A noite é das estrelas

O conjunto de favelas da Maré como palco de ocupação artística

15 de abril de 2024 Críticas

Homenageando os shows de artistas LGBTQIAP+ das décadas 80 e 90, a ocupação artística Noite das Estrelas produziu um mapeamento de feitos artísticos destes artistas locais, do ontem mas também do agora, e se expandiu com um espetáculo pelas ruas da Maré, culminando no ponto ápice da performance na Quadra da Escola de Samba Gato de Bonsucesso. Além do espetáculo, a Ocupação contou com exposição de documentos fotográficos “A Noite das Estrelas, uma Galáxia Imorrível” na Lona Cultural Herbert Vianna. Antes da exposição e do espetáculo, pertencentes a ocupação, foi produzido um filme homônimo, com recursos da Lei Aldir Blanc, em 2020, e tendo sua estreia no Festival Internacional de Cinema Zózimo Bulbul. Diversas ações foram feitas também durante a ocupação, como uma oficina de produção que visava estimular pessoas LGBTQIAP+ do entorno a terem contato com produção cultural, conduzida por Bem Medeiros que, junto com Wellington Oliveira, trabalham na equipe de produção do espetáculo.

Toda a ocupação é idealizada e realizada pelo Entidade Maré, projeto criado por artistas pretes LGBTQIA+ da localidade, com o objetivo de trabalhar a memória cultural deste território (principalmente a memória não cis-hetero-normativa)[1]. Dirigido pelas “irmãs Lino”, Wallace Lino e Paulo Victor Lino, Noite das Estrelas  conta com elenco (fixo e participações especiais diárias) que tem e já teve nomes como Deize Tigrona, Jaqueline Andrade, Livia Laso, Dominick di Calafrio, Marcela Soares, Milu Almeida, Preta Queenb Rul, Arthus Gabriel, Codazzi Idd, Lua Brainer, MC Sofia, Ventura Profana, Mariwo, Luiz Otavio, Ariel X, Joa Assumpção, Kastellany, Khaita Gringa, Leticia Vieira, Lorrany Sabatella, Marcela Soares, Monique Raison, Nádia Passiva, Natalhão, Nyara Wassa, Quita Pinheiro, Soraya Maria, Van Preta, Quadrilha de Show de Ramos, Mostra Maré de Música, Bateria do Gato de Bonsucesso e Batekoo.

Foto: Thanis Parajara.
Foto: Thanis Parajara.

EXPERIÊNCIA ONÍRICA: o sonho re-faz a realidade

O filme homônimo, produzido antes do espetáculo, traz corpos pretos, trans, homossexuais, mulheres e pessoas não binárias, transformistas e drag queens que juntes fabulam sobre o antes e o agora. Esse encontro é promovido em uma laje, para confabular, tramar estratégias de sobrevivências, para que estas corpas sobrevivam e que a noite não termine mesmo quando o sol raiar. No espetáculo-experiência, essas personas-personagens descem da laje e nos encontram, nos convidam a, junte delas, co-criarmos existências múltiplas que sobrevivam. É sobre viver (e experienciar) pelos becos da Maré.

Assisti/participei (como público ativo) do espetáculo na temporada que se deu por vários domingos de junho e julho de 2023, tendo como lugar de partida o ponto de mototáxi da Rua Teixeira Ribeiro, sempre ao fim das tardes de sol que fez nesses meses. A partir do encontro com os atuantes, com moradores locais, com as motos, com as crianças, com outras pessoas de outros pontos distintos da cidade que chegam ali para presenciar o evento cênico, tudo é palco, tudo é oportunidade de co-criação cênica e imaginativa: inclusive a cerveja que compramos e tomamos no bar que existe em frente ao ponto de mototáxi. Uma das figuras-personagens nos alerta: “Daqui pra lá não se pode tirar foto!” E isso é quase um convite para sairmos do tempo dos stories e das artificialidades técnicas construídas e absorvida por nós nas últimas décadas para entrarmos em um outro tempo criativo, onírico e que nos desloque desse tempo e espaço para darmos um salto atemporal e vermos a Maré de outrora em choque com o ambiente Mareense dos tempos atuais: um buraco no tempo que nos transporte para o encontro.

