Dedando Copi
Considerações sobre o cu e o fracasso em O Homossexual ou a dificuldade de se expressar pelo Teatro de Extremos
Vol. VIII, nº 65, agosto de 2015
Resumo: O presente artigo traça considerações a respeito do cu e da ideia de fracasso na dramaturgia de Copi a partir da montagem de O Homossexual ou a dificuldade de se expressar realizada pelo Teatro de Extremos. Analisa as escolhas da encenação ao comentar a atuação dos atores Renato Carrera e Mauricio Lima, suas estratégias de enunciação e operações cênicas. Os conceitos que embasam essa escrita são oriundos da Teoria Queer, dos estudos subalternos, das teorias da performance e do teatro contemporâneo.
Palavras-chave: Copi, dramaturgia, cu, queer, fracasso
Abstract: This article draws considerations towards the asshole and the idea of failure in Copi’s dramaturgy through the staging of O Homossexual ou A Dificuldade de se Expressar by Teatro de Extremos. It analyses the scene while commenting on the performance of actors Renato Carrera and Mauricio Lima, their enunciation strategies and scenic operations. The concepts that grounds this writing come from Queer Theory, subaltern studies, performance theories and contemporary theater.
Keywords: Copi, dramaturgy, asshole, queer, failure
Não é a língua, é o cu! – berra o ator Renato Carrera na montagem de O homossexual ou a dificuldade de se expressar de Copi, com realização do Teatro de Extremos (Rio de Janeiro, SESC Copacabana, junho/2015). O texto expõe a saga de Senhora Simpson (Renato Carrera) e Irina (Mauricio Lima) que estão exiladas na Sibéria e sugere a transexualidade das personagens como causa para tal desvio de rota. Além delas, Madame Garbo (Leonardo Corajo), professora de piano com quem Irina mantém relações sexuais, seu ex-marido Oficial Garbenko (Higor Campagnaro), também amante de Irina, e o General Pouchkine (Fabiano de Freitas) completam a trama. As cinco personagens se envolvem em uma possível fuga para a China e no entre da relação sobre ficar ou partir deixam-se revelar.
Não é a língua, é o cu! Posicionado sozinho no centro do espaço, Carrera berra a frase por três vezes e a cada repetição se volta para uma direção da arena. Está tudo ali: na firme voz do ator, em seu gesto preciso e movimentação militar (destaco aqui o trabalho feito por Marcia Rubin na direção de movimento do espetáculo), na escolha da direção pelo uso da centralidade, na luz marcada de Renato Machado e na reação indigesta movida pelos outros atores. Nesse momento, Carrera é como uma explosão, uma metralhadora de sentenças – a afirmação de um discurso.
A frase (re)dita pelo ator rompe o desenho da encenação, convidando o fora para olhar mais perto, pertinho. A hipotética paisagem ficcional se desnuda e derrubamos juntos, atores e espectadores, a suposta quarta parede que até então se fazia presente. Ainda entorpecidos pelo chamado de Carrera, observamos as suas mãos que apontam e evidenciam o óbvio que insiste em não ser visto: não é a língua, é o cu. Numa só frase: a falsa liberdade do poder falar e tocar (tanto o cu quanto a língua, dedar ou beijar), nosso equivocado plano de comunicação e também educação.
Garbo: Você está maluca! Ela está perdendo muito sangue.
Madre: E se foi o rato que mordeu o cú dela! Não é a língua, é o cú!
Garbo: É a língua!
Madre: Será que foi com os dentes que ela se cortou?
Garbo: Me ajude a levá-la!
Madre: Eu a conheço, ela não quer. Irina, pára de sangrar.
Garbo: Você está maluca!1
A partir da passagem citada, nota-se que a repetição da frase destacada (grifo meu) é uma criação atoral, ou de autoria do coletivo em questão, e não uma recomendação do autor. Não há no texto de Copi, pelo menos na tradução de Giovana Soar que me foi disponibilizada pela equipe do espetáculo, nenhuma rubrica que sugira tal efeito. A frase, é claro, veio do autor. Mas se é a língua que está sangrando, não há nenhum motivo lógico para que a personagem Madre pense no cu. No nível do texto há uma incongruência intencionalmente fabricada por Copi. Não uma, mas muitas, pois em sequência, repare, a Madre ordena que Irina pare de sangrar.
É através da leitura realizada pela equipe criativa, na sua cumplicidade coletiva, no arranjo cênico composto para a encenação, que as incongruências copianas atingem êxito. A palavra cu ganha notória materialidade e o seu destaque é determinante para o desenrolar da dramaturgia cênica do espetáculo. E, através das operações de atuação realizadas por Carrera, entramos em contato com boa parte dessas escolhas.
Não é a língua, é o cu. A fala seria da personagem Madre (Senhora Simpson) se não fosse antes de Carrera. É que, ao contrário do que parece ser ensinado em algumas escolas de atuação, o ator faz uso da personagem para se expressar. Quem fala não é a mãe, nem Copi ou a direção de Fabiano de Freitas (Dadado). Falam todos. Mas, para além de todo o aparato cênico-dramatúrgico, quem fala é o performer, seu corpo, sua trajetória. A personagem funciona como veículo, meio pelo qual o ator descortina a palavra e solta o verbo. A repetição, como recurso, não só sublinha o discurso como também estranha o ouvido daquele que o recebe. A palavra cu se expande, cria território e quase podemos tocá-la. Mas não precisamos da palavra. Afinal, temos o cu.
A atuação apresentada por Carrera localiza-se no vasto campo da performatividade, fazendo vida e obra confluírem. Movido pelo ator, o texto copiano ganha caráter de enunciado-alerta, portanto de destaque, delimita um discurso e só o faz porque há alguém, para não falar em sujeito, movimentando-se na linha de frente. De forma sutil, a sentença é autoficcionalizada. Mas como esse texto não pretende se aprofundar nas questões relacionadas aos efeitos do real, bem como seus possíveis desdobramentos em estratégias de enunciação cênicas que friccionam noções de realidade e ficção no teatro contemporâneo, basta dizer que nessa encenação o cu de Carrera também está na reta.
Nas palavras do próprio ator: “Não é a língua, é o cu! A palavra corpo-copi é uma flecha saída do arco-boca. Um buraco sem solução e sem respostas. Rompe-se o estabelecido. Sem dizeres rubricais, sem língua. Depois da cabeça vem o sopro, a boca, o corpo e o cu!” (texto retirado do programa do espetáculo).
A repetição sinaliza que é preciso voltar-se para o cu e para a marginalidade que lhe é imposta, seu estigma, sua geografia periférica. Se o problema é o cu e não a língua e se somos o cu do mundo, então, quem é a cabeça? A buceta e o pau do mundo? Quem são? Aposto que não são brasileiros e que devem morar lá pra cima e falar como quem enrola a língua. Apesar do texto da peça ter sido escrito por um argentino, radicado em Paris, quem grita em cena é a bicha carioca, suburbana e negra. A voz que ouço é de uma filha da barbárie, fruto do espalhafatoso vento dos trópicos.
Para alargar o cu, recorro ao parecer da pesquisadora e cientista social Larissa Pelúcio que expõe algumas das razões de seu enquadramento como órgão inferior, mas ao mesmo tempo transgressor:
Por sua associação com dejetos, aqui [no Brasil], como em outros lugares, ele [o cu] está associado a palavrões, a ofensas, ao que é sujo, mas também a um tipo de sexo transgressivo, mesmo quando praticado por casais heterossexuais. Porém, no imaginário sexual local, o sexo anal está estreitamente associado à homossexualidade masculina. O cu excita na mesma medida em que repele, por isso é queer (PELÚCIO, 2014, p. 10).
O problema do cu está justamente no que clareia Pelúcio: na dualidade que lhe foi imposta pelo organismo de poder dominante, em sua produção de prazer e repulsa, desejo e culpa, usufruição e sacrifício. Se o problema não é a língua, mas o cu, penso que a questão está localizada no corpo daquele que não age pelo cu e por esta razão teme o desconhecido. O cu tratado como zona distante ou viagem proibida colabora com o sistema que insiste em reprimir aquilo que não compreende como centro ou natural. E também por isso o cu é queer.
E se a questão da teoria queer é o abjeto, seu problema também é o cu. Pensando a abjeção como “espaço a que a coletividade costuma relegar aqueles e aquelas que considera uma ameaça ao seu bom funcionamento, à ordem social e política” (MISKOLCI, 2012, p. 24), pode-se dizer que ao cu é reservado esse mesmo espaço e discurso que legitima e autoriza a violência contra ele. Sua usufruição é criminalizada e patologizada.
