A dúvida é razoável

Crítica da peça 12 pessoas com raiva, com direção de Juracy de Oliveira

10 de junho de 2020 Críticas

12 pessoas com raiva é o título da peça de teatro dirigida por Juracy de Oliveira para fazer apresentações pelo Zoom neste primeiro semestre de 2020. No elenco, estão Ênio Cavalcante, Gabrielly Arcas, Gilson de Barros, Giovanna Araújo, José Henrique Ligabue, Leandro Vieira, Mariana Queiroz, Maurício Lima, Múcia Teixeira, Nely Coelho, Ralph Duccini e Tatiana Henrique. O texto é uma adaptação de Juracy do texto escrito pelo estado-unidense Reginald Rose nos anos 1950. O filme 12 Angry Men é um clássico de 1957 protagonizado por Henry Fonda, e que depois ganhou um remake em 1992. Há poucos anos o grupo TAPA realizou uma adaptação para o teatro, com a tradução 12 homens e uma sentença, a mesma usada para lançar ambos os filmes no Brasil, que carrega a infeliz escolha de suprimir a raiva do título.

Para falarmos dessa adaptação, que faz tanto sentido no Brasil de hoje, vale a pena trazer algo do contexto em que o texto foi escrito. Reginald Rose foi um autor da geração que fez a chamada “era de ouro” da TV norte-americana escrevendo peças para televisão. O teleteatro fazia imenso sucesso nos anos 1950. As peças eram filmadas em cenários realistas no estúdio e transmitidas ao vivo – pois ainda não havia o videotape. As narrativas, os diálogos e cenários observavam praticamente os mesmos limites das possibilidades do teatro realista da época. Era teatro, veiculado em tempo real pela TV. Enquanto isso, no Brasil, havia o Grande Teatro Tupi, coordenado por Sérgio Britto, realizado com profissionais de teatro do Rio de Janeiro e de São Paulo, como atrizes e atores do TBC – Teatro Brasileiro de Comédia. O teleteatro teve um papel importante na difusão do teatro e na formação do imaginário do público a respeito do que é e de como se faz teatro. Para o bem e para o mal. O teatro radiofônico, anterior ao teleteatro, também foi – e continua sendo – um desdobramento criativo do teatro na incorporação de outra linguagem. Com isso, atento para o fato de que o teatro sempre acolheu, na sua cultura, a possibilidade do diálogo com mídias diversas, seja incorporando as imagens jornalísticas que passavam no cinema ao teatro documentário início do século XX, seja fazendo uso do rádio e da TV, a partir das décadas de 1930 e 1950, para expandir seu alcance de público e suas possibilidades de experimentação com a linguagem.

Assim, não parece mera coincidência que um autor ligado à história entrelaçada do teatro e da TV apareça nesse momento em que os artistas de teatro estão precisando se relacionar com seus espectadores de forma remota. De uma maneira bastante distinta e guardadas as devidas diferenças de momentos históricos, é como se estivéssemos revisitando o teleteatro, usando agora, para captação, edição e montagem de imagens, aplicativos que até pouco tempo atrás eram usados – até onde eu sei – apenas para reuniões e conferências. De lá para cá, muitas transformações aconteceram nas artes, nas comunicações, em tantos aspectos. Vale lembrar que antes mesmo das restrições impostas pela pandemia do novo coronavírus, a transmissão ao vivo de peças encenadas nos teatros, com todos os seus elementos de cena, já não era novidade. No Brasil, para dar apenas um exemplo, o Teatro Oficina se dedica a transmitir as suas peças em tempo real pela Internet já há alguns anos. Penso que o Zé Celso e o pessoal do Oficina, com toda a sua intensidade de ênfase no corpo e no convívio espaço-temporal, estão cansados de saber que o ambiente virtual é um território a ocupar. Os espetáculos musicais da Broadway e as óperas de grandes teatros de metrópoles ricas já estavam usando a Internet e os cinemas para investir na formação de novos públicos – inclusive no âmbito da internacionalização desses “produtos” como iscas do turismo. Além disso, outras formas de experimentar o convívio à distância pelo uso de tecnologias de Internet têm sido experimentadas em espetáculos nos últimos dez anos.

