Uma carta para Mão
Rio de Janeiro, 2 de julho de 2019.
Para as mãos de Mão.
Essas são as minhas mãos. Eu quis compartilhá-las com vocês assim que o espetáculo terminou. Através das minhas mãos, que exibem calos somente de escrita, de tanto pressionar a caneta contra os dedos, que quero começar. O começo da mão é uma espécie de fim do corpo. Nos dedinhos, onde a mão começa, é também onde se delimita uma fronteira. Depois da mão, tudo é construção. Assim como depois dos pés e outras terminações. Tem fim a mão? Ou o que ela toca transforma-se numa espécie de prolongamento, prótese de continuidade? Com certeza tem gente que pensa que a mão começa no pulso. Aceito. Mas prefiro que a mão comece nos dedinhos, que ela venha de fora para dentro, que ela comece no ar, perto das unhas.
Se depois da mão tudo é construção, fiquei pensando no que estamos construindo juntos; nos acordos que fazemos. Os tratos silenciosos costumam ser os que mais me pegam. A coisa que se constrói no olhar ou pelo canto da boca não precisa da palavra. Ou a coisa que se constrói com as mãos, no encontro das minhas mãos com as suas, na dança de encontros entre tantas mãos que vocês agitam.
A ausência da estrutura detona a sua necessidade. A folha em “branco” não é uma superfície vazia. Assim como o chão da rua, o chão do MAR[1], o chão por onde passa a Mão de vocês. O branco da folha está longe de ser limpo, imparcial. Quando as peças entram e o quebra-cabeça começa, é triste-lindo ver que o chão já não existe mais como possibilidade. Tirem os sapatos, por favor não pisem na grama, mas pisem na estrutura. O chão como estrutura. Pois só é possível subir (VOAR) se criarmos um outro chão que não esse que pisamos todos os dias, que não esse que se diz público – e mente. Mente sempre.
Os pés em contato com as partes, confiar nas peças me parece algo fundamental. Aliás, a confiança é elemento fundante do que vocês agitam, não? Não me ocorre construir sem confiança, subir sem olhar, levantar sem perceber, cair sem segurar. Uma ação que pede outra ação. Fazimento. Fazeção. E aí tem Camila caindo, gente. Caindo mesmo que segurada, mesmo que amparada, mesmo que cuidada. Como é potente cair aos poucos, desacelerar a queda para poder se perceber, justamente, caindo. Eu queria ser Camila. Só um por um instante – nesse instante. Eu queria um dia me sentir assim: abraçado em minhas quedas, amparado em minhas falhas, cuidado em meus desvios. Na verdade, domingo eu fui Camila, através-camila-caindo. As mãos de vocês tocando meu corpo, que coisa boa não ter medo de suor e cansaço.
A coisa toda vai se construindo e eu passeio por funções: a estrutura expõe outras estruturas, ela revela tipos de organização, controle e contrato. Um certo grupo de amigos, uns estranhos, uns anônimos, uma família, umas cores em relação, alguma grupalidade engajada na tarefa de levantar para voar. Tem a pessoa que aperta as bordas, outra que testa sua firmeza, as que se jogam para sentir o movimento, tem muita gente ali. A maletinha de ferramentas é um caso a parte. Não vou comentar. Não tenho maturidade para a delicadeza dessa presença. Mas eu a vi. E ela também me viu.
Nesse fluxo de testagens da estrutura tem também Adelly girando.
De novo.
Adelly girando.
Adelly girando.
Adelly girando
Adelly girando.
Adelly girando.
Eu poderia ficar por ali, pessoal. Com isso não quero sugerir nenhuma espécie de fim ou interrupção. Ao contrário disso, para mim, no giro a obra suspende. E, dentro dessa suspensão, eu subo de andar, continuo já um pouco mais alto, quase que vendo de cima, quase que tonto. A moça que estava ao meu lado disse para o seu companheiro: “eu tenho medo que ela caia”. Eu queria dizer para ela que se qualquer um de vocês caísse não haveria problema. Haveria queda. O problema está em não cair, em não se colocar disposto para a queda. Eu não disse nada. O medo pode ser um bom companheiro (e ela, a moça, abraçou o seu(s)).
Nunca construí nada tão grande e essa frase não é uma metáfora. A estrutura projetada por Doca[2] é imensa, uma espada que corta o ar. Eu gosto muito quando a rampa-escorrega entra, quando a estrutura se expande, quando ela nega a verticalidade, nega sua pretensão fálica para ir para os lados, para ser horizontal, para ganhar gosto de piscina. Os meninos buscando o equilíbrio, tentando ser corpo junto e negociando pesos. Nós estávamos no MAR e eu só pensava em água: os meninos na piscina, como é difícil boiar. E, ao mesmo tempo, como é bom poder segurar qualquer um no colo dentro d’água. Eu gostava muito de segurar a minha vó na água, me sentia retribuindo colo, dando uma mão. Eu gosto muito de trocar pesos.
Carol é o brincante que eu queria ser em cena. O brincante que persigo quando estou em sala de aula com alunas e alunos. O brincante que busco quando, em performance, tenho a oportunidade de olhar com calma os espectadores de um trabalho. Carol construindo e sorrindo e toda a arquitetura de rainha Doca, de repente, são caixas e caixas de lego espalhadas pela sala da nossa casa. Porque sim, depois de um tempo, é tudo nosso nesse novo chão que se cria e se movimenta.
