Jacy: nome, índice e narrativa

Crítica da peça Jacy, do Grupo Carmin, de Natal

25 de abril de 2016 Críticas

Vol. IX, nº 67 abril de 2016 :: Baixar edição completa em PDF 

Resumo: A crítica analisa o espetáculo Jacy do Grupo Carmin de Natal que esteve em cartaz no Espaço SESC-Copacabana de 25 de fevereiro a 20 de março desse ano, atentando para o modo como o espetáculo conduz a narrativa ficcional da obra se avizinhando de uma escrita historiográfica e ensaística. O objetivo da análise é a de compreender como o grupo constrói um espetáculo que coaduna reflexão sobre a História e construção poética.

Palavras-chave: Ficção, Historiografia, Autoria

Abstract: This review analyzes the play Jacy performed by Grupo Carmin de Natal, that ran on Espaço Sesc Copacabana from February 25 until March 20 of 2016, focusing on the way that the show conducts the fictional narrative and that parallels a historiographical and essayistic writing. The goal of this analysis is comprehend how this theater group builds a show that presents a reflection about History and poetic construction.

Keywords: Fiction, Historiography, Authorship

 

O espetáculo Jacy do Grupo Carmin de Natal constrói uma obra que reúne ao mesmo tempo arquivos documentais e pesquisa investigativa sobre uma mulher, Jacy (que nasceu em 1920 no município de Ceará Mirim, cidade que se avizinha a Natal), um inventário afetivo de uma montagem sobre a velhice que o grupo estava pesquisando antes de ser atravessado pelos fragmentos da história dessa mulher e reflexões filosóficas sobre o processo do tempo e da história no próprio espetáculo.

O espetáculo propõe uma linguagem em que o estatuto do personagem no teatro é instalado por meio de uma operação mais historiográfica do que “ficcional”, caso queiramos entender ficcional por meio de gêneros literários (drama, conto, romance, poesia). Em um sentido mais amplo e filosófico a obra defende a ideia de que se trata sobretudo de uma imbricação entre realidade e ficção e que esses termos se confundem, visto que não é possível haver realidade sem mediação e tampouco ficção que não tenha o lastro do real. Contudo, a poética do espetáculo constrói um processo documental e historiográfico, no qual a imaginação completa as lacunas do real e as fontes levantadas pela companhia sustentam a estrutura da peça.

A personagem principal da peça não é um ser com um caractere ficcional constituído dentro de uma narrativa com início, meio e fim. Jacy, personagem título da obra, é uma espécie de índice de uma investigação narrativa que alavanca uma reflexão que ultrapassa os limites do individual, provocando um movimento mais amplo de leitura sobre a cidade de Natal e do Brasil no período da segunda guerra e da ditadura militar até os dias de hoje.

No início da peça, os dois atores Quitéria Kelly e Henrique Fontes seguem uma sequência de falas entrecortadas que relatam duas camadas presentes no espetáculo: a do processo de feitura da obra e a da descoberta de uma maleta com restos de arquivos sobre Jacy – personagem que seria investigada pelo grupo. Enquanto o ator conta sobre a descoberta do arquivo da peça, a atriz comenta as incertezas processuais que o grupo lidou ao construir a obra.

Henrique:
Uma manhã de março de 2010. Eu saindo da casa dos meus pais no Bairro do Tirol, Natal, RN, Av. Prudente de Morais. Sol, trânsito e um amontoado de lixo esquisito. Parecia uma instalação: Um colchão de solteiro enrolado com o estrado da cama (como se tivesse sido esmagada por um rolo compressor), em cima dos restos de um armário de madeira e de um monte de papel que agora voavam. A imagem que se formava parecia… um anjo feito de papel, voando entre os carros e o colchão. Mas isso era só a composição pra dar destaque à peça principal, deixada no canto direito da obra: uma maleta, tipo frasqueira, muito usada nos anos 70 pelas mulheres de classe média alta. Um artigo de luxo que até hoje tem essa cara de riqueza. Ergui a frasqueira, testei as fechaduras e funcionavam. Pensei: Devem tá fazendo um filme…

Henrique: …“A frasqueira e o anjo de papel.” (Pausa)

Quitéria: A gente lia Sêneca, Simone de Beauvoir, Walter Benjamin.


