Memória afetiva de um amor esquecido
Artigo sobre o processo de criação da peça do grupo Os Dezequilibrados
A pesquisa teórica para esse espetáculo, inspirado no filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, de Michel Gondry e, também, no universo cinematográfico do roteirista Charlie Kaufman, partiu da análise dos conceitos de identidade e de memória.
Para os filósofos empiristas ingleses do século XVIII, é a prática do diálogo interno o que garante, para nós mesmos, que somos unos e portadores de uma determinada identidade. E essa crença, segundo eles, é fundamental para que não percamos, a cada momento, nossas referências. Essa prática, portanto, seria a responsável pela manutenção de nossa sensação de identidade. Outra forma de garantir coerência para o eu, ainda segundo os empiristas, seria a da associação de idéias, onde a noção de causalidade imprimiria ordem e regularidade ao fluxo mental e permitiria que, a despeito da variedade e do movimento que caracteriza esse fluxo, ele seja percebido como simples e contínuo. Em outras palavras, somos mudança e movimento e temos que permanecer os mesmos. O paradoxo, aqui, é que, para dialogar, temos que ser vários. Ou seja, nos dividimos para acreditar que somos um. E o trabalho da memória seria fundamental nesse processo de construção de uma determinada identidade.
Combatida por diversos pensadores, essa noção de identidade é particularmente desconstruída nas filosofias de Friedrich Nietzsche e de Henri Bergson, e foi precisamente esse um dos eixos de nossa pesquisa. Bergson propõe uma concepção do ser que é puro movimento (BERGSON, 2006). Para ele, não há corpos se movendo, pois os próprios corpos já seriam movimento. A própria matéria seria movimento. E o sentido da memória, aqui, seria sempre o de atualização. O passado sobreviveria sob duas formas distintas: em mecanismos motores e em lembranças independentes. E a operação prática da memória se realizaria, portanto, no próprio funcionamento automático do corpo e na busca de representações do passado que, atualizadas, possam servir para a situação presente. Sendo que esses dois tipos de memória se fundem se considerarmos, com Bergson, que não percebemos outra coisa que nosso passado imediato e que a própria consciência do presente já seria memória. Nosso corpo, dentro dessa concepção, seria a parte sempre renascente de nossa representação, aquela que acaba, a todo momento, de passar. Sendo ele próprio imagem, o corpo não poderia armazená-las, já que faria parte delas. O próprio cérebro seria imagem e, portanto, elas não poderiam estar nele. Nossa consciência do mundo viria do fato de que essa imagem muito particular – o corpo – seria, a cada instante, um corte transversal do universal devir. Aqui, portanto, não há espaço para a noção de identidade. Temos uma verdadeira luta contra todo o idealismo e uma aproximação das propostas de Nietzsche, para quem também, no homem, não haveria uma só identidade e, sim, uma pluralidade de instintos em luta. O que chamamos eu seria, para ele, a cada instante, o resultado provisório dessa luta (NIETZSCHE, 1991). O homem, então, estaria no mundo muito mais como efeito provisório do que como sujeito permanente. Ou seja, retirados circunstâncias e acidentes que constituem uma vida, nada mais restaria de permanente que pudesse responder por nossa identidade. Temos, aqui, uma concepção processual da vida, processo esse inteiramente imanente” onde a vida seria o “percurso no qual alguém se torna, a cada instante, quem é” (NIETZSCHE, 1991). O eu seria, portanto, a configuração, sempre provisória, de forças e efeitos esculpidos no encontro fortuito com as circunstâncias. Em outras palavras, um devir a ser permanentemente criado e reinventado. Talvez possamos dizer, a partir disso, que a questão, para Nietzsche, seria a afirmação da própria perda de referências a cada momento, sem querer evitá-la através do diálogo interno, da associação de idéias ou de qualquer outra estratégia. Para os empiristas, essa perda poderia nos aproximar da loucura; para Nietzsche, ela pode ser a possibilidade de viver plena e efetivamente.
