Vida e arte em suspeição

Crítica da peça Inglaterra- versão brasileira, de Tim Crouch, do projeto Peças em galeria

23 de agosto de 2012 Críticas
Foto: Divulgação.

Inglaterra – versão brasileira, dirigida por Bel Garcia e com texto de Tim Crouch, materializa questões latentes do mundo atual em um nível de entrelaçamento que causa, no mínimo, nossa perplexidade. Reconhecer que o curso dos acontecimentos é entrecortado pelo intempestivo é um processo doloroso. Compreender ainda que esse curso é interrompido por coisas que estão imersas em uma dimensão sem territórios definidos pode ser avassalador. A peça expõe a crueza do poder financeiro em que o comércio se solidariza com a noção de arte, sendo ambos importantes elementos que fomentam o par vida/morte. Existe um refinado jogo de imagens tensionadas entre o que se apreende com os termos agradecimento e reconhecimento.

Em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal, é a segunda peça do projeto Peças em Galeria que relaciona o espaço de exposição da galeria com elementos do teatro. A primeira peça foi Matamoros, baseada no conto de Hilda Hilst com a atriz Maíra Gerstner. Os dois trabalhos têm em comum o fato de serem investigações cênicas que partem da palavra, e assumem deliberadamente a ideia de construir uma teatralidade própria por meio do confronto com outras artes como o vídeo, as artes plásticas e a fotografia.

A peça acontece em dois tempos. No primeiro se dá a visita a uma exposição de fotografias. Durante a visita, o guia, um homem jovem vivido por Pedro Brício, conta sua história de amor e como sobreviveu graças a um transplante de coração que recebeu de um paquistanês. A dialética do reconhecimento está sinalizada pela incongruência entre as imagens das fotografias e a história narrada por meio delas. A exposição em questão é Olhares Sobrepostos, com a obra de seis fotógrafos brasileiros. A indicação do autor é que a peça aconteça contando com o acaso, ou seja, com a exposição que estiver na galeria. Isso agrega à encenação um valor semelhante e também distinto ao que os atores/guias estão fazendo. Acontece uma operação correlata das colagens cubistas (como acontece nos papiers collés de Picasso e Braque) que desestabiliza os sistemas de representação.

Analisando um pouco mais, é significativo pensar que o fator decisivo no deciframento que fazemos das imagens em geral é que elas se tratam de planos. Seu significado, portanto, se encontra numa superfície complexa composta pelos planos que podem ser captados por um golpe de vista. A questão é que esse movimento do olhar pode implicar no fato de que os significados nãos serão suficientes para as sugestões que vêm das imagens. O resultado é que as informações não se tornam evidentes. Essa sensação ainda se acentua por meio da guia tradutora, vivida por Maíra Gerstner, que sintetiza as palavras do primeiro, nos dando diferentes perspectivas de uma mesma língua. Os espectadores vão realizando um reconhecimento que mantém seu caráter enigmático, numa precisa alusão aos modos de fruição dos trabalhos de arte em que para se dizer algo é preciso dizer uma sucessividade, justamente pela impossibilidade de realizar isso de uma forma pura.

O espaço frio da galeria oferece a insistência da aridez que se aproxima do que normalmente associamos aos processos intelectivos. Isso também incide na nossa apreensão das obras de arte, nos tempos de fruição rápida, no congelamento que às vezes se dá na recepção. De algum modo fica-se “dentro” das fotografias, quase um mimetismo, assim como acontece ao ouvirmos uma narrativa. É como se estivesse em jogo um ritual próprio para o reconhecimento de obras de arte. A direção empreendeu uma espécie de coreografia frenética dos atores/guias que se contrapõe ao estado de fixidez das fotografias e que brinca ironicamente com nossos modos num espaço de exposição. O fato ainda de que as fotografias não casam com a narrativa de cada uma delas favorece ao aparecimento de reconhecimentos baseados no aleatório, o que torna os sentidos sempre em trânsito. A precisão do texto de Tim Crouch é contraposta pelos procedimentos cênicos e isso nos faz perceber a potência da teatralidade que reúne a tensão entre um solo mínimo e a investigação de estados de presença alicerçados pela movimentação dos atores e pelo texto dito, pelas percepções do espaço, pelas sonoridades transmitidas por meio do pequeno aparelho, pela luz chapada da galeria, pelas imagens das fotografias e pelo conjunto dos espectadores que se deslocam de acordo com os guias.

Em um segundo tempo, os atores/guias conduzem os espectadores para outra sala bastante diferente das salas da galeria, que guarda a mesma frieza das anteriores, mas que é realçada por sua ampla dimensão. É uma sala de tribunal, onde o personagem de Pedro Brício encontra a viúva de seu doador. Grato (em reconhecimento), ele quer presenteá-la com uma valiosa obra de arte que figura um coração (seu estado vivente e de afeto). Ela lhe revela detalhes obscuros da transação que envolveu o tal transplante. Os espectadores compreendem o contexto em que o guia e seu doador foram envolvidos um pouco antes do personagem, o que mostra a força trágica da situação. Como um adivinho, a guia/tradutora alerta para o fato de que ele pode parar a qualquer momento com aquela conversa, que ele não precisa seguir adiante com o desfecho de reconhecimento trágico. A potência estética do par reconhecimento/gratidão é levada às últimas consequências, como também a visada que aproxima arte, mercado, vida e morte. Uma das frases marcantes do guia de Brício é a que diz que ele não estaria ali se não fosse a arte, que ele está vivo graças a ela, mas paradoxalmente, os meios que o mativeram vivo se aliam aos do mercado negro de órgãos. Os processos vivificantes que conferimos à ideia de arte são colocados em xeque.

A atuação dos atores é precisa para a situação, sem excessos e com afetos necessários. Pedro Brício mostra uma quase alegria que carrega seu desconhecimento da situação em que foi inserido. Essa nuance do ator provoca um desconforto cuja causa os espectadores levam tempo para reconhecer e que se mantém como elemento tensionador de sua corporalidade. Maíra Gerstner situa sua fisionomia numa espécie de horizonte perdido entre a simpatia conferida ao que tem a função de mediador e a frieza daquele que não detém os meios em questão. Ela traduz uma obra que não é sua, que não poderia realizar, ou que só se realiza pela impossibilidade de ser fiel ao original. É importante dizer que os atores materializam em suas presenças elementos de teor dramático que expõe potências da teatralidade. Então percebemos o ultrapassamento de questões que fundamentam em boa medida o teatro contemporâneo balizado pelo binômio ficção/realidade.

O estado de coisas reunido em nossa ideia de corpo é tomado em complexidade juntamente com o texto, que questiona nossa autonomia e ressalta os aspectos em que estamos alienados dele. Em um escrito enviado pela atriz, ela observa essa relação: “Ele (o autor) é genial nesse sentido, porque consegue fazer um paralelo improvável entre mercado de artes e mercado de órgãos e problematizar a fundo algo que está atrelado à noção de arte no ocidente. E ao mesmo tempo, ao lugar do corpo. A viúva de Hassam quer ter o seu corpo, quer lavá-lo, ela precisa disso para fazer o seu rito de passagem. No entanto, em tempos de biopolítica, quem ama um corpo que tem o seu coração transplantado? Que corpos temos criado?”. Talvez seja o caso de pensarmos em como desestabilizar a noção de organismo – conjunto de órgãos que funcionam integradamente – e apostarmos em sua recusa também para nos aproximarmos da ideia de arte.

Leia também a crítica de Matamoros, que integra o projeto Peças em galeria: http://www.questaodecritica.com.br/2012/07/meios-que-encarnam-a-fala/

Dinah Cesare é Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na Linha de Pesquisa Poéticas Interdisciplinares, é mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores