Imagem e discurso

Crítica da peça Todo o tempo do mundo

15 de abril de 2008 Críticas
Gabriela Carneiro da Cunha. Foto: Divulgação.

O espetáculo Todo o tempo do mundo, realizado pelo Studio Stanislavski, instala a cena e a platéia dentro do palco do Teatro Maria Clara Machado, formando um outro espaço circular. A cenografia de José Dias intervém efetivamente no ambiente, criando um novo lugar. O espaço de atuação se descola da arquitetura daquele teatro. No centro, um tablado redondo que gira sobre o seu próprio eixo é o suporte para a linha diretriz da trama: o tempo em que um homem ficou preso, os sonhos que teve, sua relação com estes sonhos e a conclusão que se pode tirar desta história. Em torno do pequeno círculo/cela, outro se forma pela disposição intercalada de cadeiras para o público e espaços para as cenas. A divisão entre estes espaços é feita por um véu escuro e pela iluminação. As cenas que acontecem nestes espaços, que às vezes se assemelham a pequenos nichos, apresentam os sonhos do homem que está deitado em seu catre – percebemos esta relação logo de início pois as cenas no círculo exterior só acontecem enquanto o personagem que está no centro dorme.

No entanto, nem todas as cenas se parecem com sonhos. Algumas são feitas de uma forma um pouco explicativa, como se a criação delas sublinhasse claramente o que elas querem dizer. A noção de mistério e indefinição dos sonhos fica de lado nestes momentos. Algumas cenas têm mais força na sua visualidade do que na sua contribuição narrativa. Outras trazem a confusão do sonho e despertam uma atenção diferenciada no espectador. Estas cenas têm uma plasticidade mais intrigante, menos pelo impacto visual do que pelo que despertam na imaginação. Seria difícil dizer quais cenas se encaixam em uma ou outra coisa, até mesmo porque há variações de acordo com a percepção de cada um – o que parece explicativo para mim pode ser incompreensível para outra pessoa e vice-versa. Mas as cenas de sonho não têm uma uniformidade, o que também revela uma certa liberdade para a expressão pessoal dos atores que criaram aquelas cenas.

A disposição circular do espaço, combinada com a distribuição aleatória das cenas por este espaço – por aleatório, quero dizer que elas não seguem uma ordem provável (sentido horário ou anti-horário) – me causaram a expectativa de que a ação da peça também se daria com voltas e lacunas, de uma forma não presumível. A dimensão onírica que se pode vislumbrar naquelas cenas também me fez pensar, logo no início, que eu veria uma construção aberta, da qual o espectador pudesse ter uma participação cognitiva que demandasse a sua criatividade. Mas, em contraste com esta plasticidade que movimenta o olhar, uma linearidade se impõe ao pensamento pela recorrência do texto em off e pelos ecos que o texto faz na cena central. O texto, escrito pela diretora da peça, Celina Sodré, e por Fabio Porchat, conta a história do homem que foi preso e apresenta juízos sobre aquela história. Estes juízos, no entanto, não são reflexivos, não são exercícios de pensamento sobre os acontecimentos, eles se dão mais como julgamentos morais sobre as escolhas do protagonista, sobre a sua trajetória desde que começou a cumprir pena até o momento em que está, digamos, “regenerado”.

A ação que se passa na cela e nos espaços periféricos junto com o texto em off dão a idéia de uma superposição de duas maneiras possíveis de contar a história. A convivência pode resultar em redundância. Em diversos momentos, é possível prescindir do que é dito, pois, a partir do que o ator executa, é possível deduzir o que está acontecendo com ele, como ele está aproveitando para estudar e fazer pesquisas enquanto cumpre a sua pena, como ele tenta entender seus sonhos, fazendo anotações e desenhando mapas das suas idéias. Entretanto, ao longo do espetáculo, o texto em off passa a se afirmar ainda mais, revelando que a montagem tem uma intenção de dizer o que pensa sobre aqueles fatos e não simplesmente apresentá-los para que cada espectador pense sobre eles. O fato de o texto ter sido construído não apenas como diálogo, mas como uma entrevista é indicativo de uma vontade de ter perguntas respondidas. Assim, o texto em off dá respostas claras para as possíveis questões da peça.

Há uma lição de moral: o ex-traficante se torna professor para autistas e, como toda pessoa considerada diferenciada pela sociedade, ele escreve um livro. Ele estava à margem da sociedade e agora se tornou útil, admirável e talvez seja até uma celebridade. Este elogio ao politicamente correto soa estranho numa peça de teatro com aquela disposição estética que, de algum modo, fala de uma liberdade de pensamento possível (talvez simplesmente por se distanciar do convencional), com o interesse por outras culturas que não são a que vivemos e vemos no teatro o tempo todo, com a própria dimensão de sonho que está ali esboçada.

Penso que não há como ser imparcial ao falar sobre este espetáculo, uma vez que ele coloca em jogo uma questão de crença. Ele parece acreditar numa espécie de regeneração do ser humano através do sacrifício, da penitência e dos rituais religiosos. Com a realização mesma da peça, parece que esta crença se estende para o universo da arte, como se a arte também tivesse um poder de fazer o ser humano “evoluir”. Compartilhar ou não desta crença influi diretamente na recepção e, acredito, é determinante para o diálogo que o espectador vai estabelecer com o que está em cena. Ao fim do espetáculo, pensar “gostei” ou “não gostei” perdeu importância. O questionamento que ficou foi um “acredito” ou “não acredito”, “concordo” ou “não concordo”, independentemente de ter ou não gostado. As polaridades se instalam, em conflito: a forma me parece ser de uma peça, mas o conteúdo parece ser de outra. Imagem e discurso estão ali, juntos e, no entanto, bem separados.

Vol.I, nº2, abril de 2008.

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