Elogio à alteridade

Crítica da peça Os especialistas

10 de junho de 2008 Críticas
Foto: Marcus Claussen

O texto de Adriano Shaplin utiliza uma fórmula de ação comum ao gosto da cultura norte-americana acostumada com as tramas Hollywoodianas, porém é contra a formação destas que ele constrói sua denúncia. É transparente na peça a raiva que o inspirou a escrever sobre o casamento da mídia Americana com a política militar de intervenção externa do governo Regan-Bush, criando imagens que pudessem ser mobilizadas para produzir a aprovação das guerras deste governo. Segundo o autor, a peça também pode ser vista como uma comédia, já que ele usa a caricatura para ressaltar os valores que considera corrompidos. Furiosamente inspirado na guerra do Iraque, iniciada em 2003, Shaplin recorre à realidade dos mariners para contar sua estória. Gostaria de propor uma reflexão: reparem as semelhanças das denúncias feitas durante a peça com a atualidade carioca, ela poderia facilmente se passar no quartel do BOPE, e referir-se à relação da cidade com as favelas e à cobertura de imprensa que é feita em nossa cidade.  Isso parece ocorrer pois o discurso que estrutura a trama se refere a um sistema de juízo que está sendo reproduzido mundo afora, determinando políticas de governo e embasando uma moral de separação entre o eu e o outro, conferindo direitos diferentes a cada um, promovendo a intolerância sem o menor constrangimento, para conservar fronteiras e legitimar o domínio da classe, da raça e do sexo hegemônico. Isto é o que aparece retratado na peça Os Especialistas e está por trás de todas as ordens dadas pelo personagem-chefe do Coronel.

No programa da peça – que segundo comentários de duas alunas da Cal sentadas à minha frente, parece um cartaz de filme de ação do Chuck Norris – a diretora Bárbara Bruno deixa claro a intenção de dar um tom poético e procurar soluções sensoriais para a peça.  O esforço dos atores para manter a voz e a expressão corporal no tom autoritário e marcial do exército gera um clima austero para a peça. Em dados momentos, a ritualística de saudações, movimentos e posturas do exército fica propositalmente automatizada e perde o sentido, como se eles não soubessem o valor de prestar continência: a escolha por esse registro pode ser vista como uma crítica à desumanização e à perda de consciência que os soldados parecem sofrer dentro do esquema que está sendo denunciado. 

As personalidades dos quatro soldados que contracenam pode ter sido escolhida para expor um jogo entre estados emocionais tipificados e mostram que, mesmo com a anestesia do treinamento militar, os instintos humanos continuam latentes e influenciam suas reações. Por um ponto de vista psicológico, chego a imaginar que os quatro são exemplos de extremos pelos quais a nossa consciência transita para tomarmos decisões. A Tenente Stein, feminista e interessada no trajeto correto de sua carreira, não aceita participar de missões sujas e clandestinas. O especialista em comunicação, Tenente Studdard, é contido, calculista, envolvido com o alto escalão e disposto a cumprir o que ordenarem. O sniper, Tenente Freud (!), sofre de fortes distúrbios comportamentais, é excessivo e desmedido, está disposto a tudo para defender sua pátria e cumprir suas ordens. Ele quer provar sua virilidade a todo custo, impulso que é satirizado pelo autor quando o Tenente Freud propõe uma competição para ver quem come mais cachorro quente e sai ele mesmo vencedor. Sobre esse mecanismo, Theodor Adorno diz no artigo Educação após Auschwitz:

“A idéia de que a virilidade consiste num grau máximo de capacidade de suportar dor de há muito se converteu em fachada de um masoquismo que – como mostrou a psicologia – se identifica com muita facilidade ao sadismo. O elogiado objetivo de ”ser duro” de uma tal educação significa indiferença contra a dor em geral. No que, inclusive, nem se diferencia tanto a dor do outro e a dor de si próprio. Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir.”

O último personagem é o Coronel Johns, o chefão que dá as ordens e esclarece a missão: derrubar um líder do Oriente Médio, o Abutre Saudita, que recebe o codinome de Mulher Barbada. Com a revelação da missão e do codinome do inimigo surgem duas das principais denúncias: a guerra ao terror, que já comentei na crítica da peça O Dragão, que nada tem a ver com a segurança e integridade do território nacional e se resume a interesses econômicos; e a efeminação do inimigo, que é conjugada na peça com a depreciação que a Tenente Stein sofre por parte da instituição e dos soldados por ser um efetivo feminino (note o gênero masculino do título). A efeminação do inimigo tende a menosprezar o seu poderio e sua capacidade, iludindo os soldados com a idéia de uma fácil conquista, teoria que também embasa o sexismo interno, exemplificado constantemente pelas gracinhas do Tenente Freud. Outra estratégia de convencimento de que o inimigo está abaixo da condição humana é a animalização da sua figura, sendo retratado por insetos, animais asquerosos e ervas daninhas, o que automaticamente já legitima sua condenação, seguindo a lógica do jardineiro descrita por Zygmunt Bauman no livro Modernidade e Holocausto:

“Invariavelmente, há uma dimensão estética nesse projeto: o mundo ideal a ser criado conforma-se aos padrões de uma beleza superior. (…) É a visão do jardineiro, projetada em tela de tamanho planetário. Os pensamentos, sentimentos, sonhos e impulsos dos projetistas desse mundo perfeito são conhecidos de todo jardineiro digno desse nome, embora talvez em escala um tanto menor. Alguns jardineiros odeiam as ervas daninhas que estragam seus projetos – uma feiúra no meio da beleza, desordem na serena ordenação. Outros não são nada emocionais: trata-se apenas de um problema a ser resolvido, uma tarefa a mais. O que não faz diferença para as ervas: ambos os jardineiros as exterminam. Se indagados e com tempo para refletir, os dois concordariam que as ervas devem morrer não tanto pelo que são, mas pelo que deve ser o belo e organizado jardim.”

Na hora de cumprir a missão – colocar uma bomba na mansão da mulher barbada – o Comandante expõe para seu comparsa, o Tenente Studdard, a verdadeira missão do grupo: tentar assassinar o líder saudita, mas falhar. Assim o inimigo continua vivo e o ódio dos compatriotas tem onde recair; ele declara que esta não seria a primeira missão com essa função. Apenas com o inimigo vivo é que a indústria da guerra tem uma justificativa e o povo se torna suscetível às manipulações políticas e militares. Bauman atesta, no livro Modernidade Líquida, que:

“Do assassínio original o inimigo deve ter emergido não inteiramente morto, mas morto-vivo, um zumbi pronto a levantar-se da tumba a qualquer momento. Um inimigo realmente morto, ou um inimigo morto incapaz de ressuscitar, não inspirará temor suficiente para justificar a necessidade de unidade – e os rituais de sacrifício são regularmente realizados para lembrar a todos que os rumores do desaparecimento final do inimigo são propaganda do próprio inimigo e, portanto, prova oblíqua, mas vívida de que o inimigo está vivo.”

Portanto, Os Especialistas parece dar-nos um instrumental crítico que nos ajuda a evitar a manipulação da mídia e da cultura de consumo e a produzir nossa própria identidade e resistência; a peça nos auxilia a desvendar significados e efeitos sobre nossa própria cultura, conferindo-nos assim um pouco mais de poder sobre o nosso ambiente cultural.

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores