Subjetividades em jogo: recorte e montagem do universo masculino de Nelson Rodrigues

Considerações sobre o processo da peça Quer morrer comigo?

10 de abril de 2008 Processos

O processo do espetáculo Quer morrer comigo? será apresentado em 31 de maio e 1º de junho no Centro de Estudos Artístico Experimental no SESC Tijuca, como parte da Mostra Novíssimas Pesquisas Cênicas. A peça, projeto do ator Henrique Gusmão, que também fez a dramaturgia, é dirigida por Daniel Schenker e tem a supervisão geral de Celina Sodré, diretora do Studio Stanislavski, grupo do qual os dois artistas fazem parte. A idéia do espetáculo tem, de início, um caráter que me interessa: trata-se de uma pesquisa em que a dramaturgia e a atuação estão intrinsecamente ligadas no processo de elaboração do trabalho. Não simplesmente porque as duas funções são assinadas pela mesma pessoa, mas porque há uma atuação sobre a dramaturgia, feita a partir de um olhar de ator. Henrique Gusmão pesquisa, nas falas de Nelson Rodrigues, um fio que possa desenhar uma espécie de percurso pelos seus personagens masculinos.

Não digo que ele esteja delineando uma trajetória comum, uma espécie de monomito rodrigueano. Penso que se trata de uma trajetória determinada pelo olhar do ator, de uma leitura-em-percurso através dos textos de Nelson, que visa construir uma cena autônoma, porém enraizada nos mecanismos de construção do pensamento dos seus personagens. Todo o texto é construído com falas (descontextualizadas) de suas peças. Além das falas, alguns objetos são usados na edificação do trabalho. A relação com as falas e a relação com os objetos me parecem atuar como elementos balizadores para a criação do ator: as falas criam e fecham um universo de sentidos; os objetos constituem e sintetizam um espaço particular, um “em torno” que dá ao corpo um lugar de atuação. Dentro destes limites e apoiando-se nestes elementos, acontece a criação da peça.

A ação começa no ponto em que Pedro, personagem de Vestido de Noiva, chega em casa. A partir de então, o ator faz uma construção – fazendo uma intervenção com aquelas falas e objetos – e assim conduz o fluxo desta figura masculina, de Pedro até o Nonô de Álbum de Família. A dramaturgia que se dá neste processo lança mão de uma técnica de montagem: as falas são tiradas de seus contextos originais e recolocadas em outras situações. Mas o que me parece é que este procedimento revela uma camada mais profunda na criação: uma montagem de subjetividades do universo masculino rodrigueano e uma forma de colocar estas subjetividades em jogo.

A redenção aparece como um tema, um fio condutor, tendo em vista que entre Pedro e Nonô é possível vislumbrar um trajeto do homem civilizado a uma idéia de natureza, de estado primitivo, tido como livre dos aguilhões da convivência social e familiar. A própria escolha do idealizador do projeto de fazer um solo, de apresentar em cena a imagem de um corpo só, me faz pensar na individuação como tema, na trajetória de um personagem que se isola e se torna único. Arrisco dizer que o “único” pode ser um dado de redenção, de salvação, para os personagens de Nelson. Como exemplo, posso lembrar que Arandir, personagem de O Beijo no asfalto, em determinado momento, diz que o beijo no asfalto é a única coisa que se salva em sua vida:

ARANDIR: Diz [para Selminha] que, em toda minha vida, a única coisa que se salva é o beijo no asfalto. Pela primeira vez. Dália, escuta! Pela primeira vez na vida! Por um momento, eu me senti bom!

Ele vai sendo desnudado de tudo o que o envolve: trabalho, família, tudo, até morrer (sozinho, único).  A experiência individual de passagem que é a morte – também uma possível redenção – se problematiza com os pedidos de “morrer junto”. Parece que há um conflito entre estar em si e querer o outro (condição possível de Nonô). Um recorte deste impasse, desta questão subjetiva, aparece na apresentação mesma do projeto: uma peça com apenas um ator que tem como título uma fala que demanda a atitude do outro.

***

Dois caminhos se delineiam no universo de expectativas que a conversa com os criadores despertou no meu pensamento: por um lado, este trabalho pode compor um mosaico, uma coleção de imagens masculinas. O interesse do espectador, neste caso, pode ficar dependente do ato de reconhecer ou não a referência aos personagens em cena. Por outro lado, uma montagem de subjetividades pode produzir um facetamento da obra em questão e promover um desnudamento e uma desmistificação dos tipos rodrigueanos – lembrando que a imagem popularizada destas figuras é uma das principais armadilhas para fazer o artista cair no lugar comum.

O projeto, de uma maneira geral, pode suscitar perguntas sobre a dramaturgia de Nelson Rodrigues, os conceitos de adaptação, recriação e o uso de referências, as medidas de negociação com direitos autorais, sobre as noções de personagem que vigoram no teatro carioca, sobre a autoralidade no trabalho do ator, entre outras coisas. Tendo em vista a trajetória da pesquisa de Henrique Gusmão sobre a obra de Nelson Rodrigues (este foi o objeto da sua monografia na graduação e da sua tese de doutorado, que está em andamento), é provável que seu trabalho em cena deixe perceber uma atitude crítica e criativa com relação ao objeto – e não apenas uma empatia repetidora e servil ao cânone Nelson Rodrigues.

Vol.I, nº2, abril de 2008.

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