Incisão na fantasmagoria – perspectiva da ruína familiar

Crítica da peça Pterodátilos, de Nicky Silver

30 de outubro de 2010 Críticas
Ator: Marco Nanini. Foto: Carol Sachs

A peça Pterodátilos dirigida por Felipe Hirsch é a encenação do texto do americano Nicky Silver e já havia sido trabalhada pelo diretor e pelo ator Marco Nanini há oitos anos, quando ganhou o prêmio APCA de melhor espetáculo em 2002. Segundo Hirsch, a necessidade de retomar o projeto de Pterodátilos está investida, sobretudo, pela conformação de mercadoria cada vez mais evidente, pela qual a sociedade se constitui. Essa intenção é formalizada com apuro na encenação atual que realiza uma apropriação crítica dos processos de reificação – isso confere seu teor de modernidade e de contemporaneidade. A fábula se desenvolve a partir da desestruturalização de uma família de classe média alta, cujo patriarca é Arthur (Marco Nanini), um empresário presidente de banco, e sua mulher Grace (Mariana Lima), uma dona de casa alcoólatra e, por isso mesmo e inversamente, consumista. Ambos são assolados pelo retorno do filho Todd (Álamo Facó) e pelo eminente casamento da caçula Ema (Marco Nanini) com o namorado Tom (Felipe Abid), transformado em empregada. Surgem tensões de ordem material, o desemprego do pai, a gravidez da filha, a infecção que acomete o filho e a descoberta de ossos no subsolo da casa.

O desafio crítico aqui, ou seja, formular um pensamento em conjugação com a obra que seja capaz de disseminar os sentidos que ela promove, se depara com a disponibilidade para encarar a dialética que constitui a encenação. Essa dialética é um jogo, presente nas obras, entre sua presença e seu desaparecimento que articula as referências originárias e as referências que se projetam. Os objetos em arte são elaborados de um modo a possuírem a característica de brincar com a história – de fazer aparecer o tempo do agora em que são representados e os tempos do “antes” e os possíveis “depois”. Nesse jogo dialético o presente se dá ver como uma tensão em fricção com temporalidades outras que o revela apenas se nos detivermos à sua leitura, se nos pusermos em obra junto a ele. No caso de Pterodátilos essa dialética parece se ajustar a um movimento fantasmático preconizado pela dramaturgia e que encontra formulação na encenação. No caso dessa primeira temporada no Rio de Janeiro, o fato de ela se dar em um teatro de um shopping da zona sul cria uma possibilidade de pensamento que não se acomoda. A princípio fica difícil compreender como um espetáculo pode se encontrar com um público com uma, pelo menos, suposta grande identificação. Como ele poderia desenvolver um campo de tensão suficiente para provocar novos sentidos que não sejam interferidos pela mera identificação? Por que não é isso que acontece. A encenação abre brechas no pensamento por meio de uma espécie de insistência no acúmulo de estereótipos que fazem deslizar nossa atenção para além do previsível.

Personagens fantasmáticos

Seus personagens são como as mercadorias exóticas que deram a Baudelaire a oportunidade de observar que as sensações provocadas por elas exigiam um novo tipo de atenção aos visitantes da Exposição Universal da Paris moderna. Seu exotismo é forjado pelo paroxismo de um comportamento juntamente com sua visualidade que, ao mesmo tempo, nos provoca uma rejeição (daí sua característica exótica) e uma performance de investigação. Se a fábula se constitui por meio da ação de desintegração de uma família, ela, em primeira instância, já se mostra objetualizada. Quando a família se mostra como objeto, imediatamente suscita uma relação de leitura no âmbito de uma experiência privada que ela (a família) coloca e recoloca em jogo. O paroxismo (das atitudes e da indumentária) nos distancia de dados biográficos e infere a capacidade de insistência diante de nós em colocar a história como ruína enquanto questão visual.

