O que sobra do ritual?

Crítica da peça Todo o tempo do mundo, da Cia Studio Stanislavski

6 de abril de 2008 Críticas
Ator: Henrique Gusmão. Foto: divulgação.

Para a Cia Studio Stanislavski, parece haver algo na relação entre ator e platéia que se perderia com a distância física. Em seus trabalhos, sempre executados para poucos espectadores, as figuras em cena estão muito próximas do público, não exatamente solicitando a participação desse público no desenvolvimento da narrativa, mas demandando uma presença interessada, atenta. Em seu mais recente espetáculo, Todo o tempo do mundo, em cartaz no Teatro Maria Clara Machado, o espectador é conduzido ao espaço cênico pela própria diretora Celina Sodré, não sem antes ter recebido recomendações para desligar celulares, não alterar a posição das cadeiras dispostas pelo espaço e fruir da apresentação.

Minha impressão é de que toda essa proximidade tem, contudo, como objetivo projetar uma distância – o que há para ser fruído está longe daquela matéria, de suas qualidades de coisa física, e mais próximo de uma magia, de uma abertura para um outro plano de percepção, abertura que, em mim particularmente, não se realiza – percebo essa experiência como sendo a de uma frustração; mantenho-me apegado exclusivamente à matéria e vejo que nesta configuração de espetáculo ela não basta. É a partir dessa dualidade do próximo/distante e do material/imaterial que posso dialogar com este espetáculo.

O palco encontra-se dividido em um espaço central e quatro espaços periféricos. O centro é o espaço fabular da prisão. Nele, o ator Henrique Gusmão permanece do início ao fim do espetáculo, manipulando objetos, dormindo e acordando. Os espaços periféricos (separados por véus translúcidos) comportam diversos atores que apresentam, alternadamente, cenas individuais (e algumas vezes em duplas), que são, na fábula, projeções dos sonhos do personagem central, Elias Lírio. Quando Elias está acordado, os espaços periféricos estão desocupados e há uma narração em off de uma entrevista fictícia da diretora Celina Sodré com o personagem – Elias teria escrito um livro sobre sua experiência na prisão, e essa entrevista conta a história de seu livro em detalhes, enquanto a cena central ilustra o momento de clausura.

Quando Elias dorme, aparecem os personagens de sua história. Essas figuras são provenientes de culturas diversas (há uma índia, uma turca, um nepalês, uma australiana, entre outros) e pronunciam frases de tais dialetos, assim como cantam e ouvem canções na língua correspondente. As ações que executam, em sua maioria, são apropriações de rituais específicos daquelas culturas. Foi feita uma pesquisa bastante minuciosa para replicar a palavra falada, as vestimentas, os objetos utilizados, embora esteja igualmente explícita a liberdade tomada para manipular e alterar as referências estrangeiras. O esforço não é apenas o da fidelidade mimética, mas implica uma re-construção de pequenos rituais, criados a partir de elementos de tal universo. Há, contudo, uma opacidade característica a todas essas intervenções. Em nenhum momento fica clara para o espectador a significação dessas seqüencias de ações físicas, desses rituais; cada seqüência tem uma ordenação de ações, um começo, meio e fim, mas não se entende bem seu contexto ou seu objetivo. Assim, desde a primeira cena periférica, está dado que não é propriamente significado que deve ser buscado nelas. O quê, então?

Inicialmente acredito poder dialogar com sua plasticidade, jogar com a superfície, com a matéria. As ações lentas, os movimentos simples e precisos, sem grandes truques ilusionistas, a proximidade com os atores, exercem um tipo de sedução que atrai minha atenção, que desperta um desejo de me relacionar com aqueles acontecimentos dispostos ao meu lado. Encontro, porém, uma barreira para esta tentativa de fruição, justamente em certas características das imagens produzidas. É como se elas quisessem tão ardorosamente apontar pra fora delas, ou seja, o esforço nelas é tão grande em remeter a uma certa religiosidade, em transformar o ato da performance individual numa manifestação para além da qualidade física, que aquele corpo fica acanhado.

Pensemos, como exemplo, em uma cena do ator Carlos Tonelli: ele reparte um pão, dispõe os pedaços cuidadosamente no chão e bebe uma taça de vinho, repetindo alternadamente uma canção e uma espécie de reza, ambas irreconhecíveis; em seguida, mistura o resto de vinho num pó de café, cantando fervorosamente, para espalhar o resultado de tal mistura na face, e, por fim, penosamente retirar um fio de barbante da boca. A religiosidade está, aqui, não só tematizada, mas plenamente aplicada em cena. O ator repete meticulosa e pacientemente uma série de ações mínimas, simples, sem nenhum virtuosismo aparente. Não parece haver nelas a intenção de significar, de comunicar algo; são ações sem função aos olhos do espectador, mas que certamente remetem a um sentido oculto. Se esse sentido está no universo religioso do qual aquela repetição se origina, ou se há um novo sentido engendrado pelo ator na re-criação do ritual, não nos é dado saber. Certo é que suas ações, com aqueles objetos, não se dão primordialmente em função de uma provocação visual à platéia – mas de uma provocação anterior, mais profunda e menos superficial, ao corpo do próprio ator. É preciso que o ritual, pleno de significado, reverbere no corpo daquele indivíduo antes, para que o espectador experimente um contato, não com o significado, mas com alguma espécie de estado, de fervor. O contato com esse corpo energizado seria, então, o objeto real de fruição.

