Entre dramaturgias, atuações e escolhas

Crítica da peça O homem travesseiro, dirigida por Bruce Gomlevsky

30 de dezembro de 2012 Críticas
O homem travesseiro. Foto: Divulgação.

No segundo semestre de 2012, estreou no Rio de Janeiro, na Casa de Cultura Laura Alvim, a montagem de O homem travesseiro de Martin McDonagh dirigida por Bruce Gomlevsky com a sua Companhia Teatro Esplendor. A peça fez ainda uma segunda temporada no Teatro do Leblon no final do ano. O empreendimento do diretor, que também protagoniza o espetáculo, segue uma linha de dramaturgia interessante para o seu grupo. As montagens anteriores, Festa de família de David Eldridge e A volta ao lar de Harold Pinter, apresentavam textos excelentes, ambos sem apelo fácil, encenados com simplicidade: proposta que parece priorizar uma determinada tentativa de relação com o público, uma relação que é, por assim dizer, mais intelectual, no melhor sentido do termo. O diretor não investe muito na visualidade do espetáculo e não prioriza atuações de destaque óbvio. Parece que há uma valorização das ideias que estão em jogo no texto, e acima de tudo, das relações complexas entre os personagens – o que se torna visível, principalmente, em atuações mais discretas e sofisticadas. O foco está na ação, no jogo, e aí o espectador está imerso.

Em Festa de família, a tentativa de inserção do espectador estava mais obviamente sinalizada, pois o público ficava sentado à mesa com os atores, como se fossem convidados da festa do título. A ambientação ficou ainda mais interessante na leitura feita algum tempo antes, no Museu do Meio Ambiente, no Jardim Botânico do Rio, do que no Espaço III do CCBB, onde a peça estreou. As atuações eram um pouco irregulares, algumas um tanto inseguras, outras mais à vontade com a disposição do espectador no espaço. A peça oscilava entre bons momentos na mesa de jantar e cenas um pouco duras, encenadas no centro do espaço cênico. Mesmo com alguns problemas de execução – o que é percebido com muito mais nitidez pelos artistas e pensadores de teatro do que pelo público em geral –, o texto, a ação da peça, tinham um impacto sobre o espectador. A montagem não passou despercebida no cenário teatral carioca.

A volta ao lar, que estreou no primeiro semestre de 2012 no Centro Cultural dos Correios, apresentava um manejo mais coeso da cena. A cenografia de Bel Lobo e o próprio espaço, o ingrato palco dos Correios, propiciavam uma visualidade um pouco dura, quase hostil, combinando com a atmosfera peça. Por um lado, as atuações de Tonico Pereira e Sérgio Guizé pareciam um pouco acima do tom, com trejeitos e composições que chamavam a atenção para si e, de certo modo, minimizavam a tensão da ação. Por outro lado, o trabalho de Arieta Corrêa parecia exemplar de uma teatralidade específica, que tem uma consonância com o tipo de escolha dramatúrgica do diretor: uma combinação precisa de complexidade, economia e presença.

O homem travesseiro é a escolha de texto que parece ter chamado mais atenção. Festa de família já era conhecida pelo filme e A volta ao lar me parece ser um dos textos mais conhecidos de Pinter. O homem travesseiro era inédito no Rio e estava estreando em São Paulo quase simultaneamente. Assisti primeiro à montagem paulista, dirigida por Bruno Guida e Dagoberto Feliz, e assim tive um primeiro contato com o texto, que eu não conhecia. A peça, que estreou no Viga Espaço Cênico, fazia um certo sucesso em São Paulo, que eu não saberia dimensionar por não morar na cidade, mas já estava na segunda temporada quando assisti, no Parlapatões. Vi a montagem dirigida por Bruce Gomlevsky no Rio apenas algumas semanas depois. As duas são muito diferentes, norteadas por opções de teatralidade distintas.

Na peça, um escritor é acusado pelo assassinato de algumas crianças. A acusação se vale do fato destes assassinatos reproduzirem crimes descritos nos contos deste escritor. Ao mesmo tempo em que o texto se apresenta como um suspense policial, no qual os diálogos são interrogatórios e novas informações desencadeiam diferentes possibilidades para a resolução da trama, ele também propõe um questionamento sobre o poder da arte, a responsabilidade do artista e a lida da sociedade com a liberdade artística.

Exponho estes “antecedentes” porque acredito que a minha percepção da peça é bastante influenciada por estas experiências anteriores. Vejo o espetáculo no contexto desta história recente das peças montadas por Bruce e em relação a esta outra montagem do mesmo texto. A comparação entre as peças não tem o propósito de apontar o que é melhor ou pior, mas é uma forma de pensar um texto atual e relevante a partir das opções diferentes de cada encenação, em montagens contemporâneas realizadas em contextos culturais mais ou menos próximos. Vale a ressalva de que, na recepção de um espetáculo, há a influência do gosto e da formação cultural, fatores que não podem ser ignorados e diante dos quais não podemos dissimular imparcialidade.

Na tentativa de pensar o trabalho da Companhia Teatro Esplendor como um todo, identifico que em O homem travesseiro a relação entre a encenação e os diferentes registros de atuação está mais afinada, ou seja, as escolhas dos atores parecem mais coerentes com a dramaturgia e a encenação, embora haja exceção. Identifico algumas instâncias de atuação que podem ser pensadas como meios de expressão da dramaturgia, não apenas dos personagens.

