Um jogo de referências

Artigo sobre o processo de criação da peça Memória afetiva de um amor esquecido, do grupo Os Dezequilibrados

15 de março de 2008 Processos

A companhia de teatro carioca Os dezequilibrados está em processo de trabalho. E eu me perguntei qual seria a melhor forma de escrever sobre algo que está em preparação, que ainda não se deu a ver. O registro que temos deste tipo de abordagem é, de certa forma, elogioso e instiga a formação de um público para o espetáculo. Mas este modo não parece apropriado tendo em vista uma analogia com o que o crítico de arte Clement Greenberg diz dos riscos do que é tradicional em arte: “um registro permanece vivo desde que as expectativas continuem a ser expandidas”. Isto interfere aqui no sentido de que o contato com o processo de um espetáculo cria certas expectativas. Poder vê-las formalizadas mais adiante completa o que Greenberg consideraria satisfação. Digo isto porque meu foco neste texto está relacionado com a expansão das expectativas em relação ao teatro, e às potencialidades da linguagem teatral de desenvolvimento do gosto do espectador.

A montagem dos Dezequilibrados, que está prevista para estrear em maio no Oi Futuro, é intitulada Memória afetiva de um amor esquecido e trata-se de uma recriação do filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças de Michel Gondry. O termo recriação foi utilizado pela dramaturga do espetáculo Rosyane Trotta e diz respeito, nesse caso, a uma leitura da interface cinema e teatro. Então, podemos pensar em como um processo de recriação, ou de leitura, pode ser um campo de experiência para a elaboração de uma linguagem cênica que contenha uma qualidade de força ativa na relação com a recepção.

Para começar, o teatro foi visto por Platão como um lugar em que a comunidade assiste ao desempenho doloroso (trágico) dos atores, porém, numa situação de passividade. Uma dicotomia intransponível estaria configurada, de tal modo que impediria a possibilidade de que o espectador pudesse agir na vida de modo diferente após um espetáculo. O teatro foi rejeitado pelo filósofo.  Uma comunidade ideal precisa da ação transformadora dos indivíduos. Mas o procedimento de leitura indica outra perspectiva para o teatro.

Os processos de pesquisa e construção dos espetáculos dos Dezequilibrados são realizados em conjunto e discutidos por todos os seus integrantes. Esta característica está formalizada no nome do grupo, que parece indicar o desejo de fugir da homogeneidade. Um dos elementos que fazem parte da construção da cena são os exercícios de ‘composição’. Estes exercícios são inspirados no trabalho da diretora artística do SITI Company, Anne Bogart, e se assemelham ao que conhecemos por improvisações. Uma das suas particularidades é que são feitas algumas demandas aos atores. Estas demandas aglutinam elementos cuidadosamente pensados no sentido de serem conteúdos formais que conversam, neste caso, com os processos de realização do filme/referência. Os atores ficam responsáveis por uma criação prévia, ou seja, têm tempo e espaço para realizarem suas próprias leituras.

Este procedimento propõe um deslocamento das funções tradicionais do dramaturgo e do diretor. O que quero dizer é que os atores atribuem sentidos às demandas fragmentadas que recebem, e estes sentidos são multiplicados em seguida pelos primeiros (dramaturgo e diretor), como numa estrutura de caixa chinesa.

Mas a idéia de recriação não deve significar uma volta total ao indivíduo. Deve ser considerada como uma apropriação pelos esquemas de representação dos grupos sociais. Em outras palavras, o que está na cabeça das pessoas se relaciona com o que está em jogo no mundo. E o que sustenta o funcionamento social é o jogo tácito que estabelecemos em nossas trocas, e que está engendrado em todos nossos processos de aprendizado. Portanto, parece que o pressuposto do qual parte a montagem dos Dezequilibrados tem condições de possibilidades de desmontar certos mecanismos tradicionais. Tanto os mecanismos de concepção da linguagem teatral, quanto os da recepção do público.

Se a experiência de arte é sempre uma questão de associações, como diz Greenberg, um espetáculo construído sob este princípio apresenta uma série de pequenas leituras do objeto de referência. Isto parece se contrapor à idéia de um saber que é transmitido a um público impassível, na medida em que dissemina múltiplas condições de imaginação. E a imaginação é a faculdade que Kant diz ser fundamental para a experiência estética.

Referência bibliográfica:

GREENBERG, Clement. Estética domésticaobservações sobre a arte e o gosto. Tradução André Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

Vol. I, nº 1, março de 2008

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