A expansão da estrutura é a própria descoreografia do espaço. A estrutura, provisoriamente fixa, não se esgota porque não há o que cumprir. Uma imagem disso é a dança das pedras que caem muito pouco comprometidas em contar uma história, em acertar o passo ou ritmo. Teve até o saquinho que se furou antes, que não aguentou esperar o momento – como a criança que se destaca no balé, antecipa o movimento e trai o tempo. É a obra se fazendo dentro dela mesma, né? Mas logo o coletivo chega e aí o chão é todo pedra e fica impossível distinguir quem foi que caiu primeiro. Caíram todas. Caímos todas – repetidas vezes.
Eu nunca tinha visto Mão e, agora, desde domingo, não paro de olhar para as minhas.
A criação de vocês revela algo muito importante sobre a relação entre corpo e trabalho. Miro me ajudou a perceber isso. Para quem não conhece, Miro é um amigo performer muito especial. Costumamos chamar criações de trabalho, mas vocês vão além nesse entendimento. O corpo do trabalho, o trabalho do corpo, o trabalho que é próprio do corpo, trabalhando. Uma velha imagem de operários da cena me rouba o pensamento. Nós sempre construímos a cena, mas pouca vezes a recepção é testemunha dessa construção. E, aqui, não quero fazer referência a certas tendências do que chamamos de “cena contemporânea” quando as estratégias e modos de fazer são revelados para a audiência. Digo que Mão não seria possível sem o processo, sem o erguer da estrutura em cena. Nesse sentido, é a própria cena que se constrói, que se expõe em sua escritura e não na escritura cênica. Não tem truque, não tem “sem tempo, irmão”. Ao invés disso, a mão da obra parece dizer: dura tempo, irmão – construir demora.
E aí eu queria que vocês apresentassem essa peça em Brasília, de frente para aquela gente que insiste em construir muros que só separam. Eu queria ver a Mão, o Mão, numa reunião que trata dos editais de fomento e das leis da cultura. A peça de vocês ensinaria a essas pessoas um pouco sobre tudo isso: um pouco sobre corpo, sobre trabalho, sobre tempo de trabalho e duração. O corpo das coisas demora, é preciso que as coisas possam. Nesses dias eu falaria pro Renato: “amigo, pede a guitarra muito alto, pra ver se essa gente ainda se atinge pelo som das coisas demorando no espaço”.
Vocês, performers, cores também se construindo. Um dia eu quero ter a segurança do camisa vermelha, olhar as/os outras cores e dizer: vem todo mundo, pode subir, do chão não passa! Mas aí vem o Chico, um outro grande amigo que é poeta e me diz:
“você me segue esperando o
momento do tropeço mas
do chão eu sei
do chão eu passo”[3]
e então passamos pelo chão porque sabemos dele. Já estivemos nas sarjetas, nas paranoias delirantes, nas esquinas sem dinheiro e bebendo com a ajuda das amizades. Somos sempre corpo em co-criação. Para construir a frase anterior eu peço licença, finjo que faço parte desse coletivo, invento verdades provisórias porque me sinto, como criador, ajuntado nesse tipo de chão. Eu ia agradecer a vocês só final. Ainda não cheguei ao fim mas já sinto vontade de dizer: obrigado.
Do lado de fora da porta transparente do MAR (é tão estranho pensar o mar com porta), essas roletas que se querem invisíveis, Doca me disse que, um dia, existiu o desejo de que a estrutura rolasse pelo espaço. Nem todos os desejos são possíveis, mas os acasos, quase sempre, bastante surpreendentes. A estrutura rolar não rola. Mas, pensando bem, ela tomba. E, se esse pensamento for de hoje, para hoje, no sentido daquilo que se pensa hoje, mas sem esquecer dos ontem(s) e de tudo que ainda vem, cantamos: “já que é pra tombar, tombei”.
Eu queria poder ter ficado mais, falado com cada um de vocês, mas eu precisava me despedir. Queria ter conhecido os meninos, saber, pessoalmente, seus nomes e vozes. As meninas eu já conheço, de outras coisas, outros tombamentos. Mas conhecer não é nada perto do que já trocamos. Alguns de vocês também não me conhecem e eu estou aqui, agora, fazendo muitas coisas com as minhas mãos: digitando, fumando um cigarro, espantando o calor.
Eu estou aqui, trabalhando com as minhas mãos que jamais serão as mesmas. Por essa espécie de reformulação do meu corpo, por essa modificação voluntária e consciente, agradeço.
Muito obrigado,
com carinho,
Caio Riscado.
* O espetáculo Mão – translação da casa pela paisagem – estreou em 2016, na cidade do Rio de Janeiro, com apoio do Programa de Fomento às Artes da Prefeitura do Rio. Desde então, segue em circulação e passou por diversas localidades dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Mão é uma realização do Coletivo Mão, com direção de Renato Linhares e Adelly Constantini, Camila Moura, Carolina Cony, Daniel Elias, Daniel Poittevin e Fábio Freitas no elenco. A cenografia é assinada pelo Estúdio Chão, Antonio Pedro Coutinho e Adriano Carneiro de Mendonça, e a trilha sonora foi criada por Ricardo Dias Gomes, que toca ao vivo durante as apresentações.
** Não existem registros fotográficos das apresentações do espetáculo realizadas no MAR. Por esse motivo, o texto foi ilustrado com imagens de outros espaços.
Notas:
[1] MAR – Museu de Arte do Rio.
[2] Antonio Pedro Coutinho (Doca) e Adriano Carneiro de Mendonça, ambos do Estúdio Chão, assinam a cenografia do espetáculo.
[3] MALLMANN, Francisco. haverá festa com o que restar. Bragança Paulista, SP: editora urutau, 2018.
Caio Riscado é artista pesquisador, diretor teatral e performer. Atualmente, é professor substituto do curso de Direção Teatral da Escola de Comunicação da UFRJ.