Adaptando a partir do dissenso

Artigo sobre o processo de criação da peça Memória afetiva de um amor esquecido, do grupo Os Dezequlibrados

15 de março de 2008 Processos

No filme Adaptação, do ano de 2002, Nicolas Cage vive um personagem atormentado por uma questão que considera existencial: pressionado para escrever um roteiro baseado num livro de sucesso, ele resiste aos apelos do chefe e do irmão para que ceda aos esquemas de construção dramatúrgica reproduzidos em massa pelos roteiros hollywoodianos, pois deseja escrever algo significativo, que seja fiel à qualidade lírica do romance a ser adaptado. O filme mostra sua busca enlouquecida para fugir das facilitações, para alcançar uma linguagem verdadeiramente autoral.

Os Dezequilibrados, por sua vez, querem contar uma história de amor. Em 2006, prepararam Quero ser Romeu e Julieta, peça baseada em reflexões sobre o amor na contemporaneidade. Apresentaram uma amostra do processo no festival riocenacontemporânea, mas ainda não deram continuidade ao projeto. Em 2007, resgataram o tema para uma nova montagem, que deve estrear em maio de 2008, no Oi Futuro. Encontramos o grupo durante o processo de preparação desse espetáculo. Nele, a proposta é de uma espécie de recriação da fábula do filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, a partir do universo dos filmes do roteirista Charlie Kaufman e dos diretores Michel Gondry e Spike Jonze, nos quais estão incluídos AdaptaçãoQuero ser John MalkovichUma natureza quase humana.

Encontramos o grupo num estágio ainda muito delicado de construção do novo espetáculo. Podíamos aproximar-nos apenas com cuidado. Ouvimos do desejo sempre renovado do grupo por um espetáculo autoral, dos debates regulares, das dificuldades na transcriação cênica. Não vimos resultados, apenas imaginamos a partir dos relatos do diretor Ivan Sugahara, de seus assistentes de direção, da dramaturgista Rosyane Trotta (em seu primeiro trabalho com o grupo) e do ator e pesquisador teórico José Karini.

O diálogo com referências cinematográficas já estava presente nos outros trabalhos do grupo. Em Vida, o filme os atores brincavam discutindo a influência da linguagem cinematográfica no pensamento dos jovens de sua geração; em Lady LázaroQuero ser Romeu e Julieta a imagem cinematográfica aparecia mesmo projetada em cena, questionando a possibilidade de sua reformulação no palco. O grupo reitera com este trabalho o interesse por materiais originalmente concebidos para uma mídia absolutamente diversa. Ciente das impossibilidades da transposição direta, seu maior desafio parece residir na busca por meios viáveis de apropriação.

É preciso observar que não desejam figurar no palco simplesmente uma adaptação de um filme: se a fábula de Brilho eterno interessa ao grupo, interessam também outros elementos do universo do roteirista, interessam as idéias que os temas retratados suscitam nos membros do grupo, interessa a pesquisa formal que acompanha sua trajetória. Recuperam também neste espetáculo um de seus elementos formais mais recorrentes: a exploração de espaços alternativos. Já haviam montado peças dentro de um apartamento, num saguão de cinema, e mesmo num espaço exíguo onde só cabia um espectador. Desta vez, o pressuposto formal que se impõe à adaptação é o desejo de utilização de todo o espaço do Centro Cultural Oi Futuro, em um espetáculo itinerante.

Ao mesmo tempo, o grupo não abre mão dos referenciais teóricos. Eles realizam encontros periódicos para debater questões pertinentes, idéias que o material traz e sobre as quais desejam falar no espetáculo. Discutem Deleuze, Bergson, Bauman. Não se trata aqui de validar ou valorizar o trabalho com uma citação de nomes. Parece ser propriamente uma imposição de uma dificuldade: não é suficiente a manipulação da fábula do filme, é preciso transformá-la para que o grupo possa comunicar suas próprias idéias – que não são simples de pensar, menos ainda de formalizar e, especialmente, que não são, como não podem ser, consensuais entre seus membros.

Ao falar do tema do amor a partir de Brilho eterno, a companhia cita a nossa “sociedade do antidepressivo, da lipoaspiração”, na qual os processos de se lidar com a dor foram substituídos por mecanismos de evitá-la. Como o amor ainda é possível? Se, por um lado, afirmam, não se acredita mais na idéia do amor perfeito, da alma-gêmea, qual seria o meio do caminho entre isso e o troca-troca descomprometido que não estabelece raízes?

Para transformar conceitos em criação sobre o palco, o grupo identifica alguns procedimentos de criação coletiva: utilizando técnicas de composição de cenas (baseadas no trabalho da americana Anne Bogart), os atores partem de determinados temas e elementos para compor fragmentos de situações. Ou seja, simulando circunstâncias pré-determinadas, personagens com certas características, os atores atualizam em seus corpos, em suas vozes, tais situações dadas. O esforço da dramaturgista tanto está em organizar esses pedaços num roteiro razoavelmente coerente, quanto em, junto com o diretor, propor novas cenas, trazendo para o ensaio trechos de texto escrito, para serem desmontados, testados, ou simplesmente seguidos. Nesse jogo de vai-vem entre experimentar e construir, fragmentar e fixar, a companhia contou-nos de seu esforço para construir uma linha narrativa inteligível para o espetáculo, construir um percurso para os personagens, não se perder na fragmentação.

Lenda ou não, o diretor relata que, em certo momento do processo, um dos atores teria surgido com a questão de que, na verdade, depois de toda a experimentação, ele tinha se dado conta que o que queria mesmo era contar aquela história do filme. Talvez esteja aí o cerne da discussão possível para esse processo dos Dezequilibrados – há formas prontas, há objetos bem-formados, com as quais nos identificamos. Usamos desse material como veículo de expressão artística – montamos textos dramatúrgicos, adaptamos romances. O trabalho do grupo parece ser continuamente o de desmontar essas referências, olhar pra elas, ver como elas servem pra eles, como elas dialogam com seus filtros da realidade. Suas reflexões a partir desses elementos são incompletas, desencaixadas, como é próprio do pensamento, e mesmo do desejo de expressão artística. Entre citar as referências na sua crueza, contudo, percebo a preocupação do grupo em buscar novos encaixes, novas estruturações, montar novos objetos de identificação a partir dos restos do pensamento. Parecem preferir investigar um diálogo coerente que alcance algum tipo de unidade do que simplesmente citar na precária dissolução.

Em Adaptação, o personagem de Nicolas Cage, insatisfeito com a idéia de simplesmente apresentar os destroços de suas tentativas de transformar o material literário, rende-se ao sistema, procura um entendido em roteiros hollywoodianos, amarra e encerra seu filme com uma solução facilitada em forma de enredo policial. É um filme que fala do insucesso do indivíduo perante a máquina da indústria cultural. Os Dezequilibrados também não se satisfazem em apenas mostrar seus destroços, mas, diferentemente do personagem de Cage, continuam aflitos, incomodados, inquietos, construindo e destruindo, desejando pra além das formas prontas e batalhando com suas próprias dificuldades em criar novas inteirezas.

Vol. I, nº 1, março de 2008

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