Os limites de personalidade tornam-se opacos se nos referirmos a um pai que é executivo, a uma mãe alcoólatra e consumista, a uma filha que é virgem aos trinta anos, ao seu namorado que torna-se empregada da casa e o ao seu irmão que aparece como figuração de seu próprio desaparecimento. Ao mesmo tempo em que esses personagens constituem clichês familiares contemporâneos, essa condição levada ao limite os devolve a humanidade que possibilita nossos processos identitários. Essa é sua condição visível de mercadoria que assume a inutilidade da função, impressa pelos estereótipos, assim, os personagens mimetizam o objeto que passa a ser um signo cambiante no que diz respeito ao seu lugar de valor. O valor não é medido pelo uso que se faz dele, mas pela subjetividade conferida à sua forma.

Essa forma assume uma dança fantasmática que formaliza um jogo de oposições em desdobramento que, por um lado se mostra carnal nas posições geracionais – pais e filhos – e por outro lado, se encontra impressa como produto no uso do paletó do pai, na alta costura da mãe, na composição do tailleur fashion da filha e no estilo “usual” do filho. A fantasmagoria pode ser compreendida como um valor acessório que tem seu ganho de causa por meio dos nossos processos de identificação com os objetos.

A fantasmagoria segue com Marco Nanini como pai e como filha, no namorado como empregada, no filho que retorna em processo de morte e na aparição noturna da mãe no quarto do filho, que cria uma sensação entre o sonho e o despertar. Existem sempre dois pólos de uma complementaridade estranha que dão a ver um percurso invisível entre eles. Aqui se configura uma noção de temporalidade marcada pelas ruínas, que se deixa vazar aos espectadores por meio de certos traços como, por exemplo, na máscara plástica da mãe, pelos diálogos – espécies de fragmentos das últimas consequências impostas pelos personagens a si mesmos e aos outros. O texto de Nicky Silver opera tal grau de mercadorização dos enunciados que estes, por seu paroxismo, acabam deslocando as fronteiras entre as noções de subjetividade e de objeto.

Estranha economia da representação

Mas como as tensões sinalizadas até aqui podem figurar no trabalho de representação dos atores? Como eles podem dar a ver uma figuração que carrega o estranhamento necessário para a reflexão da recepção? A característica da obra moderna é pautada pelo seu teor de obra não orgânica, isto é, por ser composta por um procedimento de montagem que, ao retirar os objetos de sua narrativa contínua, joga uma luz sobre eles. A montagem retira o objeto de um fluxo narrativo e o recoloca em um outro lugar, cujo sentido só pode ser encontrado nesse novo tecido que se cria. O montador interrompe um fluxo de imagens, por assim dizer, originárias, desestruturando nossas concepções ontológicas.

A representação configurou este sentido por meio de um registro econômico dos atores. Pensemos no teatro como situações e comportamentos. O texto dramatúrgico de Pterodátilos é constituído por uma precisão de diálogos quase inacreditáveis de serem ditos devido a sua amargura ou crueldade. Essa crueldade ao limite provoca humor. Esse contexto de situações cruéis e risíveis é enfrentado pelos atores sem lançar mão de certos recursos mais tradicionais de pausas que demonstram o percurso do pensamento que procuraria sublinhar a tensão entre amargura/crueldade/humor. Assim, pensamento se materializa como ação das palavras. O jogo dialético entre a presença e sua invisibilidade visto aqui como forma, acontece por que os atores se mostram como significantes.

A Ema de Nanini é absolutamente visível em gestuais afetivos femininos. Isso impregna a percepção do espectador de uma crença em sua performance. Ao mesmo tempo, não deixamos de ver sua estatura, seus cabelos em tom platina e os traços de seu rosto que nos remetem ao que o ator transforma em invisível – o fato de ser do sexo masculino. A economia aqui está em afirmar materialmente os detalhes subjetivos do feminino. A beleza do trabalho de um ator como Nanini que certamente nos impressiona pela atualidade de sua personalidade, de sua compleição física, de sua voz e de todas as alegres referências que temos de outros momentos em que o vimos atuando parece estar na generosidade de se dar a ver nessa dialética de sua própria invisibilidade, dando lugar a outra coisa. O resultado é que os espectadores participam com uma reflexão em semelhança com o que faz a dramaturgia, ou seja, perfazem um movimento de desfazimento que afirma os fragmentos, as ruínas, os restos.

