Alcance e retenção

Estudo sobre a A invenção de Morel

15 de julho de 2008 Estudos

Exergo

“Estive lendo os papéis amarelos. Penso que distinguir pelas ausências – espaciais ou temporais – os meios de superá-las leva a confusões. Talvez fosse o caso de dizer: meios de alcance e meios de alcance e retenção. A radiotelefonia, a televisão e o telefone são, exclusivamente, de alcance; o cinematógrafo, a fotografia, o gramofone – verdadeiros arquivos – são de alcance e retenção. Todos os aparelhos para fazer frente a ausências são, portanto, meios de alcance (antes que se tenha a fotografia ou o disco, é preciso tirá-lo, gravá-lo).” (BIOY CASARES: 2006, 93)

“A fotografia pode se apoderar, sem ser molestada, das coisas transitórias, que têm direito ‘a um lugar nos arquivos da nossa memória’, desde que se detenha ante os ‘domínios do abstrato, do imaginário': ante o domínio da arte, onde só há espaço para aquilo ‘a que o homem entrega a sua alma'”. (BENJAMIM: 1989, 138)

“No fim de contas, será preciso convir que para além da morte como figura iconográfica, é de fato ausência que rege esse balé desconcertante de imagens sempre contraditas. A ausência, considerada aqui como motor dialético tanto do desejo – da própria vida, ousaríamos dizer, a vida da visão – quanto do luto – que não é “a morte mesma” (isso não teria sentido), mas o trabalho psíquico do que se confronta com a morte e move o olhar com esse confronto.” (DIDI-HUBERMAN: 1998, 128-129)

Introdução

Exergo: uma data, legenda ou inscrição, gravada numa medalha. Cito Derrida: “Citar antes de começar é dar o tom deixando ressoar algumas palavras cujo sentido ou forma deveriam dominar a cena.” (DERRIDA: 2001, 17) As idéias acima, neste texto, dominam a cena, projetam suas imagens. As palavras de Bioy Casares devem mesmo se repetir por aqui, como Faustine, que vai sempre mergulhar na piscina naquele momento da projeção, mesmo debaixo de chuva, mesmo que as águas da piscina estejam turvas. As outras referências também aparecem com freqüência porque suas imagens são necessárias: meios de alcance, alcance e retenção, fazer frente a ausências, apoderar-se das coisas transitórias, domínios do imaginário, entrega da alma, confronto com a morte. As citações iniciais são também um carimbo: imagem que valida, justifica e/ou situa o papel/arquivo no qual está impressa.

Começo citando compulsivamente. Além do trecho retirado e retido de A invenção de Morel e dos outros, cito – logo quando escrevo a primeira palavra: Exergo – Jacques Derrida, seu Mal de arquivo. Estas imagens, no esforço de se alcançarem, formam a linha de uma idéia, um tipo de horizonte que não se deixa ver de frente, um horizonte de perfil, do qual se vê apenas um ponto. O traço segue adiante: não vemos o seu alcance. Aos poucos, para definir este horizonte, talvez, O que vemos, o que nos olha de Didi-Huberman traga significados viáveis para as imagens, assim como sua leitura de Walter Benjamim.

Falo de imagem. A imagem é um esforço de retenção. E desejo de alcance. O espetáculo, um meio. Talvez um meio de alcance e retenção. Muito provavelmente, um meio de arquivo.  A invenção de Morel é um meio, as tais máquinas são um veículo transmissor. São gravadoras e impressoras ao mesmo tempo; produzem, guardam e projetam arquivos. É importante frisar que elas produzem arquivos – verdadeiros meios – de algo que elas não são. Elas arquivam imagens que não criaram. Produzem imagens e sons que, por sua vez, reproduzem vida (uma imagem de vida). O que distingue a vida da sua reprodução – esta é a questão da imagem. Ou, como diz Derrida: “Mas onde começa esse fora? Esta é a questão do arquivo. Não é, sem dúvida, nenhuma outra.” (DERRIDA: 2001, 18) Onde termina a vida e onde começa a imagem, que está fora da vida? Onde começa esse fora? Qual é o traço que distingue a imagem? E qual é o fio que liga a imagem à vida, mantendo-a à distância?