Em outro eixo de nossa pesquisa, nós deslocamos essas questões, tratando-as em relação ao mundo contemporâneo e, mais especificamente, ao modo como as relações amorosas acontecem dentro desse contexto, onde a idéia de liberdade é vista quase como uma obrigação. Com a crise das instituições que, de certa forma, asseguravam identidade ao homem, é ao próprio indivíduo contemporâneo que essa responsabilidade é transferida. Ele é obrigado, por escolhas individuais e adesões a certos estilos de vida, a manter em andamento uma narrativa particular, escrevendo a própria biografia. Ou seja, ele está “condenado a ser livre”. Para o sociólogo Zygmunt Bauman, os cidadãos de nossa líquida sociedade moderna – líquida no sentido de mudanças rápidas e de forma imprevisível – estão desligados, não tendo mais ligações definitivas. Então precisam conectar-se. Mas nenhuma dessas conexões tem a garantia de permanência. Pelo contrário. Os laços são frouxamente atados para que possam ser desfeitos quando os cenários mudarem (BAUMAN, 2004). A fragilidade dos vínculos, para Bauman, está nesse conflito: querer apertar os laços e, ao mesmo tempo, deixá-los frouxos. Querer a segurança da relação e desconfiar de que estar ligado eternamente significa abrir mão da liberdade para se relacionar. Liberdade essa que pode ser traduzida na fórmula “seja você mesmo”. Jurandir Freire Costa, por outro viés, também coloca a mesma questão. No artigo “A ética democrática e seus inimigos”, ele localiza, nas elites brasileiras, uma violência contra as camadas populares a partir do “alheamento em relação ao outro”, ou seja, a não consideração do outro como um ser moral. A partir dessa postura, a preocupação dessas elites, segundo Jurandir, passaria a ser com a própria subjetividade. Elas estariam desenraizadas (líquidas?) e teriam perdido o sentido da história, voltando-se, a partir daí, para as questões privadas. O que restaria, para elas, seria a tentativa de ser feliz individualmente, em uma busca desesperada por algo que possa dar sentido à vida. Aqui, também temos a questão da liberdade como algo a ser conquistado. Sendo que não podemos confundir essa noção de liberdade idealizada na contemporaneidade com o modo como Nietzsche e o próprio Bergson tratam a questão. Tanto o “tornar-se quem se é a cada instante”, de Nietzsche, como a idéia de “movimento total”, de Bergson, pressupõem uma compreensão mais profunda dessa questão. Temos, aqui, uma implicação direta entre liberdade e tempo e entre liberdade e devir, que seria, segundo esse modo de pensar, a dimensão do fundamento do tempo. Em Nietzsche e Bergson, o que importa é afirmar o acontecimento, estar implicado nele, e não simplesmente fazer escolhas entre estados de coisas que se sucedem no tempo cronológico. Em outras palavras, não se trata de escolher entre casar ou separar, mas, sim, afirmar a opção escolhida, seja ela qual for. Fazer a “escolha da escolha”, que significa estar implicado no acontecimento e, como conseqüência, aberto ao acaso, visto que não há como prever todos os acontecimentos de uma vida. Esse modo de entender a existência descarta completamente a hipótese metafísica de uma essência transcendente que, desde Platão e seu mundo das idéias, vem sendo desenvolvida no Ocidente. A noção de liberdade na contemporaneidade ainda está profundamente contaminada por um desejo de transcendência, que pode chegar a extremos como, por exemplo, a idéia de que seria possível transferir integralmente aquilo que seria a nossa essência para dentro de um programa de computador. David Le Breton, em seu ensaio “Adeus ao corpo”, nos fala de pesquisas científicas que levam muito a sério essa idéia, afirmando, por exemplo, que, através de um chip colocado no cérebro, todos os dados de uma vida poderiam ser arquivados e colocados, livres do corpo físico, dentro de um computador. Seria o fim da idéia de morte e o início de um outro período, o chamado pós-humano, sem o peso do corpo físico, considerado obsoleto por esses pesquisadores. Não poderíamos aproximar essa teoria, mesmo considerando a sua radicalização, da idéia platônica de que o corpo físico com seus afetos é que seria o responsável pelo entrave no conhecimento da verdade?
Nossa pesquisa acabou nos levando a dois modos de entendimento do mundo e do homem, a dois modos de pensá-los. Por um lado, a crença metafísica em uma essência que transcenderia qualquer possibilidade que nosso mundo possa oferecer. Por outro, a afirmação incondicional desse mesmo mundo e a potencialização das mesmas possibilidades negadas pela metafísica. Como caminhar dentro disso? É exatamente o que estamos buscando entender ao construir esse espetáculo. Essas questões estão colocadas. Queremos entender o paradoxo de, para viver, termos que criar uma identidade, apesar de sermos vários. Que estratégias usamos para validar essa crença? Como o sistema (capitalista) se utiliza dessa necessidade de identidade para colocar sua máquina em andamento? E como tudo isso afeta uma relação amorosa na contemporaneidade?
Queremos, também, saber se é possível fazer a escolha da escolha e afirmar a vida “do lado de cá”. Vicente e Dora, os personagens centrais de nossa peça, lidam com essa questão. E nós também. Queremos descobrir, através do teatro, se é possível fazer essa opção. Pois em um tempo midiático em que a liberdade aparece como a mais completa desobrigação do indivíduo, acreditamos que o teatro, que tem a ver com memória e com compromisso, pode servir como resistência a esse movimento. Ele seria, nesse sentido, extremamente político, sem, no entanto, ser partidário. E não queremos fugir a essa responsabilidade. Pelo contrário. As questões estão colocadas. Agora, queremos, junto com o público, pensá-las e colocá-las em movimento. Se conseguirmos isso, todo o esforço terá valido a pena! E talvez possamos, então, dialogar com Fernando Pessoa quando ele nos diz, em seu poema “Que espécie de homem sou”:
“É necessário agora que eu diga que espécie de homem sou. Meu nome, não importa (…) a constituição inteira de meu espírito é de hesitação e de dúvida (…) tudo para mim é incoerência e mudança (…) nunca tive uma decisão nascida de um auto-comando, todos os meus escritos ficaram inacabados; sempre novos pensamentos se interpunham, associações de idéias extraordinárias e de término infinito (…) o caráter de minha mente é tal que odeio os começos e os fins das coisas, porque são pontos definidos. Aflige-me a idéia de que se descubra uma solução para os mais altos e mais nobres problemas de ciência e filosofia; horroriza-me a idéia de que uma coisa qualquer possa ser determinada por Deus ou pelo mundo. Enlouquece-me a idéia de que as coisas mais momentosas possam realizar-se, de que os homens pudessem todos ser felizes um dia, de que se encontrasse uma solução para os males da sociedade. Contudo não sou mau nem cruel; sou louco e isso dum modo difícil de conceber (…)”
Referências bibliográficas:
DELEUZE, Gilles. Empirismo e subjetividade. Rio de Janeiro: Editora 34, 2002.
BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
NIETZSCHE, Friedrich. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
BRETON, David Le. “Adeus ao corpo”. In: NOVAES, Adauto (org). O Homem-Máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.
PESSOA, Fernando. Quando fui outro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.