Esse encontro é promovido pela verticalidade que o grupo se dá no processo, fazendo e vivendo junto. Não é um olhar de quem vem de fora e explora os que ali vivem, mas sim uma construção a partir de quem cresceu e vivenciou aqueles becos e agora, junto dos seus, promove um grito que evoca outras vozes do ontem: vozes estas que, apesar de viverem em décadas mais difíceis de ser LGBTQIAP+ e ter seus direitos garantidos, promoviam shows coloridos e imaginativos, vidas que pulsam glitter e cores, contrastando com o sangue derramado de corpos não cis-hetero-normativos e pretos que fizeram historia nesta comunidade.

Foto: Ratão Diniz.
Foto: Ratão Diniz.

As cenas-performances são construídas também como que para este território específico, encruzilhadas, becos e vielas que se transformam em palcos-plataformas para a conjunção entre todos os corpos que constroem esse exercício artístico específico. Ainda no início de uma larga caminhada pelo espaço geográfico local, que também serve como cenário na então-ficção (na verdade uma fricção entre o que existe, existiu e o que é co-criado com atores-espectadores) somos divididos em duplas e erguemos largas cangas com fotos de artistas que se apresentavam no famoso Noite das Estrelas nestas décadas do século passado. Ergo uma canga com a foto de uma figura feminina montada que performa sobre um palco de madeira e tenho meu deslocamento interrompido por uma moradora da Maré que grita para outras apontando para a foto que eu carrego com o braço erguido: “Esse é o meu irmão que morreu!”.

São inúmeras falas que não constavam no roteiro original, são inúmeros atravessamentos nesse deslocamento enorme que fazemos nesse palco a céu aberto que se chama Maré. “Nesta casa aqui viveu meu avô!”, diz uma das atrizes que fala de uma janela no segundo andar de um prédio em um beco muito estreito onde público-moradores-transeuntes tentam se encaixar em pequenos espaços para entender de onde vem a voz, para enxergá-la. Em determinado ponto somos convidados a colocarmos uma venda em nossos olhos e, divididos em duas filas (ENORMES), sermos conduzidos por diferentes localidades até chegarmos à Quadra da Escola de Samba Gato de Bonsucesso e aí sim abrirmos nossos olhos sem vendas e entendermos que a noite chega e que estamos dentro da quadra para ver não as estrelas do céu, mas as estrelas da Maré.

Na quadra da escola podemos experienciar um verdadeiro show, aos moldes do antigo Noite das Estrelas, das décadas anteriormente mencionadas, tendo participação de travestis, Drag Queens, bixas, sapatonas, NB’s, transformistas do ontem que ali apresentam e relembram quem viveu neste espaço e construiu essa noite na qual agora adentramos. Em meio à dança de vogue, funk, (um motoqueiro que entra em sua moto trazendo uma belíssima travesti preta!), presenciamos apresentações também de artistas das novas gerações que seguem o legado das do ontem, um rabisco no tempo e espaço, promovido com muita festividade política dentro desta quadra.

Foto: Ratão Diniz.
Foto: Ratão Diniz.

O experimento cênico, para além de toda a ocupação, é não só um convite para a celebração desses corpos que viveram outras décadas, mas para expandir o olhar para jovens artistas locais que produzem vida, arte e política dentro e fora da Maré em 2023. Artistas estes que circulam por toda a cidade, além de entrarem e saírem todos os dias desses becos para promoverem arte em outros pontos da cidade: artistas que fabulam sobre seu território originário honrando sua ancestralidade e que convidam o seu público, também de outros pontos desta metrópole, a prestigiarem a reconstrução histórica que fazem ao reverberar as potências artísticas que construíram caminhos sólidos para que hoje eles tenham história não só para contar, mas para honrar.

Porém parece que, mais e além do que trazer a ancestralidade honrada e pensar no que fazemos a partir dela, na contemporaneidade (do teatro, da/na cidade, na vida) o compromisso maior deste trabalho não se dá só na contemporaneidade, mas sim, e muito, na permanência, na eternidade. É sobre reconstruir e reescrever junto uma história que não pode ser esquecida e apagada, mas revisitada, compartilhada e potencializada nos caminhos artísticos do hoje, que prossigam em muitas noites cheias de estrelas do futuros próximos e distantes.

Nota:

[1] Para mais informações: entidademare.com

Maria Lucas é uma artista da cena e pesquisadora carioca, doutoranda em Artes pelo PPGARTES – UERJ.

Vol. XV nº 74, outubro de 2023 a outubro de 2024

Foto em destaque: José Bismarck

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores