A multiplicidade das sensações

Crítica do espetáculo Por que você é pobre?, do coletivo Heróis do Cotidiano

23 de junho de 2012 Críticas
Foto: Divulgação.

O Centro Cultural Municipal Oduvaldo Vianna Filho, o Castelinho, abrigou, durante o mês de maio, o espetáculo Por que você é pobre?. A montagem, concebida e dirigida por Tania Alice, teve sua dramaturgia processada em colaboração por integrantes do coletivo de performance Heróis do Cotidiano, formado pelos atores André Marinho, Daniele Carvalho, Larissa Siqueira, Luciano Maia, Mariana Simoni, Renata Sampaio, Rodrigo Abreu e Tania Alice. Agregaram-se a eles uma equipe técnica formada por profissionais da fotografia, do vídeo e das artes plásticas. O interesse pela temática surgiu de uma necessidade desse grupo de ir às ruas e de ouvir da sociedade o que caracterizaria, para cada um, o conceito de pobreza em suas diferentes nuances e significações simbólicas. O material resultante desse contato foi transformado em expressão estética, que joga com diversas possibilidades de recepção ao fragmentar a estrutura narrativa em eixos temporais e espaciais que estilhaçam, por completo, a possibilidade do espectador de assistir e contemplar um resultado único, coeso e totalizante.

Para que possamos entender do que se trata essa operação radical de múltiplas situações cênicas a que estamos nos referindo e como ela foi engendrada em sua materialidade, é preciso esclarecer que o espetáculo é feio de deslocamentos, de itinerâncias, interferências sonoras, segregação social, pertencimentos, estágios festivos e verdades irônicas. Seu ponto de partida tem início no hall de entrada do centro cultural, em que o público, limitado a quarenta espectadores, está prestes a escolher em qual das classes sociais ele deseja se inserir até o fim da peça. Nesse instante, as regras do jogo são explicitadas de forma clara. Iniciada a contagem das senhas, cada participante deverá optar pelo grupo socioeconômico com que mais se identifica subjetivamente, optando por escolher se deseja ser pobre, médio ou rico. A partir dessa segregação espontânea, são formados séquitos que se espalham por salões, varandas, quartos e demais dependências físicas do tradicional edifício histórico, situado no bairro do Flamengo.

O público participante não apenas detém a possibilidade de apreciar os detalhes arquitetônicos do interior do imóvel, como também é levado a deduzir que essa atmosfera clássica que emana do espaço é um dado que incide, diretamente, no modo de estruturação das cenas. O resultado dessa organização ficcional contribui para o estabelecimento de uma poética de estímulos irônicos, provocados por elementos formais característicos de comportamentos e produções de enunciados exteriorizados em seus estereótipos. O jogo velado de hierarquizações também paira sobre a escolha, da direção da montagem, de delimitar o percurso e as áreas de circulação do castelinho em faixas territoriais bem restritas e segregadoras para pobres, médios e ricos.

Os vários deslocamentos que ocorrem durante o espetáculo constituem momentos de interação entre todos os envolvidos no ato de produzir, receber e vivenciar o fenômeno estético. A dinâmica do acontecimento cênico prevê, para cada instância social, uma série de atrações supostamente adequadas ao perfil cultural de determinado grupo. É como se houvesse alguém ou alguma ordem estrutural que assentasse, com bastante rigor, que espécie de linguagem poética deveria ser vetorizada para determinada comunidade de classes, com juízos de gosto previamente estabelecidos em suas necessidades e limitações. Dessa maneira, a experiência de fruição entre espectador e obra estaria fundada em pressupostos rigorosos de identificação e reconhecimento, sem permitir que nenhum tipo de desordem intelectual atrapalhe a compreensão e o entendimento de sua leitura. Cada qual contempla a arte que lhe é determinada. Há opções estéticas para populares, herméticos e eruditos. Para cada coletivo, em especial no grupo dos ricos, do qual fiz parte, a atmosfera que emanava das situações cênicas pressupunha uma arte pura, isolada e pronta para satisfazer, em sua imediaticidade gratuita, um “exigente” público consumidor. Uma arte conforme a fins.

Percebe-se, nesse sentido, que a pobreza não é tematizada de forma direta, mas boa parte de seus sintomas se faz presente em evidenciações de posturas arrogantes, determinadas por sujeitos (sejam eles individuais ou coletivos) que não ousam tentar, arriscar, propor meios e caminhos que indiquem novas soluções e resoluções de impasses. É interessante ressaltar que a produção da montagem não recorreu a editais governamentais de fomento à cultura, mas se estruturou a partir de parcerias e trocas de competências entre os envolvidos, no processo da pesquisa, para questionar, em linguagem expressiva, até que ponto o engajamento numa causa é possível e como ele se oferece como alternativa às já tradicionais normas e padrões prefixados em leis burocráticas.

Em outro instante de peregrinação junto à “classe abastada”, foi apresentado ao público um vídeo em que figuras humanas ficcionais, supostamente bem sucedidas e de posição social elevada, divulgavam suas participações em campanhas de caridade de alcance mundial, em prol da erradicação da pobreza, da miséria e da injustiça social. O deboche na produção dos discursos misturava-se a uma expressividade patética quando pseudo-intelectuais, protegidos em seus cargos elevados e vestimenta impoluta, se reuniam para reproduzir frases de efeito já desgastadas e repetidas, anualmente, em apelos feitos à população nas mídias eletrônicas, produzindo uma massa de posturas, condutas, visões de mundo e crenças viciadas que repetem jargões, plenos de boas intenções, mas de pouca ou quase nenhuma ação política concreta.

A pletora de pontos de vista e de expectativas que o espetáculo deixa entrever aguça as intenções e vontades do participante de querer dar conta de todos os blocos de interação ao mesmo tempo. A imaginação do espectador é provocada, na medida em que as múltiplas interferências de sonoridades, constituídas por vozes, risadas, músicas, cantorias e gritarias de intensidades diversas, contribuem para instigar ainda mais a curiosidade que alimenta e serve de combustível para o público apreciar, e até comparar, o que se vê com aquilo que se ouve. A cada parada obrigatória, era interessante captar do outro esboços de impressões e resquícios de sensações, materializados ora por uma fala não elaborada ora por uma simples troca de olhares. Em diversas ocasiões, muitos dos participantes do grupo dos ricos, que me fizeram companhia, esboçavam, no calor com que se envolviam nas cenas, um certo desejo de querer estar no lugar do outro, de achar que o outro grupo socioeconômico era mais animado que aquele em que estava inserido.

Havia um certo estado de apreensão, criado pelo espectador, a cada troca de lugar, a cada deslocamento que se empreendia, a cada mudança de tom e de discurso promovido pelas circunstâncias impostas na cena. O conjunto de espectadores não sabia o que poderia acontecer, para onde estaria indo, para qual direção estava sendo levado. Toda esta intensidade de emoções ocorria durante o deslocamento dos cortejos, sem que o hiato, produzido entre uma atração e outra, os desviassem de suas atenções.

O contato sensível entre indivíduos e o questionamento de certas práticas políticas, estéticas e filosóficas, que consumimos e reafirmamos constantemente, são celebrados em Por que você é pobre?, espetáculo que produz vivências a partir da alteridade com que os relatos dos espectadores se encontram, no fim da peça, para confrontar sensações, afirmar pontos de vista e criar outras possibilidades de narrativa.

Pedro Allonso é ator e bacharel em Teoria do Teatro pela UNIRIO.

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