Formas inscritas

Crítica da peça Não sobre o amor

10 de maio de 2008 Críticas
Atores: Leonado Medeiros e Arieta Correa. Foto: Carol Sachs.

A peça de câmara da Sutil Companhia de Teatro inicia a sua relação com o espectador, através do título, com a palavra “não”. Não sobre o amor. Algum “não” se dá também quando o trabalho é apresentado como peça de câmara. Se esta é a primeira peça de câmara do grupo, os artistas envolvidos no trabalho estão, de certa forma, dizendo um pouco de não para um jeito de fazer teatro que eles já conhecem e que já sabem fazer. Se este novo trabalho demanda outro formato, dizer “não” para os procedimentos familiares é dizer “sim” a esta demanda. Dizer “não” pode ser o começo de algo, não um fim. O “não” do título também carrega um “sim” implícito, um “sim” inevitável. O espetáculo fala sobre o amor, mas não simplesmente sobre o amor: fala sobre formas de expressão e sobre falar (ou não) sobre o amor.

Em cena, temos uma relação epistolar, ou seja, uma relação que não se dá no encontro entre os corpos; em que os amantes, supostamente, não estão se vendo. As cartas criam imagens: a escrita autobiográfica de Victor Shklovsky apresenta uma auto-imagem quando fala de si e uma imagem igualmente “ficcionalizada” quando fala do outro. A personagem Alya, objeto do amor de Shklovsky, sua interlocutora nestas cartas, aparece, portanto, em imagens projetadas sobre tudo o que está em cena, inclusive sobre os atores que estão ali como aqueles personagens. Quando aparece em carne e osso, a atriz Arieta Corrêa confere a Alya uma presença fugidia, talvez fantasmagórica, adjetivos que são comumente aplicados à noção mesma de imagem: algo que se contrapõe ao real, que não se pode apreender por completo, uma aparência – ou aparição. É como se pudéssemos ver o trabalho de não fazer um personagem, afinal, Alya é uma mulher que nunca existiu, ela está ali no lugar de outra, à guisa de suporte para outras idéias.

O cenário de Daniela Thomas propõe um quarto: cama, tapete, mesa de cabeceira, escrivaninha, janela. Em diversas ocasiões, a imagem de Alya cobre tudo: ela, Shklovsky e o espaço se fundem. Alya é como um lugar para esse homem exilado. Ele projeta nela os sentimentos que experimenta na sua condição de estrangeiro. Na peça, as imagens projetadas reconfiguram o lugar real, tornando-o, também, imagem, como a lembrança que o estrangeiro guarda de sua terra natal. Este cenário sofre diversas intervenções. O quarto de Shklovsky é um quarto sem pátria na medida em que seu centro gravitacional foi problematizado: a cama fica na parede ao fundo (como se nós, espectadores, estivéssemos assistindo do teto), a escrivaninha tem os pés presos na parede da direita e a pequena lâmpada é “pendurada” por um fio do chão (como se o palco estivesse de cabeça para baixo). Para habitar este espaço estranho, Leonardo Medeiros precisa fazer certo esforço físico. Este esforço, no entanto, parece ter se diluído e é feito com naturalidade, o que sugere que o corpo (como o homem) acaba por se adaptar a transitar por espaços diversos, mesmo os mais hostis. Trata-se, portanto, de uma cenografia que atua sobre o espetáculo como um lugar-fantasma, um lugar-imagem que sugere significados, provoca conflitos e dialoga com os sentidos do que está sendo dito pelos atores.

Além da figura de Alya, diversas frases são projetadas na parede ao fundo do palco ao longo de toda a peça. Estas frases anunciam – acredito que na maioria das vezes – uma nova carta.  Este recurso, que foi utilizado em outros trabalhos do grupo, propõe um mecanismo particular para esta peça. As palavras escritas são faladas logo depois, fazendo com que o espectador, ao escutá-las, perceba algum rastro destas frases na memória. Em outros momentos, a projeção das imagens das palavras é concomitante à fala dos atores. Este mecanismo revela a própria materialidade do objeto trabalhado – a escrita (não o amor). Esta alternância de imagens – a figura de Alya e a escrita – reitera que Alya talvez seja um objeto que se refere mais a esta prática do que ao amor, embora o amor esteja presente nas duas imagens: na projeção figurativa de Alya e no caráter abstrato das letras, signos desenhados sobre uma superfície plana. Alya é colada na escrita, como se ela também fosse passível de construção e desconstrução.

No papel de Shklovsky, Leonardo Medeiros faz uso de um modo de dizer as cartas que tem o peso de alguns “nãos”, uma vez que o conteúdo de todas as cartas é tensionado pelo pedido de Alya de que ele não fale sobre o amor. Há sempre algo não dito que trava a expressão. E quando, em determinado momento, ele fala sobre o amor, é como se não falasse. A escolha de manter o tom de voz, a intensidade e o ritmo da fala neste momento de transição da peça sugere, talvez, que a forma tenha se desenvolvido tanto que o conteúdo da fala não pode mais provocar interferência. A própria escrita tornou-se um lugar onde ele se vê exilado.

Com relação à experiência de assistir a peça, é possível dizer que a promessa intimista de uma peça de câmara talvez tenha ficado um pouco prejudicada. Não sobre o amor tem uma dimensão espetacular forte, não apenas por causa das projeções, mas também pelo cenário impactante, pela separação bem determinada entre palco e platéia, pelo tamanho da sala de apresentação. O espaço 3 do CCBB foi organizado de modo que pudesse comportar 90 lugares. Além de se tratar de número alto para uma peça intimista (as peças cariocas que não são declaradamente comercias não têm um público médio de 90 pessoas), esta opção acabou por ser bastante desfavorável para o espectador. As pequenas cadeiras do CCBB já são desconfortáveis, mas, desta vez, o público precisou se sentar no chão. Essa opção, que convida o público a se acomodar de maneira descontraída, parece não combinar com a peça, que demanda uma atitude de atenção mais concentrada. Soma-se a isso a qualidade não-dramática do espetáculo, que contribui para que a sua recepção seja um pouco dura para algumas pessoas.

No entanto, aquelas palavras e imagens se inscrevem na memória e o espetáculo se projeta no pensamento. Mesmo que durante a experiência de assistir a peça o espectador se disperse ou se canse por conta dos fatores acima mencionados, este trabalho da Sutil Companhia de Teatro deixa seu traço no imaginário do espectador e imprime uma diferença dentro da sua própria trajetória. Isso acontece especialmente com a última cena, na qual os artistas responsáveis pelas projeções (Murilo Hauser, Carol Sacks e Felipe Hirsch) conseguem fazer uma interferência mais dissonante na visualidade do espetáculo, na medida em que esta imagem final pode ser vista como o negativo da imagem. É como se a última imagem, em alguma instância, criasse uma não-imagem sobre as imagens anteriores, como se revelasse o apagamento de todas as outras.

Vol. I, nº 3, maio de 2008.

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