Ancestralidade positiva – um resgate das existências que escapam

12 de setembro de 2021 Processos

O Futuro não é depois: uma performance palestrativa sobre Cazuza e Herbert Daniel é um trabalho criado para o projeto “Cena agora – Arte e ciência: corpos reagentes, existências em crise”, do Itaú Cultural, que em sua segunda edição quis pensar as relações possíveis entre arte e ciência a partir de inúmeros e plurais pontos de partida. O trabalho em questão é um dos vários desdobramentos poéticos do projeto “Como eliminar monstros: discursos artísticos em torno do HIV/AIDS”, criado por mim em parceria com o diretor carioca Fabiano de Freitas, o Dadado, para pensar as relações entre arte e HIV e como ela, em suas inúmeras tentativas de se debruçar sobre o tema ao longo dos 40 anos da epidemia, muitas vezes também produziu discursos que ajudaram a perpetuar os estigmas sociais produzidos no bojo da epidemia discursiva do HIV.

O projeto estreia, coincidentemente, também em um evento do Itaú Cultural, a Mostra Todos os Gêneros, na sua edição de 2019, portanto um ano antes da pandemia do coronavírus. Em 2020, adaptado para versão on line, o projeto ganhou várias edições e se mostrou bastante pertinente para pensar uma epidemia (a da COVID-19) à luz de outra (a da AIDS) e as semelhanças e dessemelhanças impressionantes em torno de um modus operandis social que ocorre diante de atravessamentos como estes.

Vale frisar que o Projeto “Como eliminar monstros”, embora tenha um arcabouço teórico bastante substancial, é um projeto artístico-poético, criado e orientado por dois artistas e que visa discutir o HIV/AIDS pelo viés da elaboração do discurso artístico, pensando e articulando ferramentas típicas do “fazer artístico”. Atentar para isso é importante, pois a realidade curatorial do Brasil ainda pensa, em sua grande maioria, que o HIV/AIDS não é um assunto para ser discutido pela arte, e sim pela ciência ou pela saúde pública. O cânone academicista sempre interditou certos assuntos e definiu aquilo que deveria ser objeto e interesse de reflexão dos artistas. A isto a feminista panamenha Linda Alcoff chama de “obstáculo epistemológico”, em seu texto “O problema de falar pelos outros”.

Voltando à cena, O futuro não é depois: uma performance palestrativa sobre Cazuza e Herbert Daniel parte do conceito já bastante explorado de peça-palestra, e articula reflexões teóricas numa perspectiva poética, tentando construir metaforizações e deslocamentos. Esse trânsito entre academia e arte não é novo, e tem me interessado bastante para abrir outros olhares e ângulos possíveis para refletir sobre o HIV, a doença enquanto construção social e corpos e existências que escapam, a partir de conceituações de filósofos e pensadores dissidentes, que estão operando verdadeiras revoluções em torno das temáticas de gênero, corpo e sexualidade.

A cena parte da trajetória de dois artistas/pensadores brasileiros fundamentais para pensar a década de 80, boom da epidemia do HIV/AIDS no Brasil e no mundo. Duas trajetórias aparentemente antípodas, mas que se coadunam na intenção de mostrar ao Brasil sua própria cara. Cazuza e Herbert Daniel escreveram o Brasil do seu tempo, e para além dele. Cazuza é o filho da burguesia que propõe um ato de insurgência a suas próprias raízes. Herbert é o revolucionário que pega em armas para combater exatamente a tal burguesia nos anos de chumbo da ditadura militar.

Ambos fazem parte da nossa ancestralidade LGBTQIA+. Ambos, atravessados pelo HIV, e através dele, de alguma forma, reconfiguram suas obras. Cazuza e Herbert têm em comum também a recusa do silêncio. Vulneráveis e vulnerabilizados, abrem sua sorologia diante de um país afundado em estigmas morais de toda ordem, e fazem isso num período em que a vivência de um corpo bixa positivo é lida na perspectiva de uma dupla patologia, afinal a AIDS chega enquanto discursividade já completamente amalgamada a essa alcunha de “peste gay”, num momento em que a própria homossexualidade ainda é vista como doença pela ciência. Os primeiros casos de HIV no Brasil datam de 1983, quando a homossexualidade ainda configurava como desvio mental e transtorno sexual com o código 302 no CID (Classificação Internacional de Doenças). É somente em 1985 depois de uma árdua campanha liderada por Luiz Mott, antropólogo baiano e fundador do Grupo Gay da Bahia e do advogado Antônio Mascarenhas, que o CFM (Conselho Federal de Medicina) retira a homossexualidade da lista de doenças. A OMS só vai retirar a homossexualidade da sua lista de doenças mentais em 1990.  E é só em 1993 que ela vai substituir de vez o termo homossexualismo e passa a usar apenas homossexualidade. Portanto, uma parte da epidemia do HIV/AIDS é vivida como uma espécie de sobreposição de patologias.

Cazuza foi a cara da AIDS no Brasil, eternizado numa das mais perversas peças produzidas pelo jornalismo brasileiro, a célebre capa da revista Veja com a manchete “Artista agoniza em praça pública”. O assustador é que, passados quase 40 anos, e com todas as mudanças que reconfiguraram a cara da epidemia, ele ainda seja a iconografia presente no imaginário social em torno do HIV.

O que (não) produzimos, em termos de discursos artísticos ao longo deste tempo para atualizar este imaginário? O projeto nasce também dessa constatação e desse desejo: o de recusar a iconografia imposta. E resgatar o legado de Cazuza a partir de outras perspectivas, a da morte viva, como ele mesmo profetiza nos versos de sua canção Boas novas: “eu vi a cara da morte, e ela estava viva”.

Herbert Daniel, por sua vez, é o grande pensador decolonial do HIV, produzindo uma reflexão que disseca o HIV e a epidemia da AIDS a partir das mazelas e peculiaridades do país que conhece tão bem. Sua obra é tão assustadoramente atual e lúcida que a leitura de alguns dos seus textos à luz da atual pandemia da COVID-19 é desconcertante.

Em um momento da performance palestrativa me aproprio nominalmente das palavras de Herbert: “É fácil compreender que, no Brasil, as doenças irão atingir uma população predominantemente carente. Isto porque carente é quase a maior parte de nossa população, e qualquer epidemia atinge pessoas reais, num país real. Qualquer epidemia entre nós vai se desenvolver de acordo com características culturais bem próprias nossas. Bem próprias de nossa cultura sexual, bem próprias dos nossos recursos materiais e simbólicos para enfrentar as doenças e lidar com a saúde, bem próprias de nossos preconceitos e de nossa pouca capacidade de exercer a solidariedade. A AIDS não é uma doença estrangeira. Aliás, nenhuma doença que aqui chega é. A AIDS se inscreve em cada cultura de um modo distinto. Cada cultura constrói a sua AIDS própria e específica. Bem como as respostas a ela”. Para depois concluir com as minhas: “O vírus HIV que está aqui, entre nós, é nosso. Sempre foi nosso. Qualquer vírus que porventura esteja, agora, aqui entre nós, é nosso.”

A cena O futuro não é depois é um tributo a vozes ancestrais, vozes que reproduzimos não na perspectiva do ventríloquo, mas na certeza do herdeiro. Eu, como um artista positivo, vivo em 2021, saúdo os corpos que precisaram combater em uma performatividade da urgência no início da epidemia da AIDS, na década de 80. Essa herança é de todas as existências LGBTQIA+ vivas hoje, positivas ou não, e que ainda estão vivendo na perspectiva do achatamento. Ainda que parte de nós, na ilusão do pertencimento, queira negar o HIV/AIDS como parte fundamental dessa ancestralidade, reverberando um processo higienista bem ao gosto do triunfo neoliberal, visto também no universo das artes.

Este trabalho é uma tentativa de fortalecer e afirmar a importância de uma representatividade positiva. É uma gira. E um ponto. Para riscar a linha e dizer: estamos aqui hoje e somos feitos dessas vozes de antes, que falaram para além e se atualizam em um eterno presente. Afinal de contas, na ancestralidade o tempo é espiralar.

Ronaldo Serruya é ator e dramaturgo, integrante do grupo XIX de teatro e fundador do Teatro Kunyn, ambos de SP. Em 2018 idealizou, junto com Fabiano de Freitas, o projeto Como eliminar monstros, para refletir os discursos artísticos em torno da temática do HIV/AIDS. Atualmente prepara a estreia do seu texto “A doença do outro”, ganhador do 7o edital de Dramaturgia em Pequenos formatos , do CCSP.

Vol. XIII nº 72, setembro a novembro de 2021

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