Em 12 pessoas com raiva, a situação elaborada por Rose nos EUA dos anos 1950 é transposta para o Brasil de 2020 sob o efeito da pandemia. Um júri é convocado a se apresentar online (usando o Zoom) e deve chegar a um veredito unânime sobre um assassinato envolvendo pai e filho. A vulnerabilidade social do filho, acusado de assassinar o pai, não pode ser deixada de lado, tanto na presunção imediata (sem mediação, sem reflexão) da sua culpa quanto na possibilidade de consideração da sua inocência. Felizmente, nessa adaptação, não há apenas homens no elenco. Há homens e mulheres, pessoas negras e brancas, há também sotaques diversos, pois a maior parte do elenco se divide entre Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte. Essa possibilidade, do intercâmbio criativo entre artistas de diferentes cidades sem as despesas de logística, é algo a se aproveitar. A divisão do elenco entre as personagens cuida para que não haja pressuposições maniqueístas, mas é uma mulher negra que traz a ponderação necessária para o debate. Tatiana Henrique é a atriz que protagoniza a trama, sua personagem, a jurada n.8, assume a liderança na luta para que a Justiça seja feita com justiça, ou pelo menos com cuidado.

Tatiana Henrique em 12 pessoas com raiva.
Tatiana Henrique em 12 pessoas com raiva.

Ao longo do debate que se dá entre as pessoas que compõem o júri, a peça coloca em jogo a verificação de provas e convicções, evidenciando os diferentes usos da linguagem nas falas de personagens que só conseguem repetir afirmações e nas falas daqueles que são capazes de hesitar, duvidar, perguntar. Com isso, fica evidente que a vida do rapaz que está no banco dos réus não tem nenhum valor para a grande maioria do júri no início da peça. Mas muita coisa acontece quando uma pessoa toma a iniciativa de interromper o círculo vicioso, inserindo o pensamento crítico na situação, instaurando uma atmosfera de conversa, de fala franca e de escuta, mostrando que a vida daquele rapaz, como a de outros como ele, importa. Ela assume a responsabilidade sobre a prática de dar valor à vida daquele garoto dando a ele o benefício da dúvida, escavando a realidade dos fatos, ocupando-se da tarefa que foi incumbida àquele grupo de cidadãos. Vê-se a tentativa de desqualificação da razão tanto sob a acusação de habilidade retórica quanto sob a suspeita da emocionalidade – como se a articulação verbal fosse, a priori, um ardil, e as emoções, defeitos. Vejo, talvez porque tenha tratado disso em um texto recente, um modo feminino (não necessariamente atribuído a mulheres) de permanecer no problema, de enfrentar para resolver, detendo-se sobre cada etapa, e um modo masculino (que também não é prerrogativa absoluta dos homens) de querer acabar com o problema com uma solução fácil e mágica, “apertando um botão” como diz alguma das personagens, ou fingindo que ele não existe, como fazem as pessoas que estão acreditando nas fake news propagadas pelo governo brasileiro sobre a COVID-19.

Há, na dramaturgia, um ou outro salto um pouco mal resolvido nos momentos finais, o que talvez possa ser mais bem trabalhado em algumas atuações. A plataforma do Zoom, a conexão de Internet que temos em casa, e as câmeras comuns dos computadores não oferecem os melhores recursos para a encenação de um drama – me refiro ao gênero drama, não ao teatro em geral. Por mais que as personagens estejam também no Zoom, ou seja, por mais que elas estejam submetidas às mesmas regras de interação que os atores, a dramaturgia que foi criada para ganhar corpo em outras condições pede um pouco mais de tempo, especialmente para as transições que acontecem nas mentes dos personagens, além de demandar a construção de um crescimento gradual na tensão entre os corpos no ambiente que é difícil de reproduzir sem o embate no espaço entre os atores e atrizes. Identifico nessa plataforma um potencial ainda maior para a exploração de outras linguagens menos realistas, como as palestras-performances e as dramaturgias ensaísticas. A versão online da série My Documents, projeto de curadoria da encenadora argentina Lola Arias, também sinaliza nessa direção. O modo de exibição de galeria – usado em 12 pessoas com raiva –, em que várias janelas aparecem ao mesmo tempo, tem um potencial plástico instigante. O filme-ensaio do Grupo Galpão, Éramos em bando, aponta para essa possibilidade na linguagem da poesia e da experimentação. Ainda assim, a dinâmica da peça dirigida por Juracy de Oliveira consegue fazer a encenação chegar a momentos intensos e joga com a voltagem dos diálogos e dos silêncios de um modo bastante eficaz.

A trama da peça estabelece uma regra específica: há uma indicação do juiz de que o réu só pode ser considerado culpado se não houver dúvida razoável sobre o veredicto. A peça faz ver que a dúvida, essa ferramenta da razão, pode levar as personagens a juízos antes imprevistos – mesmo que a resolução da trama seja um tanto previsível para quem assiste. O debate crítico sobre teatro online, ou teatro digital, para usar uma expressão corrente na língua inglesa, não começou com a pandemia, mas ganhou com ela uma súbita popularidade. A rejeição dessa prática vem da crença de que a convivialidade remota não é uma convivialidade legítima, de que a participação à distância não é uma participação verdadeira, de que a realidade virtual não é uma realidade. Acredita-se, nesses casos, que só a partilha do mesmo espaço ao mesmo tempo provoca experiências nas pessoas. Então sugiro que nos detenhamos por um instante nesse falso problema, para que, como a jurada n.8 da peça, possamos desconfiar das verdades implícitas nessa armadilha. Convívio presencial e convívio remoto não são experiências idênticas, ninguém está afirmando isso. Mas também não são ideias antagônicas. Não se pode negar as implicações reais das interações virtuais nos nossos corpos, mentes, afetos. Não é preciso criar um clima de FLA X FLU (ou River X Boca, como disse o crítico argentino Jorge Dubatti em um debate recente) para defender uma ideia de teatro puro contra uma ideia de teatro deturpado. Não precisamos fazer da Internet um novo Salão dos Recusados. Nem precisamos de novas passeatas contra a guitarra elétrica. Tanto se fala em teatro expandido… Esta aí uma forma de teatro expandido. Estamos em um momento histórico de franca e vertiginosa transformação das nossas noções de realidade, desde bem antes da pandemia. E o teatro, historicamente, sempre se abre para outras noções de mundo. Para quem quiser ouvir uma conversa produtiva sobre o assunto (e entender a língua inglesa), recomendo assistir ao debate realizado no dia 8 de junho pela Associação Internacional de Críticos de Teatro, disponível na página do Facebook da instituição, prestando atenção especial às falas de Deepa Punjani, Cecilia Djuberg e Rita Sebestyen.[i]

A possibilidade de apresentar um espetáculo por um aplicativo online é algo que pode ser usado a nosso favor, sem temer. Não corremos o risco de que os espectadores fiquem “acomodados” a ver as peças online, pelo contrário. Penso ainda que a atenção a essas experiências que estão alargando as fronteiras do teatro pode contribuir para a desmistificação, para a desconstrução da crença idealista de que o convívio entre corpos em tempo e espaço simultâneos resulta – por si só – em uma experiência de qualidade superior. Não há garantias quanto a isso.

Nossos problemas são outros, muito piores, especialmente para quem vive no Brasil. O fato de que esses artistas e técnicos não estão sendo remunerados (pelo menos não ainda), isto sim, é um problema a se enfrentar. A falta de acesso à Internet e a equipamentos para assistir a esses espetáculos em casa por parte de uma parcela imensa da população brasileira, também. Não vou nem entrar no problema de que a grande maioria das pessoas no país não tem nem como aderir ao isolamento social… Mas no que diz respeito ao debate sobre a linguagem, vale lembrar que o teatro contracena com tudo, se adapta e reencontra o seu lugar no mundo. Com experimentos online como 12 pessoas com raiva, o desejo pelo teatro (com tudo o que se tem direito) só aumenta.

As apresentações acontecem em dias e horários previamente marcados e divulgados nas redes sociais do coletivo. Os espectadores interessados podem acessar o grupo de transmissão do WhatsApp[ii], para receber as informações diretamente no celular. O acesso é gratuito (pelo menos por enquanto) e feito a partir de um link para acessar uma sala no Zoom, operado no modo Webinar, no qual os espectadores não aparecem. No entanto, há uma conversa depois do espetáculo para quem quiser participar, na qual o público pode fazer comentários ou perguntas por áudio. No dia em que assisti à peça, a conversa revelou espectadores e espectadoras atentos e presentes, até mesmo surpresos com a intensidade da experiência. Nem tudo é dispersão e superficialidade na Internet. Igual a tudo na vida, há que se aprender a usar.

Notas

[i] https://www.facebook.com/watch/live/?v=2700212210223150&ref=external

[ii] https://chat.whatsapp.com/GbOzNRd8vQj4ytx6tBJpN8

 

Daniele Avila Small (Rio de Janeiro, 1976) é crítica e curadora de teatro. 

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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