Henrique: Não, nada disso. Era só lixo. Alguém tinha tirado de casa aquele pedaço de incômodo, aquela coisa velha e jogado no lixo.


Quitéria: Primeira ideia.

Henrique: Decidi levá-la comigo.


Quitéria: Ignorar a história da frasqueira e usá-la só como objeto de cena.


Henrique: Chego na nossa sala de ensaio e encontro Quitéria.


Quitéria: Segunda ideia:

(…)

(CAPISTRANO, Pablo; MACEDO, Iracema. Jacy. Texto cedido).

Nesse momento, o ator narra, com encantamento, sobre o encontro com o material que será apresentado pela peça e a atriz comenta acerca das ideias de construção de um novo espetáculo e o impacto do material descoberto para o tema da obra. É significativo que no texto de Pablo Capistrano e Iracema Macedo, filósofos e dramaturgos, o uso de uma escrita processual, que assume o contexto discursivo de criação, seja a base da dramaturgia. É possível perceber aí uma referência ao texto de Michel Foucault, A Ordem do Discurso, no qual o filósofo francês inicia seu argumento expondo o lugar de onde surge sua fala. Há ainda a consciência do risco dos discursos que ao se naturalizarem não dão a ver:

O quanto em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimento que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (Foucault, 1996, p. 8-9)

Ao assumir-se como discursividade, a obra se deixa atravessar pela materialidade da frasqueira encontrada e pelo fluxo de dúvidas acerca da construção do espetáculo. Mas diferente de obras contemporâneas em que o recurso de uma escrita processual se ampara numa escrita do Eu, em que os artistas (quase sempre) se confortam com o encontro narcísico de si mesmos, o Grupo Carmin segue na encenação de um pensamento que se ampara na materialidade de um outro, a frasqueira de Jacy. O encontro se dá, portanto, na abertura investigativa desse objeto e na possibilidade de especulação sobre uma mulher anônima.

Foto: Vlademir Alexandre.
Foto: Vlademir Alexandre.

O espetáculo do grupo Carmin vem causando uma impressão muito positiva em festivais em que se apresenta pelo país. E a apreciação crítica que aqui se constrói é devedora dos olhares atentos de Daniele Avila Small e Valmir Santos quando os críticos apontam uma potência imagética no espetáculo, na elaboração da cena e na construção de um pensamento reflexivo e crítico como formulador da dramaturgia.

A peça é sobre Jacy, mas também é sobre a velhice e sobre o teatro. E é sobre as imagens e a nossa capacidade de se deixar atravessar por elas a ponto de alterar as nossas rotas previamente programadas. O sentido da criação artística é o desvio e, em alguma medida, o da vida de Jacy também. O desvio aqui foi causado por uma interpelação do acaso, um chamado, como se a imagem tivesse dito “Henrique!” e ele entendeu que era com ele. (Daniele Avila Small In: http://www.cooperativadeteatro.com.br/10mostra/2015/11/02/nomeando-jacy/ acesso: 18/03/2016)

Essa imagem é sintetizada de forma brilhante nos cinco minutos finais, na cena em que os atuadores compõem um aparato surpreendente para uma montagem que fluía despojada. Mas é um dispositivo inteligente que se perceberá coerente, sobre o qual não convém revelar a quem ainda não assistiu à quarta peça do Grupo Carmin, estreada neste ano. É nesse instante que a solução inventiva condensa filosoficamente, Quitéria e Fontes recolhidos na coxia e deixando o engenho falar por si, o quanto viver, assim como fazer teatro, conotam o efêmero como num sopro. (Valmir Santos In: http://teatrojornal.com.br/2014/11/o-sublime-imponderavel-ou-um-achado/ acesso: 20/03/ 2016)

As ideias dos dois críticos são próximas, mas diversas. Tentarei, portanto, interpretá-las aqui. Ambas se relacionam com o fato de que a história se verifica (se prova) por meio da imaginação, uma vez que o real da história está cindido entre o passado e o presente. O presente é o tempo da experiência, enquanto o passado é resgatado/interpretado a partir de uma temporalidade que está inexoravelmente distante do fato sucedido. Assim sendo, a história fala de um real que, ao se localizar no passado, não pode ser descoberto a não ser pela tentativa de interpretação (“invenção” e “ficção”) das fontes.