É preciso perdoar minha simplificação, tomo-a como hipótese embora desconheça se ela corresponde exatamente à intenção da companhia. Supondo-a coerente, somos conduzidos ao seguinte problema: e se não acontece nada? Vejo os atores extremamente imbuídos em seus rituais – mas não vejo mais nada. E se não há mágica, e se eu não acredito, o que sobra do ritual?

Sobra a matéria, sobra o corpo; mas um corpo precário, débil. Não um corpo sem domínio de sua mobilidade, não é esse o caso; mas um corpo que se pensa veículo e deixa de se pensar matéria. As construções visuais, com as quais esse corpo se revela aos olhos do público, por vezes se apegam ao lugar-comum: há soluções como banhos de leite, penas vermelhas caindo sobre um vestido branco, pano manchado como um sudário, pão mastigado e cuspido. Não se produz um desmonte dessas referências visuais, aqui percebidas em seu desgaste.  Intuo, contudo, que não é puramente uma questão de soluções pouco impactantes. Se tomarmos como exemplo a atriz Andreia Lopez, grávida no período final da gestação, sua cena dançando com a enorme barriga à mostra é de uma sensualidade absoluta – porém, intervém na cena uma chuva de pétalas vermelhas, já tantas vezes vista. É quase como se não devesse ser possível a fruição puramente erótica do corpo, é preciso um signo anacrônico (no sentido de conhecido, desgastado) para barrar esse acesso. Mesmo na cena de inspiração surrealista de Gabriela Carneiro da Cunha, com seios de plástico pingando leite do céu, há o momento final em que a atriz vai ao chão, como se precisasse de algum tipo de purgação pelo ato. Seus próprios seios à mostra, em outra cena, estão associados a algo que se assemelha a um rito de sacrifício. O corpo nu de Carlos Tonelli se dá a ver apenas sob tortura, e mesmo o abdômen de Dinah Cesare só se revela na morte. As composições desta última atriz diferem das outras, todavia, por efetivamente desmontarem o caráter religioso das repetições, tirando humor de seus rituais e de sua qualidade inapreensível.

O corpo erótico está aqui barrado por sua pretensão a corpo religioso, a veículo de uma alteridade. Arriscando uma comparação com a performance Respiração- (foto mais abaixo), da terceira parte do festival Resta pouco a dizer, em cartaz na mesma semana, há um rapaz nu que entra numa caixa transparente, enquanto uma mocinha vestida fala um texto sobre as propriedades da respiração e contabiliza seu tempo de permanência na clausura. Não só a cena é plasticamente construída para instigar uma fruição erótica, como também esse objetivo é explicitado e confessado no simples gesto do rapaz encostando a mão no vidro embaçado. Há um questionamento cênico do ato de respirar, e há, ao mesmo tempo, um trânsito com suas possibilidades de falar enquanto matéria. E não há mais nada, o resto é apenas construção do espectador. A peça Todo o tempo do mundo, mesmo na cena de sexo à distância entre Elias e a moça de seu sonho, parece necessitar de algo que não está lá – o sexo é um desencontro, uma frustração, uma separação. Nesse sentido, ela está sempre mais próxima do sagrado do que do erótico.

Performance Respiração (-). Foto: Dalton Camargos

Por fim, traço um paralelo entre as ações periféricas e as ações do personagem de Henrique Gusmão. Suas manipulações de objetos no cárcere central não têm o mesmo caráter sagrado das projeções oníricas. Ele parece estar presente na mesma realidade do espectador, fato que é reforçado pela ausência de separação entre a cela e as cadeiras da platéia. Seu corpo acordado, todavia, aparece sempre acompanhado da narração em off da entrevista; as vozes explicitam em minúcias todo o processo de descoberta de Elias na prisão, através de seus sonhos. Não sobra espaço para dúvida e, assim, o personagem não serve a outro propósito senão o de reiterar e ilustrar o que já está sendo dito e esmiuçado. Suas ações não apresentam novidades (em relação à fábula) nem têm uma qualidade particular que chame a atenção: seu corpo de ator fica sem função. Resta somente ao espectador o contato íntimo (e próximo) com seu movimento repetido de acordar e dormir; ele abre mapas, lê livros, bebe um copo de leite. Resta olhar para ele por um longo período de tempo, desfuncional – não mais pela incompreensão e sim pela redundância – e dessacralizado. Curiosamente, é apenas nesta materialidade que, para mim, pode aparecer um resquício de erotismo, justamente aqui onde ele talvez não estivesse previsto. É aqui que o corpo parece ainda ter sentido, graça, despido do mistério sagrado.

Vol. I, nº 2, abril de 2008

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores