Um Manifesto Transpofágico

 A cena-vida de Renata Carvalho (e de muitas outras)

15 de abril de 2024 Críticas

“Este corpo foi construído por mim. Eu me fiz. De certa forma, eu fiquei grávida de mim mesma, eu me pari…”
Renata Carvalho, Manifesto Transpofágico 

“A Convenção teatral dos três sinais para início do espetáculo se faz necessária neste protocolo de apresentação. Um corpo em pé no meio do palco está parado, sem se mexer, como um manequim. A luz contra o fundo revela gradativamente a silhueta. Este corpo está apenas de calcinha, com voz suave e calma, ao microfone”
Renata Carvalho, Manifesto Transpofágico

 

Assim começa não só o espetáculo sobre o qual escrevemos e que está circulando por palcos de todo o mundo, mas que assisti em temporada no Teatro Firjan SESI no Centro do Rio de Janeiro, como também o texto que pode ser adquirido em formato de livro no saguão de entrada do teatro, após a apresentação. O livro, publicado em quatro línguas pela Editora Monstra[1], conta com instigante texto introdutório de Jaqueline Gomes de Jesus. [2]

Danilo Carvalho / Trema Festival.
Danilo Carvalho / Trema Festival.

TRAVESTI, em letras garrafais.

 “Eu sou uma travesti, se esta informação te traz desestabilidade, desconforto ou perigo e você quiser se retirar do teatro de forma segura, com calma, este é o momento.”

(Renata Carvalho em Manifesto Transpofágico, pg 10)

Um nome que pisca diversas vezes preenchendo o palco, junto do corpo. Um nome que nomeia ela: TRAVESTI. Ela fala sobre poder se apresentar com todas as convenções sociais (nome, idade, localização…) mas que isso não importa pois o que chega primeiro é sempre o seu corpo travesti. Talvez seja por ser sempre chamada pelo nome que se autonomeia, mas não com timidez e só com calma, e sim com vigor e potência de descrever a si mesma com esse nome que chega antes de tudo (e de todas nós).  O trabalho cênico de larga pesquisa da atriz encontra nuances quando fala de grito, mas perdendo a voz, de forma suave.

“Meu corpo (TRAVESTI) veio antes de mim, (pausa) sem eu pedir. Ele é mais velho do que eu (TRAVESTI)”.

(Renata Carvalho em Manifesto Transpofágico, pg 10)

Talvez por ter consciência das que vieram antes – como Indianare Siqueira[3], que estava na plateia nesta noite e que foi abraçada por Renata e saudada como uma TRAVIARCA – e por pesquisar a existência trans-travesti ao longo dos tempos, que Renata não só realiza o projeto deste espetáculo como se autodenomina transpóloga. Daí vem seu manifesto como transpofágico. É um manifesto de si, que busca entender-se como coletivo, como sendo pertencente ao grupo que experiencia a existência travesti. Como estudiosa – e vivenciadora – do tema, Renata mantém a sua “travesteca”, onde adquiri livros escritos por diversas autoras trans deste país, como essa escritora que a assistiu e que escreve esse texto crítico-ensaístico que agora você lê.

No primeiro momento do espetáculo, percorremos literalmente pelo corpo de Renata, assim como por uma possível historicidade da vivência travesti, ainda de forma distante: a atriz-performer-pesquisadora no palco, em uma cena construída de forma visceral e bela de se ver, e nós, o público, sentados observando e assistindo de forma distante (mas nunca fria e passiva, pois a cena nos instiga e muito!).  Em um segundo momento as luzes gerais do teatro se acendem e a atuadora desce e sobe ao palco, mantendo um jogo de interação diretamente com o público. Jogo este de difícil manutenção para qualquer atriz que se coloque a jogá-lo, mas que Renata executa de maneira elegante, inteligente e utilizando de todas as suas potentes ferramentas como travesti, atriz e transpóloga. Esse jogo direto com o público se dá de forma pedagógica e educativa diretamente para pessoas cisgêneras, trazendo questões, apontamentos e perguntas, variados dispositivos que as instiga a questionarem sua própria cisgeneridade e que se constitui como um jogo educativo sobre como respeitar a população transgênera. Seria, talvez, um espetáculo excelente para pessoas cis assistirem e se educarem quanto às vivências trans, seria uma aula-espetáculo, uma performance educativa, mas na verdade é um manifesto desta transpóloga que busca educar com vigor, inteligência e humor.

Mas é sobre a primeira parte deste espetáculo que continuaremos a falar ao longo deste texto, pois nenhuma escrita minha, uma pessoa trans, daria conta da subjetividade de uma pessoa cis ao se deparar com a aula que Renata dá a cada noite de apresentação do espetáculo, com cada público específico de cada noite, com muitas questões. É PRECISO ASSISTIR E EXPERIENCIAR.

Foto: Rai do Valle.
Foto: Rai do Valle.

 

“Para falar da trancestralidade deste corpo, eu preciso passar pela minha história, ou pelas minhas histórias, ou nossas histórias. A maioria é igual, as histórias mudam às vezes, quase sempre, só o lugar, o tempo, a idade talvez, mas somos feitas de uma dramaturgia de histórias repetitivas, ou talvez os dramaturgos sejam preguiçosos ou satíricos demais..”

(Renata Carvalho em Manifesto Transpofágico, pgs 11)

É talvez sobre este ponto trazido em texto à cena que me interessa re-pensar, refletir, como artista pesquisadora mas também enquanto travesti. É muito importante nos vermos no palco, na história, na pesquisa. É muito potente ver como as outras pessoas cis na plateia nos enxergam, ouvem, observam, a partir do momento que veem, enxergam e ouvem a Renata. Sinto que é como se em um momento eu pudesse observar quem eu sou e quem é que me observa, me senti em um espaço do “entre”. Como artista propositora residente no Rio de Janeiro e atuante na cena local, percebo diversos clichês da cisgeneridade ao se deparar com o acontecimento cênico trazido ao palco: desde preconceitos explícitos de pessoas do público com falas transfóbicas endereçadas diretamente a Renata na segunda parte do espetáculo, como o erro do pronome, por exemplo, até pessoas que já foram extremamente transfóbicas comigo, e/ou com outras, que se emocionam e entram em catarse ao assistir ao espetáculo.

Um amigo cis que assistia ao meu lado não conseguiu segurar o olhar ao ser projetada a cena de uma bombadeira bombando uma travesti e eu assistia a cena já pela milésima vez e com o estomago que uma travesti precisa ter para viver nesse mundo (não o do teatro somente, mas o da vida real). Acredito na força política do teatro, mas também sou um pouco desacreditada da quebra da transfobia que nos persegue e mata: uma das pessoas que já tinha sido transfóbica comigo e que assistiu e se comoveu com o espetáculo, tornou a ser transfóbica comigo em outro fatídico, e infeliz, encontro. Talvez essa pessoa precise assistir diversas vezes ao espetáculo, talvez sua catarse tenha sido apenas de se comover e se compadecer com sua própria mediocridade cisgênera, ou talvez precisemos de outras peças, outras Renatas, outros manifestos. A mudança é estrutural, imensa e precisa de manutenção.

Na plateia, nesta mesma noite, tivemos também a presença de Vitoria Jovem Xtravaganza e Vini Ventania Xtravaganza, as Irmãs Brasil. Ambas recentemente indicadas ao prêmio de Melhor Atriz no 33º Prêmio Shell de Teatro pelo espetáculo Sem Palavras (companhia brasileira de teatro). A premiação também indicou Assucena, nesta mesma categoria, por Mata Teu Pai – Ópera Balada e consagrou Verônica Valenttino, protagonista de Brenda Lee e o Palácio das Princesas, como primeira atriz transgênera a ganhar o Prêmio Shell de Melhor Atriz em todas as edições. Se faz importante falar, além do trabalho cênico de Renata, mas também da formação de plateia e de ocupação de atrizes trans no mercado teatral brasileiro. Todas essas ocupações se fazem, a meu ver, como um momento político em que vivemos e que não podemos retroceder. Renata, que mantém uma larga carreira com pesquisa e manutenção teatral, vem há bastante tempo lutando contra o fim do transfake, que é o ato de pessoas cisgêneras fazerem personagens trans, não só usurpando nossas formas de viver, como também sendo usurpadoras das nossas presenças nesses lugares de construção e ascensão de vida através da arte.

O que Renata faz em vida, e também e muito no palco, é não só ser uma travesti abrindo caminhos para que possamos viver e ocupar esses lugares, mas ela disseca com sua navalha cortando e rompendo, de forma literalmente cirúrgica, um espaço que nos é negado por séculos e, estando nele, ela grita:

Sou, sejamos, somos TRAVESTI! 

Foto: Nereu Jr | MITsp.
Foto: Nereu Jr | MITsp.

Para fabular para e além da construção cênica, Renata busca construir teias que vão também para fora dos palcos, como quando propõe que o after do espetáculo seja sempre no Kuzinha Nem, um local que é espaço de convivência e restaurante da CasaNem, que fica a alguns quarteirões do teatro, no centro do Rio. Assim, almeja propor algo que seja não somente na cena, no teatro, mas na vida: respeito, acolhimento e vivências com as existências trans. No palco, nesta primeira parte do espetáculo, vemos os percursos que praticamente todas as travestis enfrentam, desde o nascimento e a imposição de gênero devido ao corpo em que nascem, à expulsão do seio familiar de sangue, as modificações corporais, a sexualização do corpo aos olhos dos outros, a prostituição compulsória e muitas outras questões pertinentes especificamente para as mulheridades travestis.

Tudo isso ancorado por fatos e figuras históricas que trazem uma historicidade do corpo travesti ao longo das décadas no Brasil. Renata não é uma artista ingênua: ela escreve de si escrevendo também de e a partir de outras. Citando uma parte do texto de Jaqueline Gomes de Jesus que acompanha o livro da peça: “É escrevivência – como escreveu Conceição Evaristo[4] – incorporada em ato cênico, na cena. É partido como “travaturgia”, no dizer da dramaturga Ave Terrena[5].” Renata se reescreve em cena e assim promove um rabisco, um risco cênico, que conecta todas nós que somos rabiscadas sob o véu da travestilidade e risca também quem não o é: promove encontro, arte e educação.

Somos muitas, sejamos.

Sejamos e nos manifestemos!

Evoé!

Notas: 

[1] Editora Monstra é um projeto editorial da Casa 1, que tem como propósito documentar e divulgar pensamento produzido por pessoas LGBTQIAP+. A Casa 1 é um espaço de acolhida para jovens LGBTQIAP+ que foram expulsos de casa por suas orientações afetivo-sexuais e identidades de gênero, e também uma Clínica Social e um Centro Cultural aberto e gratuito pra toda a população de São Paulo. Para mais informaçoes: casaum.org

[2] Jaqueline Gomes de Jesus é professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). Doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela UNB. Pesquisadora e escritora, possui uma série de livros e publicações.

[3] Indianarae Siqueira é uma ativista transgênera brasileira, fundadora e coordenadora da CasaNem (casa de acolhimento para pessoas LGBTQIAP+ em situação de vulnerabilidade social, no Rio de Janeiro).

[4] Conceição Evaristo é uma linguista e escritora afro-brasileira que cunhou o termo “Escrevivência”, que une as palavras Escrever e Vivência, o utilizando assim para escrever a partir de sua própria existência como mulher e preta.

[5] Ave Terrena é poeta, escritora, dramaturga, performer e diretora teatral. Para conhecer melhor seu trabalho: portaldedramaturgia.com

Maria Lucas é uma artista da cena e pesquisadora carioca, doutoranda em Artes pelo PPGARTES – UERJ.

Vol. XV nº 74, outubro de 2023 a outubro de 2024.

Foto em destaque: Rai do Valle.

 

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores