Subjetividades que se ocultam

Crítica da peça Inverno da luz vermelha, de Adam Rapp, encenada por Monique Gardenberg

30 de setembro de 2011 Críticas
Raphael Primot e André Frateschi. Foto: André Gardenberg.

Inverno da luz vermelha se caracteriza por ser uma peça em que o espectador se envolve no desenrolar da história, no desencadeamento das ações na cena e nos conflitos estabelecidos pelos personagens. É, portanto, uma peça em que a trama (a fábula), a história que se conta e os personagens nela envolvidos têm uma importância central na encenação. Claro que essa especificidade é ainda uma alavanca forte nas encenações em nossos palcos. A peça já havia estado em cartaz no Rio de Janeiro, no teatro Gláucio Gill. Ainda lá obteve forte receptividade e retornou ao circuito carioca no frio e distante palco do teatro do shopping Fashion Mall.

A peça conta a história de um triângulo amoroso entre três jovens numa Amsterdam contemporânea. Nela, os paulistanos David (André Frateschi) e Matheus (Rafael Primot), melhores amigos, passam uma temporada dividindo um mesmo apartamento. Certa noite David leva uma garota de programa francesa, Christine (Marjorie Estiano), para resolver o problema de abstinência sexual de Matheus. David conhece a mulher no famoso bairro da luz vermelha, o Red Light District, zona de meretrício da cidade holandesa onde as mulheres se expõem aos clientes em vitrines que dão para a rua. David, aparentemente, só quer se divertir e aproveitar as aventuras legais da cidade. Ao levar Christine para o quarto que divide com Matheus, oferece a prostituta ao amigo para que ele tenha uma noite de sexo. A prostituta se envolve com os dois estrangeiros sexual e afetivamente por essa noite apenas em Amsterdam. Um ano depois Christine vai a São Paulo a procura de David, encontra-se com Matheus e em apenas um dia esse reencontro dos três revela as marcas deixadas em cada um e suas consequências.

A encenação de Monique Gardenberg é centrada na história, na relação dialógica entre os personagens e uma intensa, ao mesmo tempo sutil, exposição da subjetividade de cada personagem. É possível perceber que há uma construção psicofísica de cada personagem, claramente absorvida pela dramaturgia de Adam Rapp, que delimita cada uma das individualidades dentro da composição que se dá à medida que se relacionam intensamente dentro desse triângulo amoroso. Assim, vemos a composição individual que cada ator imprimiu ao personagem e também o jogo de cumplicidade entre os três, capaz de instaurar toda a atmosfera de dor, anseio, desejo e principalmente o vazio que habita cada um daqueles personagens.

Esse vazio talvez seja o que de mais pungente soe da peça, tanto na cenografia (o quarto em Amsterdam e a quitinete de São Paulo) como no desenho que a luz imprime no espaço, a trilha sonora (ouvimos Tom Waits e Radiohead, entre outros) e principalmente, o estado d’alma em que se encontram os personagens. Os atores imprimem um registro que aos poucos vai revelando a personalidade da cada um: Rafael Primot faz um Matheus ansioso na busca de si, na tentativa de ser um roteirista de cinema (ou apenas um escritor) e assim revelando uma timidez, materializada na fala claudicante, entrecortada de balbucios e rápida, sem respiros entre uma palavra e outra. Seu figurino também intensifica esse movimento, bastante coberto por camisas sobrepostas, uma calça que insiste em cair. À medida que se sente tensionado pelo jogo sexual imposto a ele naquela noite, ele vai tirando um casaco para colocar outro, coloca um gorro na cabeça, veste-se cada vez mais. Já Marjorie Estiano constrói com certo mimetismo uma francesa que arrisca algumas palavras em português, se mostra alheia ao que os amigos falam sobre ela, intensificando uma embriaguez com forte apelo sexual.

Embora os clichês de comportamento de uma prostituta estejam evidenciados na construção da personagem,é possível perceber um cuidado para que seus gestos e fala não se tornem estereotipados nem vazios de humanidade. Embora no primeiro ato a personagem pareça estar à margem dos acontecimentos e ser um mero joguete de David, podemos vislumbrar algo a mais, como se soubéssemos que essa mulher irá revelar algo, que sua trajetória nessa história não será retilínea.

André Frateschi, ao mesmo tempo em que compõe de forma quase caricatural o personagem David, registra o sutil vazio existencial daquela individualidade, num discurso carregado de violência verbal e descuido com relação ao outro.

Marjorie Estiano, Rafael Primot e André Frateschi. Foto: André Gardenberg.

A cenografia de Daniela Thomas representa dois espaços de forma naturalista e que invariavelmente compõe a personalidade e intensifica a tensão dos confrontos. Os dois espaços são comprimidos de forma sutil por um quadrante, sem paredes, com varas verticais nas laterais, que delimitam o espaço da cena dentro do palco. O quarto em Amsterdam é um local underground, uma hospedagem barata,com a mesma atmosfera marginal e claustrofóbica do quarto e sala de Matheus em São Paulo, no segundo ato da peça. Espaços que revelam as subjetividades que neles se aprisionam: Matheus e sua ânsia de se encontrar e dar sentidos a seus escritos; Christine que busca abrigo e David que assim como chega se descola desses espaços, deixando rastros de sua passagem. Esse dois espaços instauram uma singularidade que é formada pelos personagens que ali vivem, transitam e se desmascaram. Relacionam-se com aquele espaço, afetam aqueles ambientes e são afetados por eles. No quarto e sala de uma fria São Paulo a presença do personagem Matheus corrobora a atmosfera de compressão cinzenta do espaço.

É interessante destacar a partir daí a troca de cenários entre os atos. O que ocorre é uma transformação radical e até demorada, feita por três contrarregras do cenário da forma mais natural e neutra possível. Somente o personagem Matheus fica em cena e, diante dele, opera-se a transformação temporal e espacial. Essa troca de cenários lenta e gradual provoca uma sensação de um movimento de câmera em que se estabelece a mudança de espacialidades e uma longa passagem do tempo cronológico da história. A própria relação do ator com essa distensão espaço-temporal do personagem denota essa sensação.

A iluminação (Maneco Quinderé) também parece pesar no ar. Sua materialidade é mais evidente no primeiro ato, quando através de janelas penduradas na sugerida parede adentra um tom avermelhado, que remete sensorialmente ao citado bairro boêmio da cidade holandesa, bem como imprime um peso àquele inverno que está fora, na rua, e ao que se dá na relação daqueles três jovens. A luz vermelha evidencia o tom cinzento daquelas vidas. O vermelho do Red Light District se tornará concreto cinzento um ano depois, no reencontro dos três no quarto e sala em São Paulo.

Há um momento na encenação que gostaria de destacar. Antes de o personagem David deixar o apartamento de Amsterdam para Matheus e Christine se conhecerem melhor, em meio ao momento ébrio da garota de programa e do isolamento distante do escritor, David, que se diz um cantor “que quer o sucesso”, lança um solo de guitarra, aparentemente solto dentro do movimento da ação da cena. A música é Creep do Radiohead, um rock que fala de um “cara que se acha esquisito, que queria ser especial como a outra pessoa”. A melodia e os versos da música ampliam a atmosfera de vazio e de solidão que os personagens carregam, ampliam o desejo de falar algo para o outro, sobre o outro e daquilo que ocultam. Nesse ambiente fechado, frio e ao mesmo tempo vermelho, o que parece restar são seres à procura de si, que querem dar vazão aos seus desejos e principalmente, subjetivar suas ações que são pautadas pela relação que estabelece com o outro.

Dâmaris Grün é atriz formada em Teoria do Teatro pela UniRio.

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