Daniele Avila Small, em seu texto Nomeando Jacy, elabora a ideia de uma imagem performativa, pois diante da frasqueira da personagem, o ator e diretor Henrique Fontes deve responder a imagem de um chamado. Ouso dizer que se trata do chamado da própria história perante a materialidade dos objetos encontrados que devem ser interpretados em um duplo sentido: pelos atores em cena e por todos os criadores envolvidos como em uma operação historiográfica. O sentido de chamado se reporta então a ideia de juízo, e teologicamente de um “juízo final”, em relação direta com o chamamento do anjo da História, alegoria criada por Walter Benjamin, em suas teses sobre o conceito de história, citada na peça pela companhia potiguar. Nomear é, portanto, chamar, evocar. E é igualmente atender a um chamado desdobrando-se em um juízo estético diante da frasqueira de Jacy.

Nomear Jacy é percorrer o seu nome como índice de uma narrativa que se faz incompleta. É comentar o significado do nome próprio dessa personagem-índice na língua tupi (Jacy- significa lua em tupi), assim como fazem os atores na peça. No caso, falar dessa língua é falar ao mesmo tempo de nossa condição de povo colonizado. E em Jacy, isso será tematizado também pelos acontecimentos que se dão na vida dessa mulher que se apaixonou por um militar americano e viveu com ele uma história romântica que vai da ingenuidade ao endurecimento do amor. A citação/investigação do nome Jacy é, consequentemente, uma ampliação do mero nome próprio a ação de nomear, atendendo a um chamado de um ajuizamento, como bem salientou a crítica.

Já em seu texto O Sublime imponderável ou um achado, Valmir Santos alude diretamente a imagem cênica e dramatúrgica que o grupo constrói do Anjo da História de Walter Benjamin, transformado em um dispositivo cênico ao fim do espetáculo. Na fala do ator Henrique Fontes, o anjo já havia sido citado na imagem do lixo em que estava a frasqueira. E ao finalizar a peça, essa imagem volta como uma reflexão filosófica ampliada sobre a história.

Na tese de Benjamin, vê-se a seguinte descrição: “O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única que acumula ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés” (Benjamin, 2000, p. 226). Logo, Jacy e os acontecimentos privados de sua vida são tratados como ruína histórica que disserta sobre a cidade de Natal e sobre o Brasil. Ruínas que estão sendo ajuizadas pelo grupo no espetáculo.

Ao apontar “um achado” do grupo, Valmir Santos se refere, certamente, ao modo como o espetáculo transforma os índices históricos e as reflexões filosóficas em procedimentos cênicos. Pedro Fiuza, o videoartista do espetáculo, acompanha toda a peça a partir da projeção e manipulação de elementos, que, ao mesmo tempo que acompanham o espetáculo, fazem comentários extra ficcionais e atualizadores, como é o caso da imagem do Juiz Sérgio Moro sendo projetada na hora que o nome Judas é citado na peça.

A dramaturgia se sustenta num mecanismo de coesão mais próximo ao ensaio do que do drama. Nota-se uma investigação historiográfica e cênica agindo de modo simultâneo. E as lacunas do espetáculo são como frestas para que o pensamento do espectador caminhe através dessa investigação acerca de Jacy. Nomes de familiares e árvores genealógicas de poderosos cidadãos do Rio Grande do Norte são escritos e projetados, um contorno do corpo da atriz numa pesquisa sobre o envelhecimento é também desenhado na parede. Traça-se plasticamente nesse ensaio historiográfico-cênico um palimpsesto virtual sobre Jacy, no qual desenhos e riscos no palco e na parede são incorporados à reflexão do espetáculo.

De fato, quando se diz que Jacy é uma obra de ficção se está pensando na ampliação contemporânea dos gêneros que pode alcançar uma escrita filosófica ensaística, historiográfica, etnográfica, entre outros formatos. A ficção na contemporaneidade é aquilo que se apresenta pelo pacto como ficção. Pacto que é sobretudo público e social. O espaço ocupado na sociedade por uma peça de teatro é o de obras de ficção. Um texto de teatro não é uma tese. Mesmo sendo óbvio, esse fato deve ser lembrado aqui para que não se entenda de modo confuso a provocação da presente análise ao aproximar a construção do personagem Jacy como uma construção historiográfica. A peça é uma obra de ficção. Mas o modo como nela se desenrola a criação da personagem é a partir de um caminho historiográfico e não ficcional.

Em seu ensaio O Autor e a Personagem, o filólogo e filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin diz o seguinte sobre o personagem de ficção:

A consciência do autor é a consciência da consciência, isto é, a consciência que abrange a consciência e o mundo da personagem, que abrange e conclui essa consciência da personagem com elementos por princípio transgredientes a ela mesma e que, sendo imanentes, a tornariam falsa (Bakhtin, 2003, 11).

O esclarecimento de Bakhtin nos auxilia a situar um limite próprio de um personagem de ficção numa obra cujo formato seja estritamente ficcional. Primeiramente, o que o estudioso russo chama de autor e de personagem são conceitos abstratos. O conceito de autor não é a de uma subjetividade que domina de modo onisciente o personagem. Mas a formulação de um agente organizador estético. Dentro do ponto de vista de uma ficção, o autor deve ser pressuposto como a consciência primeira, aquela que comporta num plano criador e estético a consciência da personagem. Por exemplo, em Dom Casmurro de Machado de Assis, a consciência de Bentinho não é a do romancista. A consciência do autor é aquela que abrange a consciência de mundo da personagem, por meio de uma ação criativa.

Em Jacy, o conceito de autor e de personagem se multiplica e se embaralha. Há ficção. Mas ela pertence a vários agentes/autores: aos dramaturgos, ao videoartista e, por último, e de modo intenso, aos atores que se confundem propositadamente na obra como atores-personagens de si que se multiplicam em outros. Mas a ação dessa ficção-documental se elabora a partir de uma investigação de uma “personagem coisa” (ou “personagem fato”), “mulher-documento”, indiciário, que sai de uma frasqueira e de depoimentos de uma cuidadora que acabam entrando na peça.

Por mais que haja uma organização estética, isto é, uma ficção/invenção desses autores diante dessa “mulher-documento” que sustenta esse relato investigativo, o aspecto fragmentário e concreto do documento impõe um limite criativo ao espetáculo. Ou melhor, a escuta sensível dos autores perante esse objeto faz com que a ficção se construa entrelaçada a uma dicção historiográfica. A peça não cai em máximas contemporâneas tautológicas que afirmam que tudo é ficção, nem tampouco no vício mimético de restauração do real. Opta-se pela tentativa crítica de encenar/ensaiar uma narrativa em torno de um nome, que, mais do que exemplificar uma personagem ficcional bem construída, nos apresenta um índice reflexivo que ajuíza sobre a história recente do próprio país.

 

Referências Bibliográficas:

BAKHTIN. Mikhail. O Autor e a Personagem in: Estética da Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes. 2003.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Brasiliense: São Paulo, 2000.

CAPISTRANO, Pablo; MACEDO, Iracema. Jacy. Texto cedido. (Ainda não publicado)

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola. 1996.

SANTOS, Valmir. O Sublime imponderável ou um achado. In: http://teatrojornal.com.br/2014/11/o-sublime-imponderavel-ou-um-achado/ acesso: 20/03/2016

SMALL, Daniele Avila. Nomeando Jacy. In: http://www.cooperativadeteatro.com.br/10mostra/2015/11/02/nomeando-jacy/ acesso: 18/03/2016

 

João Cícero Bezerra: crítico e teórico de arte e teatro, dramaturgo e escritor. Formado em Teoria do Teatro pela UNIRIO, é Mestre em Artes Cênicas pela mesma instituição e Doutor em História Social da Cultura pela PUC-Rio. De 2008 a 2015, lecionou Estética e História da Arte no bacharelado de Artes Visuais do Senai-Cetiqt. Leciona História do Teatro Brasileiro e Mundial no Bacharelado de Teatro da CAL.

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