Quando mocinha, eu não conhecia o trabalho do professor Guy Hocquenghem, logo eu não poderia imaginar que o cu era revolucionário. Mas sempre me perguntei o porquê de tudo acabar no cu. Tomar no cu, enfiar no cu, vigiar o cu. Somos obcecados pelos “cus” alheios. Em que pese os elementos acachapantes dados ao cu, uma outra injustiça delegada ao campo da nossa reconstrução subjetiva é nos definirem como um grande cu, expelindo o abjeto e o espúrio. Que delícia poderia ser um cu não normatizado, livre de barreiras higienistas e com a atribuição de comportar todos os políticos corruptos ou indecentes de nosso país. No cu não Brasil, sempre pensava ao ouvir um “ei fulano, vai tomar no cu” (RIBEIRO, 2015, p. 103).
Como bem sabemos um cu não anda sozinho. São as pessoas em movimento que colocam o cu pra jogo, em circulação. O cu, ou corpo-cu, é um gerador de atividades, um conjunto de práticas, uma zona produtora de reflexão, ou seja, de saber/prazer. São muitos cus em fluxo de pensamento-ação. Assim sendo, a dita minoria monstruosamente se transforma em maioria e percebemos com a ajuda de Preciado que se o problema é o cu é porque ele é uma multidão:
(…) a sexopolítica torna-se não somente um lugar de poder, mas, sobretudo, o espaço de uma criação na qual se sucedem e se justapõem os movimentos feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros, chicanas, pós-coloniais… As minorias sexuais tornam-se multidões. O monstro sexual que tem por nome multidão torna-se queer (PRECIADO, 2011, p. 14).
Ao se apropriar de forma intensa da escrita Copiana, Carrera expressa em sua construção atoral não só o seu próprio cu mas um aglomerado de cus silenciados, uma multidão. Sua atuação é horizontal na medida em que não faz uso apenas de uma identidade, que poderia ser rotulada ou universalizada, mas de muitas construções sociais que carregam nomes muito mais específicos de acordo com as suas singularidades. Justapondo inúmeros clichês e estereótipos vinculados a homossociabilidade, principalmente brasileira, o ator apresenta ao público uma personagem em trânsito, que não é/está acabada.
A bicha carioca, suburbana e negra que grita em cena é também a bicha cabeleireira, a dona de bar, camelô, passista, da novela, afetada, afeminada, poc-poc, empoderada, travestida, rasgada, desbocada, por vezes masculina, autoritária, assumida, qua-qua, queima rosca, florzinha, menininha, mulherzinha, aloka, pão com ovo, nova rica, da balada, da esquina, lacrativa, comportada e/ou sem modos, senhora poderosa mesmo, fechativa, que roda bolsinha, que dá de quatro, paga boquete, cobra pela transa ou que se afunda em cobranças… Múltiplos corpos, infinitas conexões.
As travestilidades, quando expressam singularidades, se efetuam pela perspectiva do nomadismo, pelos modos de subjetivação que se apoiam na diferença das diferenças, ou seja, a própria diferença é nômade, porque não se totaliza em uma marca identitária, mas se apresenta como fluxo; e, se por acaso ousarmos falar em identidade, será sempre transgressora, transitória, razão pela qual está sempre aberta para novas conexões, para experimentações existenciais que se atualizam pelo viés da diversidade estética em suas variações, sociais, raciais, sexuais, culturais, gendradas, políticas, de modo a negociar a circulação e a ocupação tanto de territórios geopolíticos quanto de territórios existenciais (PERES, 2012, p. 542).
A Senhora Simpson (ou Madre) de Carrera é nômade, passeia pela paisagem dos signos e se (re)faz quase que a cada diálogo. Como numa espécie de composição o que vemos em cena são conexões, faíscas2 daquilo que acreditamos saber o que é. Mas não.
Nessa mesma estrutura parece operar a dramaturgia de Copi. Seu quebra-cabeça é incompleto, e algumas peças tidas como essenciais são justamente as que foram perdidas ou propositalmente deixadas de lado. A linearidade narrativa bem como a lógica interna, ou externa, das personagens evocam outro tipo de arranjo. Seu jogo é o da imprecisão, certezas provisórias, declarações momentâneas bombásticas, mas que logo deixam de sê-lo. Copi nos provoca a perda da referencialidade rabiscando um mundo que parece sempre um vir a ser. Assim como Irina, personagem do ator Mauricio Lima.
A dramaturgia copiana só pode ser construção se for ao mesmo tempo destruição. É no desfazimento, tanto do nó de enredo como das personagens, que ela cria mundo e instaura sensação. Irina, na encenação metaforizada pela direção de Dadado e pelo figurino de Antônio Guedes, está em decomposição. A personagem não quer comer, quer cagar mas não quer se limpar. Ela enfia o rato no cu, cai, cai de novo, não pode se mexer, quebra a perna e não pode mais andar. Irina sangra porque cortou a língua e por isso também não pode mais falar.
