades de libertação e de deixar o outro ir – um deixar -se estar e ir para construir ou refazer as perdas amorosas. Assim, a noção de drama se estabelece quando revela por meio dos diálogos os traumas passados, os fracassos, as angústias atuais, a solidão e, sobretudo, a alienação em que estão mergulhados os indivíduos. O cativeiro dos personagens está impresso (em negativo) em suas relações que se encontram presas nos acontecimentos recalcados do passado. A particularidade da dramaturgia de Nicky Silver é sua construção por diálogos vertiginosos e de teores quase inverossímeis que não respeitam aspectos de transição psicológica. Esse aspecto revigora o trágico, mas ao mesmo tempo, os processos de livramento dos fantasmas são também quase inverossímeis, cômicos e sem a sempre desejada profundidade, que provocam o seu desfazimento ou esvaziamento.

A peça dá a ver a história de dois irmãos gêmeos que vivem distantes um do outro e que se encontram na primeira cena no cemitério após o enterro de sua mãe. Esta última morreu enquanto tomava banho e foi atingida pelo chuveiro que se desprendeu com a força da água. Frederico e Bernadete são os irmãos, ambos, em diferentes modos de desconexão. Frederico vive há muitos anos afastado dos amigos, das relações amorosas, desde que seu amante faleceu há onze anos vítima da AIDS, das possibilidades de viver e se expressar por seu trabalho. Suas únicas conexões são com sua terapeuta – relação já em declínio e vazia após mais de quatro anos – e com um assassino preso com o qual se corresponde. Marlon, o personagem que está literalmente preso parece ser o único com discernimento afetivo. Frederico está falido, vive uma vida sustentada pela virtualidade dos cartões de crédito. Na cena inicial ele está (como um Hamlet) lendo um livro que, sintomaticamente é Helter Skelter. Com o afastamento do irmão, foi Bernadete quem cuidou da mãe. Ela encontra refúgio alegre em chorar repentinamente e em se considerar eternamente gorda. É casada com Kip, um dentista que odeia sua profissão e é um pintor frustrado. A terapeuta de Frederico é uma mulher amargurada que foi abandonada pelo marido e, no seu entender, também pelos pais.

A direção de Jefferson Miranda estabelece um nível de suspensão que elabora o problema da redenção na dramaturgia quando imprime a sensação de que os personagens estão colocados sobre um lugar. Não existe a noção mais conhecida de organicidade e contexto, mas uma espécie de sobreposição que tanto ilumina as sobredeterminações da dramaturgia, quanto exige do espectador uma operação de semelhante sobre-interpretação. O trabalho de Jefferson parece encontrar aqui uma forma expressiva de sobredeterminações que tensiona o acúmulo com a superfície e, portanto, provoca o deslocamento e o estranhamento. Acredito que a exigência de uma interpretação que se constitui por uma simultaneidade de referências, de temporalidades, de imagens e de discursos está impressa na cena.

Uma primeira verificação se dá na troca do lugar entre plateia e palco no Oi Futuro Flamengo. Para além dessa criação específica de lugar a cenografia de Cristina Novaes, que estabelece planos distintos que materializam a fragmentação da dramaturgia e do estado dos personagens, cria um lugar apropriado para que tudo pareça pousado sobre o espaço. Essa sensação se amplia no colorido dos degraus que nos remetem a Mondrian, pois estimulam a percepção de alguma coisa que já existe, um objeto pronto. Então não se pode ter a sensação de linhagens causais de acontecimentos, o que atesta a presença da terapia, da aparição do fantasma da mãe (brincadeira em avesso de Hamlet), das cartas que se misturam entre as vozes dos remetentes e destinatários e das revelações simultâneas dos personagens em cena. Pura impressão da criação sobredeterminada dos sonhos. A interferência da luz de Tomás Ribas e das sonoridades nas falas de Frederico em que o personagem procura, ato falha e corre atrás das palavras também se mostram nessa direção. A trilha sonora de Felipe Storino cria sub-repticiamente uma atmosfera paradoxal para a cena.

O trabalho dos atores procura criar imagens e sensações atualizadas em suas corporalidades. A Bernardete de Christiana Guinle formaliza o paroxismo dos acúmulos vividos e parece pautada por um movimento involuntário de defesa do mundo com sua coluna ligeiramente curvada para trás. Os figurinos da personagem, criados por Valéria Stefani, sobretudo, o vestido inicial e o do segundo ato, são tão belos que pousam na atriz, ainda mais, em operação de contraponto com a sua rigidez da coluna, imprimindo um desconforto e um deslocamento próprio da personagem em ato. Frederico é vivido por Alcemar Vieira, que oferece um teor de indiferença – talvez esse seja um dos sintomas mais perversos da crítica à redenção que faz com que o personagem se agarre ao fantástico no segundo ato. Essa indiferença é construída por Alcemar por meio de gestos sutis, pequenos, andar leve, movimentos do olhar e um certo ar dândi (mas não afetado) que tensionam os gestos grandes de Chirstiana Guinle em uma boa conjugação, trazendo clareza de intenções para a cena. Marcio Vito faz Kip, o marido de Bernadete que deixa definitivamente sua profissão de dentista para pintar quadros todos de um medo branco. O ator presentifica inusitadamente a alienação do personagem, principalmente, no primeiro ato e, assim, é um dos responsáveis pelo esclarecimento da crítica que a dramaturgia faz à redenção. Deise Manttuano também promove essa operação, embora de modo distinto, por meio da estilização do elemento trágico e boas pontuações cômicas. Alonso Zerbinato procura por uma medida certa de gestos econômicos, tanto para o assassino Marlon, quanto para o michê Roger.

A encenação de Criados em cativeiro oferece uma experiência que demanda o trabalho do espectador e que, ao mesmo tempo, cria condições de possibilidades para uma fruição na qual ele possa encontrar momentos de identificação sem, no entanto, se sentir como que colado, fixado nesses mesmos momentos. Incorre no fato de que as escolhas das produções teatrais,quando trabalhadas com intenções de precisão, contribuem para a expansão dos modos de lidar com as coisas. E isso interessa ao espectador de teatro.

Dinah Cesare é Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na linha de pesquisa Poéticas Interdisciplinares, é mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

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