Para entrar neste jogo, é preciso estabelecer uma determinada dualidade. Coloco a imagem em oposição à vida na medida em que é possível definir a morte como ausência de vida (e não necessariamente o seu oposto). Da mesma forma, tento definir a imagem como a ausência de algo (ou, pelo menos, um esforço de “fazer frente a” esta ausência que, continuamente, a afirma). Assim, a vida teria uma presença enquanto a imagem implicaria (na sua própria presença) uma ausência. Trata-se de uma espécie de ausência dinâmica, uma tentativa de alcance de algo e uma tentativa de retenção deste algo. A partir daí, talvez seja possível arriscar dizer que uma imagem é sempre um movimento, mesmo que estático. Tanto o alcance como a retenção têm a sua dose de falência, mas o movimento em direção a eles é inevitável. O movimento de preencher a ausência é uma contradição; sua resolução, inacessível, mas necessária. Não se pode provar o que uma imagem faz, nem o que uma imagem é. Mas não podemos deixar de pensar no que uma imagem pode fazer, muito menos no que uma imagem pode ser.

O que pode ser, então, a imagem em A Invenção de Morel? Temos ali um homem (fugitivo, observador e responsável pelo relato), uma ilha (lugar de impressão e fundo da imagem) e as imagens gravadas (umas dispostas, outras escondidas, outras por vir). A imagem da morte envolve tudo: o homem está morto, a ilha está envolta em uma atmosfera de morte, pelos boatos da peste, pelas imagens dos mortos e pelo dano fatal que a captação das imagens causou à vegetação. Quanto às imagens, é possível dizer que elas permanecem. “Pois não há sentido em colocar-se a questão de saber se uma imagem é morta ou viva: tanto uma como outra resposta serão sempre insuficientes, ainda que a imagem seja eficaz.” (DIDI-HUBERMAN: 1998, 109) No entanto, há sentido em pensar nos seus significados possíveis, dada a sua eficácia.

O homem – mal de arquivo

O fugitivo, autor do relato, é o único homem vivo deste universo. Ele está só diante das imagens, ele está só dentro da ilha. Sua experiência não é compartilhada. Tudo isso é angústia. Se está só, precisa não estar: acredita, sem duvidar, que aquelas imagens são humanas: “Mas aqui não há alucinações nem imagens: são homens de verdade, ao menos tão de verdade quanto eu.” (BIOY CASARES: 2006, 15) Precisa estar entre iguais. E ele também precisa compartilhar: o relato é seu meio de comunicação, ou melhor, uma tentativa de alcance de algum outro – outro ser, outro tempo (ele precisa prolongar-se).

O encanto com a imagem é uma espécie de ilustração do impulso de reter uma coisa que não tem valor de retenção mas, que, pelo contrário, tem seu encanto justamente na sua fugacidade. Um homem precisa manter o instante – um Fausto. É familiar a premissa do Fausto de Goethe, quando diz a Mefistófeles no momento do pacto:

“Se um dia eu disser ao momento fugaz:
Continua aqui! És belo! Não te vás!
Poderás algemar-me a bel-prazer,
estarei disposto a morrer.”

Antes de morrer, Fausto reafirma seu desejo de eternizar o tal momento. Na sua última frase, cria a imagem de um traço no tempo, um traço de rastros, porém indelével.

“Da sabedoria é conclusão superior:
Faz jus à liberdade e à sua existência
Só quem diariamente a conquistar com destemor.
Cercado de perigos é assim a vivência
Dessas crianças, adultos e velhos a se agitar.
Gostaria eu de tal multidão vislumbrar
E conviver com homens livres em terras livres
Para poder dizer ao momento fugaz:
Continua aqui! És belo! Não te vás!
Os vestígios de meus dias, na Terra passados
Nem em milênios poderão ser apagados.”

A fantasia do Fausto é menos o alcance do que a retenção. O momento fugaz não pressupõe uma distância no espaço, mas uma proximidade no tempo: o instante fugaz é a experiência do agora, um momento pleno. Não se alcança o tal instante, não é possível ir até ele. É ele que chega e de repente está aí. Ele não é totalmente comunicável (embora desperte a comunicabilidade e pressuponha um compartilhamento), mas é, pelo menos em alguma instância, apreensível. Apesar de ser fugaz por definição, o instante traz em si o sonho da retenção, a possibilidade do seu oposto. O instante, na memória, vira imagem.

