O feminino independente do corpo & a performance independente da plataforma
Elucubrações a partir da obra Gaia, de Nina da Costa Reis e Eduardo Ibraim em cartaz pelo Pandêmica Coletivo Temporário de Criação
Uma confluência de idiomas: português e espanhol. Como numa viajem de avião, somos convidades a navegar pelo continente intitulado América Latina. Imagens e sons desconexos revelam na tela corpos não desvelados, assim como as vozes. Os performers que constroem e materializam imagem-som em suas corpas e na tela são Nina da Costa Reis e Eduardo Ibraim; uma mulher cisgênera e um homem cis, ou melhor, uma bicha. Essa interação entre bicha-mulher-tela, multilíngue e performática, é chamada de Gaia, uma experiência promovida através do YouTube em cartaz na parceria com o Pandêmica Coletivo Temporário de Criação.
Gaia, que na mitologia grega seria “mãe terra”, traz a mitologia pré-colombiana do Jaguar e em algum momento me perco pela confluência de referências estéticas e visuais, mas me lembro que esse mito, o Homem-Jaguar, possui relações com a cópula de animal e humano, o que me remete a um corpo-corpa já distante, dissidente, de padrões europeus-brancos-hétero-cis. Talvez essa experiência seja mesmo uma viagem (ou uma viadagem, talvez vadiagem) por-sobre algum rincón dessa latino-america. Sobretudo uma viajem psicodélica, talvez um espalhamento desse mundo ditado por regimes opressores, como citei uma dupla de frases atrás, ou um espelhamento de como nossas mentes se manifestam em meio a tantas demandas (pelas telas) nesse caótico 2020. Lembro-me da data específica desse ano, pois mesmo nessa viagem proposta, o nome “zoom” escrito na parte esquerda baixa da tela, não me deixa esquecer de que com todo esse voo, eu continuo no YouTube, na minha casa, na minha cama, deglutindo através dos olhos e ouvidos (é sugerido que coloquemos fones de ouvido), fazendo com que meu corpo nu se estimule e que todas essas evocações simbióticas tragam aqui em palavras reverberações dessas distintas formas de evocações das artes performáticas: a performance Gaia.
Me gusta, em meio ao turbilhão de textos imagéticos lançados inaudíveis em meus olhos e ultra estimulando o som de minhas pupilas, ouvir a palavra mulheres ao lado de milhares e logo depois escutar a palavra ”strong” (forte em inglês), pois me faz pensar com o corpo (todo) sobre a multiplicidade do feminino, da mãe-terra, em CÚalquer tipo de corpo independente de como vem ao mundo (de sua genital ou das de seus antecessores, podendo ser eles homens, mulheres, animais ou qualquer “ser copulante”).
Ser copulante mas também ser corpolante, pelo desejo de, através do corpo, burlar as normas de gênero que oprimem e matam en latino-america milhares de corpas-jaguar que, não sendo vistas como deusas, são violentamente excluídas, violentadas, abandonadas e assassinadas. Resgatar fragmentos de nossa(s) memória(s) como latina-americana(s) se-me faz urgente ao me deparar com essa experiência em minha tela, sobre minha cama. Também me fez, e me faz, pensar sobre o sangue que não é apenas o do ciclo menstrual, o da menstruação, mas o sangue do feminicídio, da transfobia (e LGBTfobia no geral), do povo preto e das periferias.
Esse recorte é promovido pelo meu atrito, ou fruição artística, com tal obra – sendo eu uma corpa artista-pesquisadora-travesti. Construir esse corte fragmentário na experiência Gaia, elucida um foco de visão gênero-política na performance e traz luz (y trevas, é sempre bom trabalhar nossas sombras!) a performers que tem realizado importantes trabalhos em vídeo em meio a quarentena como a bicha preta Patfudyda e as travestis Irmãs Brasil. O que chamamos de Corpos Dissidentes atualmente são vivências oriundas de práticas marginais que sempre construíram rabiscos artísticos em meio a arte da elite euro-branca-cis-centrada e que agora se veem destinadas a adaptar suas obras e criações às telas devido a atual pandemia que ocasionou essa imensa quarentena. Pensar não só no risco performático, mas em criar rabiscos político-estéticos são elucubrações da minha cabeça-corpo a partir não só de Gaia, mas das outras artistas que citei anteriormente.