Pobre Irina! Pobre Mauricio que no gelo fictício de uma Sibéria distante, não menos incômodo que o frio ar-condicionado do espaço SESC, se desfaz, aos poucos, de suas peças de roupa. Irina perde a blusa, a calcinha do tio Pierre, a saia, a meia e o calçado. Irina perde tudo, mas só corta a língua porque não pode cortar o cu. O sangue da boca, menos ordinário, percorre o corpo do ator banhando mamilos, umbigo, pelos pubianos e genitália à procura do cu. É no entre das pernas que o sangue se (re)faz, pinga no chão e marca o teatro.
As cicatrizes de Mauricio também estão presentes, seu corpo magricelo e maltratado pela cena (por coreografias de surra e gestos precisos) contribui para a encenação. É nesse desaparecimento continuado de Irina que o deslocamento das personagens se faz impossível. A vontade de fugir, ir embora, fica na instância do desejo, na força transformadora de manter o próprio desejo como desejante. E é justamente nesse movimento de tentativa que Copi revela a vida, a vida e a impossibilidade que lhe parece intrínseca. Nas palavras de Mauricio:
É sobre o fracasso./ É sobre a tentativa./ É sobre deixar os desejos serem combustível/ para um trenó quebrado./ Chama no meio do deserto. De gelo./ É sobre partir e ficar./ Sobre o que não se mede. De tão grande,/ ou de tão microscópio./ É sobre a imensidão pra dentro./ É sobre o tempo./ Uma Moscou latino-parisiense-soviética./ É sobre esquiar na estepe. Esquiar no sertão./ O deserto de novo./ É sobre a comunicação e tudo aquilo que lhe falta./ Tudo aquilo que lhe falha./ Sobre a capacidade criativa de gerar o infinito/ a partir de um número certo de…/ É sobre o que não lhe cabe./ É sobre o caminho./ Sobre todas as estradas./ É cachorro uivando./ É silêncio./ É sobre a palavra./ E como disse o verbo:/ “a cada palavra subsiste um crime”./ É sobre atirar contra o próprio espelho./ É sobre matar e morrer (texto retirado do programa do espetáculo).
Nesse ir e vir característico da tentativa, na fuga que nunca se realiza, as personagens revelam a interdependência das relações afetivas. O fracasso é um lugar seguro e mais satisfatório do que a vitória. Vencer sozinho parece não ter graça quando podemos nos reconhecer juntos em nossas falhas, em nossa inabilidade para sermos humanos. A crueldade da palavra copiana denuncia que em toda relação de amor há também, e por que não?, uma forte dose de ódio.
Se o oposto do amor é a indiferença e não o ódio, pode-se verificar que nas relações movidas pela odiosidade alguma espécie de ligação entre os sujeitos ainda se faz presente. As personagens de Copi parecem se detestar, mas nunca se calam ou escapam ao diálogo. Nas farpas da linguagem expressam sua dependência e constroem chão para suas amorosas maldades. Da armadilha que não funciona ao plano mal executado é o fracasso o que sobressai.
Copi parece militar pelo direito de errar e pela beleza existente no que não pode dar certo. Permanecer no erro, no deserto sem salvação, assim como colocou Mauricio. Se é sobre partir e ficar, matar e morrer, é também sobre ampliar o espectro binarista e elaborar novos quadros que não se restrinjam ao isso ou aquilo, sim ou não, rosa ou azul. Se é sobre o caminho, sobre todas as estradas, é também sobre processo. Sobre o próprio ato de caminhar e se deixar contaminar pela paisagem ao mesmo tempo em que a reconhece. Caminhar, então, para produzir (des)caminho, conexões outras – atirar contra o próprio espelho.
Matar a imagem ou, pelo menos, duvidar da imagem primeira. Ampliar o campo e colecionar incertezas. Irina diz sim como quem diz não e nega como quem afirma saber o lugar que ocupa ou deseja estar. Entre tantas respostas, ela parece estar sempre no meio, ainda sendo formulada, buscando compreender aquilo que acredita ser. Mauricio, atualizando Irina, é um bom jogador, brinca com as palavras e nos oferece um vasto cardápio de possibilidades. O ator aceita o convite feito pela dramaturgia de Copi e traveste-se em imprecisão. Sua única certeza é o não saber. Mas não um não saber desavisado ou fora de propósito. Ao contrário, sua oscilação tem local: sai do corpo e para ele retorna.