Uma delas é mais limpa, por assim dizer, e se preocupa mais em transparecer a ação e a complexidade da situação que se dá entre os personagens do que mostrar uma composição de uma figura que pudesse fazer parte daquele universo fictício. Neste registro estão Bruce Gomlevsky e Tonico Pereira, que conduzem a ação. Parece que a proposta para o personagem de Miguel Thiré também está neste conjunto, mas seu trabalho parece mais construído, com traços mais fortes. As características do personagem e a sua conduta na ação da peça ficam um tanto sublinhadas. Tonico Pereira faz um trabalho bastante econômico, sem os trejeitos que tanto aparecem em outros trabalhos, como em A volta ao lar. Sua tranquilidade em cena se aproximou mais do registro de atuação de Bruce, que não faz esforço para compor seu personagem nem para ilustrar a ação, na sua constante opção pela neutralidade.

Há um outro grupo de atores que participa de momentos em que algumas narrativas são encenadas. Estes atores aparecem ora como memórias de infância do escritor, ora como ilustrações dos seus contos. Estas imagens surgem como se fossem visualizadas por uma criança. Aqui, a opção da direção é bem interessante. Nestas pequenas cenas, vemos o que se parece com desenhos destas narrativas. No programa da peça, os filhos do diretor fizeram ilustrações para as histórias escritas pelo personagem central. Na cena, a ideia de desenho de criança aparece nas atuações deste núcleo, formado por Glauce Guima, Julia Limp e Ricardo Ventura. As atuações parecem propositadamente distorcidas e constituem um dispositivo lúdico-perverso da encenação, especialmente na atitude despojada de Glauce Guima como a Menina-Jesus.

O terceiro registro de atuação fica a cargo de Ricardo Blat, que destoa bastante, com uma composição de personagem reiterativa e uma impostação de voz já muito conhecida pelo público carioca. Seu personagem é um menino, uma criança. Mas me pergunto se a opção por infantilizar o personagem, por sublinhar a sua afetação de criança, seria mesmo a mais interessante. Talvez seja uma tentativa de defendê-lo. Esta opção da encenação enfraquece o impacto do texto na medida em que reforça o conforto da ficção, lembrando que aquilo tudo “é só uma história.” Mas esta é justamente uma das questões do texto: uma história é só uma história? Como lidamos com o poder que uma história tem de despertar reações imprevisíveis? Um artista pode ser responsabilizado por ações atrozes de outros, que usam suas obras como justificativa? Os Beatles, por exemplo, têm alguma coisa a ver com Charles Manson? A peça trata deste imbróglio indigesto que envolve criação artística, liberdade de expressão, censura e a forma como a sociedade reage à histeria coletiva provocada por determinados fatos.

Algo parecido acontece com a montagem paulista, mas não apenas com este personagem e sim com todos. A montagem que estreou no Viga Espaço Cênico, que adotou o título original, The Pillowman, opta por composições marcadas, carregadas nas tintas, em que os atores reiteram o caráter ficcional dos personagens e da ação, algumas vezes apostando mais no humor do trabalho do ator que na complexidade da dramaturgia. Tudo tem um certo tom de brincadeira – uma brincadeira perversa, mas, ainda assim, uma brincadeira. É uma opção que também pode ser muito apreciada, mas que me provocou a me esforçar para perceber o texto por trás da montagem.

The Pillowman. Foto retirada do blog de Santiago Nazarian: santiagonazarian.blogspot.com

A montagem de Bruce, com sua naturalidade, especialmente com o efeito de contraste das “ilustrações”, parece tocar na ferida de forma mais afiada, fazendo do texto uma provocação, um gesto de teatro mais incômodo e questionador do que simplesmente uma boa peça de se ver. A crueldade fica mais à flor da pele e as maldades narradas ficam mais cruas, sem o “acolchoado” de uma cena mais “teatral”, no sentido mais corriqueiro da palavra. Assim, acredito que a administração dos registros atoriais pode ser uma chave para o caráter aguçado da montagem. O que acima apontei como teatral, neste caso especificamente, isola e protege o tema no âmbito da fantasia. Já a neutralidade traz a peça para o real possível, para o que tem de assustador na possibilidade das ações e pensamentos daqueles personagens apresentarem alguma verossimilhança. Afinal, as tendências fascistas na lida com a arte no Brasil estão longe de ser fantasia.

Justamente por isso, acredito que a opção para o personagem de Ricardo Blat enfraquece o impacto da montagem, embora sem comprometer o todo. Sua atuação proporciona certa distração, na media em que lança mão de uma teatralidade mais conservadora, plana e explicativa. O personagem poderia ter recebido um tratamento mais sutil, sugerindo uma complexidade na sua personalidade.

Fica a expectativa da próxima peça do grupo dirigido por Bruce Gomlevsky, a curiosidade pelo próximo texto, pelo próximo elenco e pelas próximas escolhas. Vale também a observação de que seria interessante ver como a companhia consegue manter continuidade no seu trabalho – e a permanência dos elencos é uma questão aqui – tendo em vista que as condições de produção teatral no Rio de Janeiro em nada favorecem os trabalhos continuados.

Daniele Avila Small é mestre em História Social da Cultura pela PUC e bacharel em Teoria do Teatro pela UNIRIO.

Vol. V, nº 50, dezembro de 2012

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