Essa plataforma, não só as das bichas-travestis/corpas-performáticas evocadas ao longo do texto, mas a plataforma vídeo vem sustentando diversos tipos de produções artísticas que, antes da pandemia (e do isolamento social) podiam ser cunhadas como teatro/dança/performance. Distancio-me aqui do caráter de julgar o que é e o que não é teatro, pois acredito que socialmente não estamos em um lugar de nos apegarmos a isso, independente da falta de possibilidades do contato físico, pois acredito que as plataformas e possibilidades de criação nos dias atuais são múltiplas. Multiplica-se então a variedade de interfaces nas telas, potencializando o que já vivemos em meio a nossa sociedade atual; o acúmulo de informações e multiplicidade de interação social a partir de máquinas. Por tanto, pensar sobre o fim do teatro ou o que é e não é performance na nossa atualidade é um trabalho fadado ao fracasso e que não me interessa particularmente (apesar de compreender que qualquer tipo de pensamento advindo de origens “Cuir”, no caso a minha, está aliado ao Fracasso, e me orgulha e interessa pensar sobre isso – tema que fica para outro texto!). Mas pensar na possibilidade de, em meio ao caos na nossa sociabilidade atual com o grave problema de saúde (a nível mundial, mas aqui no Brasil agravado sobretudo pelos variados péssimos representantes que temos na política e presidência), obtermos encontros e provocações artísticas impulsionadas por artistas da cena é um orgulho e um privilégio.
Pensar, e fazer, arte-vida ocupando um corpo que representa algo ligado ao feminino em nossa sociedade está intrinsecamente relacionado a diversos tipos de apagamento e violência. As próteses identitárias que podemos agregar aqui, não só ao meu corpo, mas aos das performers propositoras da obra que desponta essa multiplicidade de atravessamentos em meu texto, assim como as outras trazidas a partir dessa, são marcas que precisam ser evidenciadas; latinas, pretas, trans, bichas, mulheres (e milhares). São nomenclaturas que servem como escárnio e apagamento, mas que, com a força da construção e destruição artística, evoca o que existe de mais potente e visceral nessas existências, para além da tela, da arte, na vida.
A performance Gaia, que desponta essa linha de pensamento que passeia por esse texto que você lê foi realizada através do Pandêmica Coletivo Temporário de Criação, impulsionado por Juracy de Oliveira. Um aglomerado de artistas, de todo o Brasil, que realizam (em grande parte pela plataforma Zoom) experiências performáticas, teatrais e até o Festival Orgulhe, uma reunião de artistas LGBTQIA+ de todo o país (no qual tive honra de ser apresentadora em 3 edições) e o festival Às Escuras, impulsionando trabalho de artistas pretes. Interessa-me pontuar tais nomes de grupos e coletivos pois realizar arte no Rio de Janeiro, atual ou não, requer esforço, apoio e tantas outras coisas para além do talento, pois se mover artisticamente em terras coordenadas por milícias pentencostais exige força e foco vitais, além de redes e parcerias.
O cântico do Artivista Indígena Makuxi Jaider Esbell ouvido em-pelos nossos fones de ouvidos e entranhando pela pele, em conjunto com o fogo visto na tela, são as partes finais do trabalho trazido como mote desse texto-crítico-dialético (crítico no sentido de dividir em partes para trabalhar-pensar para além de-com, como no verbo grego “krinein”). Penso que encerrar assim a performance pode ser uma forma de queimar antigas estruturas para promovermos uma vivência para além do poder da palavra que pode aprisionar: Homem-Mulher, Teatro-Performance, (gênero) Plataforma (prótese).
Ao fim, as artistas Nina e Ibraim leem a ficha técnica ao vivo conversando com o público que interage-escreve no YouTube, todos em suas casas e isolamentos, mas compartilhando dos mesmos sons-imagens que me fizeram chegar nesse texto e que talvez as tenha promovido outras tantas viagens (menos ou mais viadagens) que a minha – tomara! – assim como gostaria que esse texto fosse uma extensão desse ex-tesão que tive no momento que absorvi essa arquitetura estética não estática chamada Gaia. Criem suas próprias vadiagens, digo; próprias viagens!
Talvez também essa simbiose de interfaces artísticas chamada Gaia seja um chamado pra que miremos menos no norte dos continentes e voltemos nossa visão para o que ocorre em nossa terra e do(s) nosso(s) lado(s). Apesar das telas, para além e fora delas, nosso país está em chamas; a vivência ativa com CÚidado nos chama. Que não terminemos nosso país como nas labaredas finais de Gaia, mas sim com a possibilidade de viajar, apropriar e reconhecer nossa própria história, nossos mitos, nossas bichas e monstras e nossa ancestralidade – compartilhar, traficando conhecimento, independente da forma ou das artísticas interfaces.
Axé!
Para saber mais sobre esse e outros projetos do Pandêmica Coletivo Temporário de Criação, acesse: https://www.pandemicacoletivo.com/experiencias
Sobre Gaia: https://www.pandemicacoletivo.com/gaia
Maria Lucas é artista transdisciplinar carioca e Mestra em Teoria e Crítica das Artes da Cena pelo PPGAC (ECO-UFRJ).