Literatura e teatro, citações e comentários

Crítica da peça Fitz Jam

10 de abril de 2008 Críticas
Foto: Jardel Maia. Atores: Daniela Fortes, Marina Vianna e Leonardo Netto

Toda disciplina ou arte tem, em algum momento, a sua besta negra. A teatralidade já foi a besta negra das artes visuais, o anacronismo é a besta negra para certa noção de História e a literatura é a besta negra do teatro. Não é raro que se diga, ou que se tenha dito, pejorativamente, que determinado espetáculo privilegia o elemento literário em detrimento do teatral.

Talvez seja possível dizer, num primeiro olhar, que Fitz Jam privilegia o elemento teatral. No entanto, se questionarmos nossas noções de teatro e de literatura, talvez seja até possível dizer que Fitz Jam privilegia, na verdade, o literário – numa literatura que subverte seus princípios mais tradicionais. O caso é que esta peça não dá atenção especial a uma ou outra arte, mas a procedimentos e operações característicos do processo de criação artística. Há humor, no entanto, na própria escolha de fazer uma peça com dispositivos estéticos que reiteram algumas noções de teatralidade em voga no teatro carioca atual, mas que tem, como objetos em foco, um texto literário e a biografia de seu autor, F. Scott Fitzgerald. É como se a besta negra fosse o ponto de partida, como se o espetáculo formulasse, sub-repticiamente e sem pretensões de respostas, perguntas sobre a relação entre teatro e literatura.

Contemplando o resultado do processo de organização dramatúrgica do material proposto pelo elenco, fica em evidência algo particularmente literário – as diferentes vozes que atuam na construção de um texto – e um dado especialmente teatral – a convivência espacial destas vozes, sua presença física, seu enfrentamento. Quanto às vozes que atuam no texto, me refiro, por exemplo, a uma espécie de conversa que acontece no espetáculo entre a voz narrativa e a voz dialógica. A dramaturgia provoca tensão entre narrador e personagens, entre uma voz que conta a história e outra que a ilustra ou que provoca ilusão, de forma que uma pode desmentir ou revalidar a outra, ou simplesmente fazer comentários. Um exemplo mais nítido disso acontece quando dois atores estão fazendo uma determinada cena e o ator que geralmente aparece no lugar do narrador ou do próprio Fitzgerald diz: “Esta frase não é do Fitzgerald”. Pode-se dizer que todo o texto está tensionado, de maneira mais indireta, por esta possibilidade de interferência interna. Quanto à convivência espacial dessas vozes, é possível dizer que tal tensão interna é provocada pela mera presença dos atores na arena, pois mesmo quando não há a verbalização de um comentário, o próprio olhar de um ator ou sua localização no espaço pode interferir na constituição de sentidos. Isto não acontece apenas na relação narrador/personagens, mas também na presença dos atores como atores, como personagens de si mesmos, que uma vez ou outra revelam uma atitude reflexiva com relação à criação daquele trabalho ou comentam seus dados biográficos em paralelo com a narrativa do conto ou da biografia do Fitzgerald.

O nome do conto de Fitzgerald que é posto em cena – O diamante do tamanho do Ritz – pode funcionar como metáfora para determinada noção de obra de arte: algo sólido, coeso, que pode ser avaliado e dimensionado, que pode ser comprado por uma certa quantia e pode ter um dono. Uma das etapas do processo de criação deve ter sido desconstruir o conto, objeto que se apresenta como uma totalidade (em algum momento, comenta-se a dificuldade de cortar um diamante), para em seguida reconstruir algo diverso, sem uma dimensão exclusivamente totalizante. E com bolas de gude, em vez de diamantes. A fragmentação, os comentários, a superposição de narrativas, tudo isso contribui para indicar que, mesmo prevalecendo a vontade de contar aquela história, mesmo revelando inclinações para fechar a forma do espetáculo para sua apresentação, pelo menos a abordagem daquelas idéias não é totalizante, mas plural e conflituosa. É como se um novo edifício (a peça) fosse construído sobre aquele outro (o conto), mas, de certo modo, as ruínas ficassem aparentes e certos andares permanecessem inacabados. O edifício, no entanto, está ali, construído de modo que se possa transitar por ele sem maiores problemas. A problematização que se pode apontar aqui é que as ruínas parecem, às vezes, decorativas. Além disso, os elementos teatrais que sinalizam um “inacabamento” na visualidade do espetáculo ficam desenhados de um modo tão limpo que pode parecer rubrica – mesmo que se trate de uma rubrica extensa e complexa.

Esta nova construção me parece ter sido erigida a partir de uma coleção de citações – não apenas de Fitzgerald, de suas obras ou relatos sobre a sua vida, mas penso que tudo o que foi filtrado do processo, das improvisações, recebeu, de certa forma, um tratamento de citação. Essas citações, que, via de regra, entram no teatro com um reforço um tanto pedante na fala dos atores – como se estivessem entre aspas, como se tivessem um valor de uso diferente das outras frases – recebem uma abordagem mais assumida em Fitz Jam. As frases de efeito são ditas como frases de efeito, não como diamantes da escrita de um gênio. Apenas no fim da peça há uma supervalorização da fala final. O foco fechado no ator no centro do palco funciona como aquelas aspas e a forma de dizer o texto entra num registro de atuação mais convencional, que ainda não tinha aparecido nitidamente. Mas este tratamento é anunciado: o ator Leonardo Netto sugere que o ator Renato Linhares dê uma pausa antes de uma frase (porque é a frase final). Renato propõe, então, que ela seja dita pelo próprio Leonardo e, a partir daí, o espetáculo se prepara para a declamação da frase final, num estilo declaradamente literário – ou convencionalmente teatral.

As opções variadas que o elenco e o diretor Pedro Brício usaram com relação à forma de lidar com os comentários e as citações me pareceram propor perguntas, como: Que operação se faz no teatro quando se constrói um texto a partir de vozes diversas? Como isso movimenta nossas noções de autoria? Basta classificar como criação coletiva e juntar no saco de gatos que carrega esse rótulo? E quando tem um morto entre os autores? E quando alguém assina no final? Trata-se de uma extensão da noção de fragmentação para o âmbito da autoria? A valorização da multiplicidade de vozes é um posicionamento do fazer teatral frente à literatura?

Vol. I, nº 2, abril de 2008

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