Morel deve ter se inspirado em um momento único. Talvez tivesse esperança de ter, na sua semana ideal, um momento que valesse sua vida (e a de todos os outros). Morel realiza um pouco o desejo do Fausto no seu esforço violento de guardar uma semana – uma coleção de instantes – em troca de sua vida. E para que os vestígios de seus dias não possam ser apagados, deixa a administração das máquinas nas mãos das marés. Tendo a natureza como arconte, como guardiã e provedora, Morel dá vida à sua concepção de eternidade: imagens que retornam sempre e para nada. Elas permanecem guardadas, se revelam e se retraem. Sua natureza se assemelha à natureza do que se poderia chamar de uma imagem de arte: um movimento contínuo de ausência e presença.

Aquele instante do Fausto tem uma presença. O desejo de retê-lo é a atitude de fazer frente à sua ausência iminente. A perspectiva de retenção de Fausto está na passagem para a morte, como se o último momento da vida fosse uma chave para um paraíso específico, um portal de continuidade entre um último instante e uma eternidade coerente com ele. Morel também pretende suprimir ausências, mas não se contenta em reter um instante (precisa de um recorte maior de tempo) e não se contenta com o quadro científico que “limitava-se a fazer frente, para a audição e a visão, a ausências espaciais e temporais.” (BIOY CASARES: 2006, 82) Suas imagens ultrapassam a limitação visual, ele desafia a ausência de todos os outros sentidos, quer reter as sensações olfativas, térmicas, táteis… Maior, seu desejo é de totalidade. Ele quer produzir imagens que se possa pegar com as mãos. Já o fugitivo, este quer dar um passo além: quer fazer frente à sua própria ausência dentro das imagens, quer entrar na imagem, fazer parte dela. Digo que ele dá um passo além porque, para Morel, aquela semana (a primeira, a original) é real, faz parte de sua vida e vai se tornar imagem depois. Para o fugitivo, aquilo não é sua vida, é algo que encontrou fora dele e que é, antes de mais nada, simulacro.

Querer ser imagem, portanto, é algo comum a Morel e ao fugitivo, mesmo que de modo tão diferente. Eles escolhem um destino comum. O trecho que segue traz algumas ilustrações para estas duas figuras da novela de Bioy Casares. Ele faz algum sentido se pensarmos que Morel e o fugitivo são sujeitos que se pensam também enquanto imagens. Eles são homens de crença, acreditam que há algo além naquelas imagens deles mesmos: talvez suas memórias, talvez seus desejos.

“Prefiguração, retorno, julgamento, teleologia: um tempo reinventa-se aí, diante da tumba, na medida mesmo em que é o lugar real que é rejeitado com pavor – a materialidade do jazigo e sua função de caixa que encerra, que opera a perda de um ser, de um corpo doravante ocupado em se desfazer. O homem da crença prefere esvaziar os túmulos de suas carnes putrescentes, desesperadamente informes, para enchê-los de imagens corporais sublimes, depuradas, feitas para confortar e informar – ou seja, fixar – nossas memórias, nossos temores e nossos desejos.” (DIDI-HUBERMAN: 1998,48)

Eles rejeitam a morte (enquanto Fausto a aceita), rejeitam a materialidade da morte – a perda, o desfazer-se do corpo, o informe – na esperança de continuar sendo alguma coisa, sendo imagem. A eternidade, que é um tempo, se reconfigura como lugar, pois é na eternidade que eles se fixam. O arquivo de suas vidas não será um túmulo, será o espaço, não será embaixo da terra, mas sobre ela, não será simplesmente memória, mas impressão. As imagens parecem muito mais reais, se parecem muito mais com eles vivos do que seus cadáveres putrescentes.

