Ser ou não ser teatro

13 de setembro de 2021 Processos

Desde que eu comecei a criar obras teatrais, no final dos anos 80, eu sempre ouvia e repetia que teatro é a arte da presença, do encontro efêmero de pessoas em um mesmo espaço de convivência. O grande diferencial dessa arte milenar estaria no encontro olho-no-olho entre artistas e público. Corta para 2020-21 e corta os prédios de teatro, corta a possibilidade do encontro físico e corta-se mais de 600 mil vidas deixadas morrer, num país governado por um presidente proto-fascista, com planos de extermínio dos mais pobres e daqueles que o criticam.

E aí corta-se o teatro?

Uma outra coisa que sempre ouvi, desde o início da minha carreira no teatro e hoje, pouco antes de escrever este texto, em agosto de 2021, voltei a ouvir, foi a pergunta: “E dá pra viver de teatro?” Ou: “Como é trabalhar na sua área aqui?” ou ainda: “Mas você faz o quê para pagar as contas?”

Por respeito a você que está dedicando seu tempo para ler este texto, não irei reproduzir as respostas pouco republicanas que eu tenho para essas questões, mas, de alguma forma, sinto que elas se alinham aos questionamentos que surgiram quando a pandemia se instalou entre nós.

Como sempre, estávamos nós por nós quando a crise se instaurou. Sem política pública decente criada a tempo de nos ajudar (exceção feita ao SESC Nacional que prontamente criou um programa para contratar grupos e artistas para, de forma experimental, criarem e transmitirem de suas casas obras de teatro e música, no projeto “Em Casa com SESC”), tivemos que conjugar esse famigerado verbo “re-inventar”, que pra mim sempre soou como “fazer uma coisa malamanhada, pra dar conta da realidade”.

Quando finalmente, depois de quase um ano de pandemia, os recursos da Lei Aldir Blanc (conquista dos artistas e produtores junto a parlamentares de esquerda que conseguiram uma articulação inédita para aprovar o uso dos recursos do Fundo Nacional de Cultura, antes destinados só para a Lei Rouanet), vários artistas já haviam feito de tudo fora de suas áreas de formação para não passar fome, taí os trabalhos “uberescravizados” que não me deixam mentir. Então, esses artistas, e eu me incluo, além de dar conta da própria precária sobrevivência, tiveram/tivemos que criar uma nova linguagem. Elaboramos projetos para vencer editais e fazer o que sabemos fazer de um jeito que nunca havíamos feito.

Diferente de outras áreas como o agronegócio ou os bancos, para a área da Cultura, responsável por 4% do PIB brasileiro, segundo dados do Atlas Econômico da Cultura Brasileira (2017), o “auxílio emergencial” veio condicionado ao retorno social direto, à entrega de produtos culturais inéditos para a população brasileira. E, posso dizer sem medo de errar, nós entregamos.

Criamos as formas mais variadas de se chegar nos públicos: transmissão em tempo real; performances nas casas dos artistas; encontros entre artistas de vários lugares do Brasil e do mundo; jogos interativos onde a plateia escolhia o que queria ver e decidia o destino da história; interações via chat; sistemas criados exclusivos para as peças; etc… Olhando agora, é impressionante como, em um curto espaço de tempo, nós inventamos uma linguagem que rompe barreiras e, mesmo não substituindo a presença, leva parte da experiência teatral para dentro da casa das pessoas.

No entanto, não sei se a matéria que compõe essa linguagem é exatamente nova, porque todos os materiais que trabalhamos partiam de nossos princípios criadores do teatro que sempre fizemos. Desde criações dramatúrgicas a soluções de cenas experimentadas em ensaios, passando por horas e horas de repetição, nosso processo muito se assemelhou ao que fazemos no dia a dia em nossas salas coletivas de ensaio. Mas, fomos ousados, inclusive para padrões internacionais. Salvo engano, o Brasil fez mais teatro online do que a maioria dos países do mundo.

Mas e isso é teatro?

De novo aquela pergunta que merecia as minhas respostas pouco educadas. Não bastasse a pressão de criar uma nova forma de performar nossa arte e termos de acumular os papéis de ator, diretor de arte, diretor de fotografia, sonoplasta, etc., tínhamos que conceituar e defender a arte que criamos, mais uma vez. Não tenho a pretensão de responder, mas apenas de registrar aqui essa pequena historiografia de como os artistas de teatro no Brasil lidaram com a pandemia. Nós não tivemos tempo para formular o que seria ou não seria teatro. A fome é urgente e a nossa resposta sempre se deu no “fazer”.

“Na dúvida, se mexa.”

Esta máxima que ouvi de um diretor há muitos anos, quando eu tentava explicar que não conseguia criar um jogo teatral com meu parceiro de cena, parece ser bem a síntese da nossa coragem. Quando nos sentimos encurralados, sem os recursos mínimos para executar o nosso ofício, a gente foi lá e se mexeu. Não tivemos tempo para questionar a essência dessa arte milenar que se dá quando uma pessoa está de frente para outra e ali apresenta sua história, sua ideia, sua leitura do mundo. Não tivemos tempo porque estávamos fazendo exatamente esta arte, com o que tínhamos disponível e, olha, mesmo com toda limitação, percebi que alcançamos e tocamos muitas pessoas. Muitas delas, inclusive, que não frequentavam teatros antes da pandemia, outras que nunca consideravam o teatro como parte da vida delas. Hoje percebo que essas, de alguma forma, foram atravessadas pelo teatro e já estão ansiosas para o encontro presencial com os atores em cena.

Então, hoje, após um ano e 5 meses de trabalhos online, ensaiando de casa, escrevendo todos os dias e com a recente experiência de voltar a apresentar de forma presencial, com público reduzido, sentados com distanciamento e usando máscaras, acredito que o teatro vai seguir sendo a arte do encontro entre públicos e artistas e esse encontro cada vez mais se dará de forma híbrida, presencial e também online. Encontraremos com isso uma forma de nos fazermos mais presentes na vida das pessoas a poucos metros ou a muitos quilômetros de distância.

O teatro se fez e se faz presente.

Extrapolando o dilema atribuído a Hamlet no seu monólogo onipresente em todas as culturas ocidentais, parece que não devemos perder o sono nos questionando em ser ou não ser. Está cada vez mais evidente que não bastará escolher o lado para nos posicionarmos, mas sim desenvolver a habilidade para não nos rendermos às flechadas e pedradas de um destino (ou de um déspota) feroz e entendermos que não daremos fim ao mar de angústias, mas que devemos aprender a nadar (ou a surfar) e, como bons capoeiristas, a esquivar-nos dos arremessos da barbárie.

Henrique Fontes é dramaturgo, diretor, ator e gestor cultural, 46 anos, natural de Manaus/AM, radicado em Natal/RN, onde construiu sua carreira no Teatro desde 1989. Integrante do Grupo Carmin e sócio-fundador do espaço cultural Casa da Ribeira, Henrique tem 21 peças escritas, prêmios shell, aptr, botequim cultural, do humor e Questão de Crítica, todos no ano de 2019, pela peça A Invenção do Nordeste.

Vol. XIII nº 72, setembro a novembro de 2021

Foto em destaque da peça Jacy: Daniel Torres.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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