O drama da educação brasileira e a experiência kitsch do drama

Crítica da peça Conselho de Classe da Cia dos Atores

31 de março de 2014 Críticas
Paulo Verlings, Leonardo Netto, Cesar Augusto, Thierry Tremouroux e Marcelo Olinto. Foto: Dalton Valerio.

O espetáculo Conselho de Classe escrito por Jô Bilac e dirigido por Bel Garcia e Susana Ribeiro constrói uma obra que versa sobre a educação brasileira, seu fracasso e a crise de valores que, infelizmente, se tornou senso-comum dentro da nossa cultura.

Na obra, cinco personagens bem definidas formam a arquitetura da dramaturgia que se apresenta do seguinte modo: após um conflito da antiga diretora da Escola Dias Gomes com os alunos, as professoras se reúnem num conselho de classe que se torna o espaço dramático no qual se assiste o debate ideológico entre as educadoras e o novo diretor, que chega para substituir a diretora afastada.

No centro da disputa estão Edilamar (Leonardo Netto) e Mabel (Thierry Trémouroux). A primeira, professora de Educação Física, representa a vontade disciplinadora e de controle, enquanto a segunda, a professora de Educação Artística, ilustra o desejo libertário de ultrapassar os muros da escola por meio de uma saída criativa (no caso, a “pichação”) – essa entendida como manifestação artística. Bem marcados do ponto de vista dramático, as personagens são como centros de escolhas ideológicas muito bem definidas: Edilamar, conservadora e Mabel, libertária.

Dentro da discussão da educação brasileira recente, deve-se salientar que há uma espécie de descompasso temporal no que cada uma dessas personagens representam. O grafite vem sendo pensado atualmente como manifestação artística, uma vez que faz parte de uma concepção ventilada trazida pela arte contemporânea que entende a cidade como um campo híbrido marcado por várias intervenções sociais, sendo ele uma dessas interferências estéticas. Do mesmo modo, a imagem da Educação Física como a detentora do discurso da ordem na escola, uma espécie de síndica castradora dos corpos dos alunos, não se filia ao projeto de uma educação do corpo e da mente, que abarca práticas de alongamento, respiração, e até mesmo a orientação pedagógica por interdisciplinaridade nas discussões, hoje, em salas de aulas, de temas como as doenças sexualmente transmissíveis e a orientação sexual. Sendo assim, observa-se que o tema debatido por Mabel e Edilamar na peça, expõe, pelo menos do ponto de vista teórico das disciplinas, duas personagens que correspondem, ao mesmo tempo, a momentos ideológicos e históricos distintos.

Ainda no tocante a esse ponto de conflito, deve-se salientar que é comum, na prática escolar, e nos conselhos de classe das escolas públicas, os professores dessas duas disciplinas terem pouca voz (diferente do que ocorre na peça), sendo ainda muito costumeiro uma cultura de que o professor de Educação Artística e o de da Educação Física são os responsáveis pela recreação dos alunos. Tratando-se, pois, infelizmente, de matérias de menor valor. Tal entendimento costuma ser também compartilhado, de modo geral, pelos alunos. Há, entretanto, casos isolados de educadores que conseguem transformar essa visão.

Dois fenômenos citados por Conselho de Classe, como é o caso da pichação liderada por Mabel e o trancamento da quadra de educação física pela professora Edilamar, merecem um breve comentário. Primeiro, a questão da pichação nas escolas públicas raramente ocorre do modo organizado como narrado pela peça, com a liderança de uma professora. Logo, todo projeto de reunião de um conjunto organizado de alunos e professores numa escola pública deve ser louvado. Do mesmo modo, a presença de uma quadra de esportes com a infraestrutura de chave para o seu fechamento para o controle das escolas não parece ser o padrão. E se já há escolas assim equipadas trata-se de uma conquista recente que não justifica a atitude territorialista e patrimonialista da professora Edilamar do ponto de vista sócio-histórico como apresentado pela peça. Parte do fracasso da escola pública no Brasil, e isso é de conhecimento geral, dá-se pelo descaso e abandono dos órgãos públicos. Os ambientes são tão pouco acolhedores que o sentimento de posse e de cuidado desses espaços por parte de seus membros torna-se quase impossível. Ocorre que as escolas acabam se tornando espaços para manipulações eleitoreiras dos bairros, saques do patrimônio público, desvio de verba, aspectos sequer iluminados pela peça.

Não é, certamente, central dentro da problemática da escola pública brasileira este conflito ideológico trazido em Conselho de Classe. O que se vê é uma latente desconcentração da parte dos alunos e um cansaço da parte dos professores por conta de uma crise política maior, que torna professor e aluno alvos de políticas corruptas e do descaso dos seus representantes. Penso, portanto, que a escolha dessas figuras como centrais na peça dá-se mais como eco da avalanche das manifestações políticas que tomaram conta do país em 2013 e menos como construção analítica de uma crise da educação brasileira. Transformou-se, pois, a professora Edilamar num “militar” e a professora Mabel num “jovem manifestante”. E o colapso narrado pelo enfrentamento dos estudantes com a antiga diretora mais se assemelha aos confrontos de tais passeatas do que ao desgaste cotidiano das escolas públicas.

O equívoco não se deu por completo, porque se a centralidade das figuras não demonstra rigor analítico, os diálogos das personagens em conflito constroem-se com inteligência. Destaco o momento da fala de Edilamar sobre a possibilidade de se pensar num ponto de vista positivo para a ordem e a disciplina num dos momentos finais da peça. E a emoção e verdade de Leonardo Netto em dizer este texto é, ao menos para mim, o momento emocional mais alto da peça.

Outra confusão, me parece, é a chegada do jovem diretor (Paulo Verlings) que entra ingenuamente como diretor interino. Na peça, sua função é apenas dramatúrgica: mostrar o percurso de uma personagem diante do fracasso educacional. Se se tratasse de um novo professor diante do choque daquela realidade educacional haveria mais verossimilhança histórica. Mas sabendo, como sabemos, que, na maioria das vezes, esses cargos de intervenção são mais politiqueiros e ligados a uma estratégia específica de manobra (às vezes até eleitoreiras), parece-me estranho a dramaturgia não fazer uso desta personagem para mostrar uma rede “política” de cargos que se dá fora do espaço da escola.

Na extremidade do conflito, duas professoras formam contrapontos a esse núcleo que sozinho exporia um esquema dramático. Trata-se de Célia Patrícia (Cesar Augusto) e Paloma Pamponete (Marcelo Olinto). Na peça, as duas personagens mostram a força planar e épica que dão a essa ficção uma verossimilhança social (refiro-me, pois, às premissas analíticas próprias ao gênero épico, tão bem explicadas por Peter Szondi e por Anatol Rosenfeld em seus livros A teoria do drama moderno(…) e Teatro Épico). A função das personagens é planar na medida que elas evidenciam o seu contratempo com aquele espaço-tempo. Célia Patrícia está fora dali. E Paloma Pamponete está presa aquele espaço.

Cesar Augusto e Paulo Verlings. Foto: Dalton Valerio.

A primeira necessita encontrar um mundo maior, visto que está absorta em seus problemas pessoais (o aluguel, a tentativa de uma promoção de um cargo na secretaria, a venda de produtos e roupas) e não participa integralmente do conflito ali desenhado. Sempre quer se esquivar. Há nela, instintivamente, a percepção de que os problemas daquele espaço não podem mais ser resolvidos do ponto de vista de uma ação individual, cabendo a ela o seu pequeno quinhão. A segunda personagem está encapsulada em uma realidade de uma educação do passado – bem própria às professoras de Educação Infantil (que eram chamadas de Tia) e tornaram-se professoras do Ensino Fundamental e Médio em disciplinas como Língua Portuguesa, Literatura Brasileira, entre outras deste ciclo.

O ceticismo de Célia Patrícia se contrasta com o ar fantasioso de Paloma Pamponete sem a necessidade da simulação de uma ação central entre elas. Há neste par de personagens uma rica sensibilidade social que não é comparável ao esquematismo das outras figuras, que na encenação não fica evidente porque os atores (Leonardo Netto, Thierry Trémouroux e Paulo Verlings) apresentam seus personagens dentro de uma riqueza de ritmos internos que nubla essa diferença marcante das personagens.

Espero que não se entenda que o problema apontado seja o fato da existência de um núcleo dramático. Não há aqui qualquer normatização contra a ação dramática e a favor da forma épica. O que instiga a minha reflexão é que a falência da educação brasileira seja apresentada nesta dialética interpessoal e ideológica da professora de Educação Artística e da de Educação Física; essa dialética parece explicar, grosso modo, e, ainda assim, de modo bem raso, a crise política das passeatas dos jovens mascarados frente o militarismo brasileiro. E o jovem diretor da escola, que se vê impedido de agir diante da luta inconciliável das duas professoras, é uma espécie de espectador apático desse conflito.

A força analítica das personagens Célia Patrícia e Paloma Pamponete apresenta, a meu ver, uma resposta mais madura. O problema é político e ideológico. Mas de uma ideologia que se automatizou dentro dos indivíduos, não tendo, portanto, um agente personalizado. A ideologia de Célia Patrícia é a do ceticismo da “farinha é pouca, meu pirão primeiro”. Ela não se vê responsável por aquilo que se tornou a escola. E, em parte, ela tem razão, visto que os baixos salários e o descaso político são problemas anteriores e muito maiores do que ela. Por outro lado, ela é a principal responsável porque apesar de ter uma visada real daquela situação, optou por viver apenas em seus dramas individuais (econômicos). Já Paloma Pamponete tornou-se passiva, achando-se, ilusoriamente, atuante. Como um ventilador velho, não se deixou transformar por aquela realidade, mas flutua num mundo áspero ora lamentando-se e ora criando saídas obsoletas, por estar ligada a uma concepção muito sentimental da educação. Esses contrastes que não se encontram, explicam, seguramente, muito sobre a inação e o fracasso experimentado pela educação pública brasileira – salvo algumas experiências raras que têm dado certo.

Paulo Verlings e Marcelo Olinto. Foto: Dalton Valerio.

A exigência perspectiva de uma ação dramática sem uma necessidade histórica que a justifique nada mais é do que a compartimentação forçada de um modelo a uma realidade que não pode mais ser entendida a partir deste viés dramático. Crítica social sem experiência social é como pílulas de catarse que mais absolvem o artista do que o colocam realmente em contato com aquela realidade que se pretende discutir (não digo retratar!).

No todo, o texto resolve-se como uma obra dramática ao gosto do público e dos manuais de dramaturgia (que nada mais são do que apropriações ahistóricas de sabor kitsch de experiências formais, que, no passado, não eram tão palatáveis). Basta se perguntar se se deseja realmente refletir com profundidade acerca da educação brasileira ou se a aspiração surgiu como uma apropriação oportunista e kitsch pelo tema que tem sido urgente.

De Fato, Jô Bilac é o nosso grande dramaturgo kitsch – e não Pop, como se ouve por aí (refiro-me a experiência ontológica e auto corrosiva da Pop-Art). Sua dramaturgia se leva a sério, e mesmo quando não se leva a sério, é um não se levar a sério forjado, próprio de quem quer seduzir. Conseguimos ver em suas obras referências a Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, David Lynch, Luis Buñuel, transformadas em produtos palatáveis. A barata densa de GH transforma-se em pretexto melodramático e adocicado em Cucaracha. Caixa de Areia é um mix inconciliável do clima de David Lynch com dramaturgias de manual que contam histórias de ghostwriters. Porém, o dramaturgo consegue transformar uma crítica de arte numa ghostwriter. O que é bem imaginativo, mas pouco ligado à experiência do mundo público. Os críticos vivem, geralmente, do magistério, de sua vida intelectual: conferências, palestras, congressos, etc. De fato, um crítico ser um ghostwriter é uma licença poética enorme. Não há esse mercado. Eu, infelizmente, não o conheço. Tampouco há autonomia econômica para o crítico no Brasil.

Outra nomenclatura para a obra de Jô Bilac é a de que ele faria um drama burguês. A relação com a burguesia na obra do dramaturgo é outra. Ela não se dá em analogia direta com os dramaturgos do século XIX, buscando mapear possibilidades íntimas e residuais de uma burguesia antiga. A dramaturgia de Daniela Pereira de Carvalho, os textos de Julia Spadaccini, travam mais contato com essas poéticas. Vide a insistência do tempo corrosivo na obra das dramaturgas. A burguesia de Jô Bilac é kitsch: é antenada, culta e até mesmo politizada, porque não quer se ver como alienada. Ela é a massa que se tornou burguesa – e que vê na ação política um valor agregado. Daí a eficiência de suas peças, e o grande faro sensível do dramaturgo para falar com uma massa de gosto kitsch.

Não há nenhum problema em ser kitsch. Há quem veja nisso a saída política do mundo atual (fala-se até em revolução), basta pensarmos na enxurrada de projetos intelectuais liderados por comunicólogos no Brasil; projetos que mais fazem a fama desses do que transformam qualquer realidade. É curioso ver Edypop de Pedro Kosovski tematizar o kitsch sendo tão ontológico sobre a questão do mundo contemporâneo e das massas, não tendo respostas, abrindo dúvidas e escolhendo a farsa (que se dá por justaposição, colagem e enviezadamente), e Conselho de Classe sendo um belo drama kitsch sobre a educação brasileira, que aponta, felizmente, à dramaturgia de Jô Bilac um caminho mais sincero e tenso a se explorar futuramente – refiro-me às personagens de Célia Patrícia e Paloma Pamponete (que partilham de alguma sensibilidade histórica em meio ao arranjo perspectivo forçado do drama).

Informações sobre o grupo: http://www.ciadosatores.com.br/

Leia na Questão de Crítica:

Crítica da peça Devassa, da Cia dos Atores, por Daniel Schenker: http://www.questaodecritica.com.br/2010/07/presenca-que-escapa/

Crítica de Autopeças, projeto concebido com o intuito de comemorar os 20 anos da Cia dos Atores, por Daniel Schenker: http://www.questaodecritica.com.br/2009/03/pecas-que-desafiam-o-espectador/

João Cícero Bezerra é crítico teatral, dramaturgo e teórico de arte, formado em Teoria do Teatro, mestre em Artes Cênicas e doutorando em História Social da Cultura.

Vol. VII, nº 61, março de 2014

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