Estes homens confiam a vida a um suporte exterior. Eles entregam seus corpos a esse lugar fora, a um suporte técnico que os grava e imprime. A morte é a própria condição do arquivamento. Eles querem salvar para o futuro, mesmo diante da falta de provas de que terão consciência. Morel, a princípio, diz que acredita na consciência das imagens, o fugitivo tem uma teoria interessante quanto à consciência: manter vivo todo o corpo não seria a forma adequada de fazer frente à morte, mas “só deveríamos buscar a conservação do que interessa à consciência”. (BIOY CASARES: 2006, 20) O caráter messiânico do discurso de Morel sobre sua invenção se justifica neste trecho de Mal de Arquivo:

“(…) a questão do arquivo não é, repetimos, uma questão do passado. Não se trata de um conceito do qual nós disporíamos ou não disporíamos já sobre o tema do passado, um conceito arquivável de arquivo. Trata-se do futuro, a própria questão do futuro, a questão de uma resposta, de uma promessa e de uma responsabilidade para amanhã. O arquivo, se queremos saber o que teria querido dizer, nós só o saberemos num tempo por vir. Talvez. Não amanhã, mas num tempo por vir. Daqui a pouco ou talvez nunca. Uma messianidade espectral atravessa o conceito de arquivo e o liga, como a religião, como a história, como a própria ciência, a uma experiência muito singular de promessa.” (DERRIDA: 2001, 50-51)

Messianidade espectral não é a própria imagem dos papéis amarelos? Estes dois homens, rivais pelo amor de Faustine, estão unidos pela febre de arquivo. Não é o desejo por ela, mas o desejo de manter-se ao lado dela, de conservar a sua própria imagem perto da imagem dela. Uma eternidade possível vale mais a pena que uma realidade passageira e improvável. Eles se parecem:

“(…) estar com mal de arquivo pode significar outra coisa que não sofrer de um mal, de uma perturbação ou disso que o nome “mal” poderia nomear. É arder de paixão. É não ter sossego, é incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde, mesmo se há bastante, alguma coisa nele se anarquiva. É dirigir-se a ele com um desejo compulsivo, repetitivo e nostálgico, um desejo irreprimível de retorno à origem, uma dor da pátria, uma saudade de casa, uma nostalgia do retorno ao lugar mais arcaico do começo absoluto.” (DERRIDA: 2001, 118)

Esta é a imagem do homem em sua relação com os meios de alcance e os meios de alcance e retenção: verdadeiros arquivos, os homens arquivam a si mesmos, retêm a si mesmos, quem sabe na crença de alcançar a si mesmos, crença esta, que não dispensa sua face tautológica: diante de suas imagens, eles são o que eles vêem.

Imagens – o limiar da consciência

As imagens têm sua morada: elas habitam o museu, o que as aproxima de imagens de arte. Diz o fugitivo: “O museu poderia ser um hotel esplêndido ou um sanatório.” (BIOY CASARES: 2006, 19) Esplêndido: hospeda imagens críticas, coloca em crise imagens reais, como as portas.

O museu abriga as próprias máquinas, os meios avançados de alcance e retenção inventados por Morel, que também são obras de arte, ou melhor, são instrumentos de ciência, nas palavras de Goethe: “ciência como arte”. (DIDI-HUBERMAN: 1998, 187) Abriga também alguns arquivos secretos: os discos das imagens não reveladas de Charlie e dos empregados da casa de Schawchter, os primeiros experimentos, “fantasmas ligeiramente monstruosos”. (BIOY CASARES: 2006, 87)

Uma das imagens mais marcantes de dentro do museu é o próprio discurso de Morel, a leitura dos papéis amarelos. Sua especulação sobre a consciência das imagens parece igualmente monstruosa diante da violência que a captação causa àqueles corpos. O fugitivo desacredita sua teoria: “Razões lógicas nos autorizam a rejeitar as esperanças de Morel. As imagens não vivem.” (BIOY CASARES: 2006, 97) Depois percebemos que o próprio Morel tinha plena consciência do que estava fazendo.

Faustine, como a Eurídice do Rilke, não sabe de si. É inútil ir ao inferno para buscá-la, tudo o que ele pode fazer é ir ao inferno e permanecer lá, alcançá-la, reter-se ao lado dela e abrir mão da própria consciência. Este atravessamento ficará guardado no museu: o fugitivo grava sua primeira tentativa de atravessamento. “Se se pode passar os cinco dedos através, é uma grade, se não, uma porta.” (JOYCE: 1982, 32) A imagem de sua mão não é apenas a imagem de sua mão, é a retenção do seu gesto, um momento da passagem da vida à imagem. É pela mão que ele começa a morrer. Seu gesto de alcance do que seria o outro lado fica retido neste mistério: o processo de corrosão da vida começa ali, naquela primeira conversão em imagem. É como se ele apenas mergulhasse a mão antes de se jogar neste mar ácido de retenção.