Atriz: Mariana Lima. Foto: Carol Sachs

O traço que o objeto mercadoria carrega é o de se dar a ver como subjetividade. Essa característica aparece em Mariana Lima, que não impregna sua Grace de nenhum juízo de valor. Sua indumentária não aparece como objeto morto separado de seu corpo, ou seja, os objetos estão vivos e dão a ver sua carga de subjetividade. A crítica que se apresenta está em sua forma precisa e vertiginosa. Seus movimentos ganharam uma economia que já víamos apontada como desejo em outros trabalhos da atriz em que sua corporalidade se apresentava, não como abstração em favor de um personagem, mas como matéria de sentido. Isso se deu modelarmente em Apocalipse 1,11 com a companhia Teatro da Vertigem. Em suas parcerias com o diretor Enrique Diaz – Paixão segundo GH e Gaivota esta prevalência do corpo foi se transformando em favor do aparecimento de uma complexidade de relações entre as noções de interior e exterior. Suas performances nos faziam perceber um trabalho no sentido de estabelecer uma “metáfora em ato” em que as noções de corpo e a de alma se dão a ver em uma relação de explicação e ocultamento. O filósofo Giorgio Agamben faz uma relação entre a arte contemporânea e as formas dos emblemas medievais na qual ele esclarece que seu espaço não se caracteriza pela importância do que vai escrito ou da imagem, nenhum dos dois prevalece. O significar deve aparecer do acasalamento e da mistura dos dois que procura depois por um deslocamento. O sentido se dá por um “processo de diferença e de recíproca negação-afirmação” (AGAMBEN, 2007:236).

Cenografia da petrificação

A cenografia de Daniela Thomas descortina a questão silenciosa do cadáver que rege nossas vidas. Ela entroniza o paradoxo do movimento do viver em direção à fixação da caveira. Se por um lado fica claro que a dramaturgia sinaliza como os processos de consumo são metafóricos da consumação das nossas energias vitais, ela também parece revelar que nossa pulsão encontra no desgaste uma forma de deslocamento do lugar comum – é ao filho que a história se descortina. Ele é o responsável em seu processo de desaparecimento (infecção pelo HIV), por levantar as partes do chão que encobrem aquilo que queremos recalcar – nossa forma fixa na caveira que só pode ser obtida após a consumação. Os buracos abertos no chão e seu deslocamento fazem com que os personagens/atores precisem se deslocar, procurar por um novo modo de andar que inclui ver os espaços do recalcado. O fóssil é revelado em vida e ainda existe um motivo para a esperança. Essa esperança é oferecida ao espectador quase como Hamlet nos oferece Yorick. Nesse momento o chão do palco se transforma na plataforma de Elsinore e viramos todos Fortimbrás, espectadores da tragédia. Mas de uma tragédia circular que pode recomeçar, pois somos remetidos ao personagem de Arthur como um fantasma, um morto ereto que vagueia pela sala da casa.

A afirmação de Petodátilos como um objeto que dá a ver uma dialética entre o visível e o invisível retifica o fato de que a o lugar do diretor de teatro na atualidade, quando parte de um texto dramatúrgico, é o de materializador dos significantes possíveis. Do modo como eu percebo, Felipe Hirsch realiza essa operação e não procura por nenhum significado obscuro atrás do suporte textual.

Atores: Marco Nanini, Mariana Lima, Felipe Abib e Álamo Facó. Foto: Carol Sachs

Referências bibliográficas:

AGAMBEN, Giorgio. Estâncias – a palavra e o fantasma na cultura ocidental.Tradução: Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

Informações sobre a temporada no site do espetáculo: http://www.pterodatilos.com.br/

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