“Pus a mão esquerda diante do receptor; abri o projetor e apareceu a mão, a mão apenas, fazendo os preguiçosos movimentos que eu fazia quando a gravei.
Agora ela é como um outro objeto ou quase um animal que vive no museu.
Deixo o projetor funcionar, não faço com que a mão desapareça; sua visão, sendo curiosa, não é desagradável.
Essa mão, num conto, seria uma terrível ameaça para o protagonista. Na realidade, que mal pode me fazer?” (BIOY CASARES: 2006, 111)

A questão é que se trata, de fato, de um conto e ela é, sim, uma terrível ameaça: o gesto de ultrapassagem é uma ameaça, uma violência que mata de fora para dentro. Mas talvez o mais interessante seja o “entre” o fora e o dentro – imagens críticas, as portas de dentro do museu são aparentemente intransponíveis.

O desafio final do fugitivo é transpor a distância entre o mundo da vida e o mundo das imagens. Em duas ocasiões, ele tem a experiência de simplesmente não poder atravessar de um lado para outro: uma noite no museu e, nos porões, quando as imagens tornam a se projetar e ele fica preso. (BIOY CASARES: 2006, 59, 105) Para estas tentativas, não há solução, não há ferramenta, não é possível passar por baixo nem por cima das imagens projetadas. O além da imagem é inacessível.

No entanto, há um entre, uma fenda, um meio de alcance e retenção: a invenção de Morel, que abre uma porta possível entre um e outro universo. Talvez não seja claro onde começa um e termina o outro e talvez seja muito intrigante pensar a convivência entre os dois mundos, imaginar os últimos dias de vida do fugitivo, co-habitando a ilha com sua própria imagem. A nota do editor apenas comenta:

“Resta o mais implausível: a coincidência, num mesmo espaço, de um objeto e de sua imagem total. Este fato sugere a possibilidade de que o mundo seja constituído, exclusivamente, de sensações.” (BIOY CASARES: 2006, 118)

A tal porta é informe. O fugitivo não entra em um lugar a partir do momento em que sai de outro lugar. A própria imagem é o limiar. O limiar está aí, no espaço mesmo da ilha. Talvez seja por esta fenda que as imagens o olham, por esta porta que sempre esteve aberta – embora não fosse visível num primeiro momento. A possibilidade de tornar-se imagem existia desde o momento em que o fugitivo chegou à ilha. Ele apenas não tinha consciência.

Foi justamente a consciência, o conhecimento das máquinas e do seu funcionamento, que lhe abriu a porta. A consciência é a guardiã deste limiar: antes de atravessá-lo por completo, ele pondera. Entre o mundo da vida e o mundo das imagens, ela faz a passagem. A imagem final do fugitivo – sua imagem gravada – não terá consciência. Da mesma forma, quando ele aportou na ilha, estava fora de si:

“(…) remei exasperadamente, cheguei à ilha (com uma bússola que não entendo; sem orientação; sem chapéu; doente; com alucinações); o bote encalhou nos areais do leste (com certeza os recifes de coral que rodeiam a ilha estavam submersos); fiquei mais de um dia no bote, perdido em episódios de horror, esquecendo-me de que havia chegado.” (BIOY CASARES: 2006, 18)

O chegar à ilha foi o cruzamento de um primeiro portal, as alucinações, a vertigem de entrar – com vida – no próprio túmulo. A experiência da parede que se reconstitui no porão e de ver que até mesmo uma cortina pode ser inamovível, foram avisos da fatalidade da passagem, do caráter sem retorno do atravessamento que estava por vir. O eterno retorno das imagens é um sem retorno da consciência, pois além de ser a guardiã do portal, ela é o sacrifício, o que fica para trás, o que não se pode transpor.

Referências bibliográficas:

BENJAMIM, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo; tradução José Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. – 1 ed. – São Paulo: Brasiliense, 1989. – (Obras escolhidas; v. 3)

BIOY CASARES, Adolfo. A invenção de Morel; tradução Manoel Titan Jr. São Paulo: Cosac Naify, 2006

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana; tradução Claudia de Moraes Rego. – Rio de Janeiro: Relume Dumará 2001

DIDI-HUMBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha; tradução Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1998

JOYCE, James.Ulisses; tradução Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1982

Vol. I, nº 5, julho de 2008

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