Volto à imagem do corpo banhado de sangue para pensar sobre o seu potencial travesti. Para além da relação com os inúmeros corpos cotidianamente violentados pelo sistema heteronormativo, branco, de classe média e cristão, o travestimento da imagem também pode endereçar outras localidades. Na oficina “O ator travesti”3, ministrada por Fabiano de Freitas e Thomas Quillardet, aprofundou-se a noção do travestimento na dramaturgia de Copi, frisando que o conceito não estaria só relacionado à imagem da travesti urbana – para usar da expressão cunhada pelos oficineiros.
Antes mesmo de adentrar o campo da sexualidade e as questões relativas às identidades de gênero, a travestilidade em Copi pode estar relacionada ao desejo de travestir-se em um gesto, um movimento, uma expressão ou, até mesmo, um objeto; travestir-se num detalhe, um órgão, uma curva e um animal; travestir-se para ocupar, mesmo que provisoriamente, um outro corpo e uma outra forma – múltiplas corporeidades. Em entrevista publicada no dia 24 de junho de 2015 no site do Jornal do Commercio, de Recife, o diretor Fabiano de Freitas comenta:
É uma desconstrução desse ator que ele [Copi] se autointitula. É um pensamento mais amplo, um ator sempre pronto para mudança de pele. Ele dominava muito os jogos teatrais, que colocavam o ator nesse nível de mutação. O ator-travesti rompe com a visão binária de homem que se veste de mulher e mulher que se veste de homem. É o tirar dessa carapaça que a sociedade impõe, afirmando um jogo livre. Copi é repleto de liberdade (FREITAS, 2015).
Dito isso, o sangue pode não só nos remeter a imagens de violência como também às de pacto, ritual, pintura, automutilação, erotismo, pornografia e práticas subversivas. Ao mesmo tempo em que o sangue silencia Irina, ele também a cobre de textura e prazer. Seu corpo é atravessado com outra cor, um manto de carmim, sugerindo outra corporeidade para sua pele que é, agora, como uma nova forma. Ensacada em sua própria pele ensanguentada e em micromovimentos, Irina se despede dos marcadores sociais que tanto judiaram de sua identidade desviante.
Irina se despede mas não vai embora.
A imagem de Mauricio/Irina, recortada pela luz desenhada de Renato Machado, não deixa dúvidas: depois de derramado o sangue ainda há incerteza e penumbra. A morte não se faz solução, pois, nunca foi tratada, especialmente por Copi, como ponto de chegada ou partida. A morte é só mais um travestimento ou deboche para com aqueles que insistem em dizer que “iremos dessa para uma melhor”. Irina quer fazer “o melhor” vingar no aqui e agora desse instante – mesmo que para isso seja preciso dar de sua própria carne. O corpo-pele-língua-cu morto está vivo em sua impossibilidade de representar a ideia de fim.
O espetáculo acaba, mas Irina não nos deixa.
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, a imagem que fecha o espetáculo poderia muito bem fazer parte do seu prólogo. A última imagem é também a primeira e, assim, numa espécie de paisagem conceitual que opera por ciclos intermináveis, a cadela morde o próprio rabo até perder-se de vista. O autoboicote é uma ferramenta constante no projeto dramatúrgico de Copi que parece querer sempre ver de novo, renovar uma mesma sentença ou imagem.
O homossexual ou a dificuldade de se expressar seria um texto repetitivo se não se utilizasse da renovação como operação recorrente. Voltamos sempre ao mesmo problema, mas com novas palavras e contornos, parece que já nos conhecemos… Mas não. Eu ainda não me apresentei.
Prazer,
Referências bibliográficas:
FREITAS, Fabiano. “Copi: o teatro transbarroco sai do armário”, Jornal do Commercio, matéria online, 2015. Disponível em:
http://jconlineblogs.ne10.uol.com.br/terceiroato/2015/06/24/copi-o-teatro-transbarroco-saiu-do-armario/ – último acesso em 24/06/2015.
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica Editora; UFOP, 2012 (Série Cadernos da Diversidade 6).
PELÚCIO, Larissa. “Traduções e torções ou o que se quer dizer quando dizemos queer no Brasil?”, Revista Periódicus, Salvador, Vol. 1, No 1, 2014.
PERES, Wiliam Siqueira. ‘Travestilidades Nômades: A explosão dos binarismos e a emergência queering”, Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2), 2012.
PRECIADO, Beatriz. “Multidões Queer: notas para uma política dos anormais”, Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1), 2011.
RIBEIRO, Vinicios. “Meu cu faz milagre ou Je suis Jaciras”. In: MURARI, Lucas; NAGIME, Mateus (Orgs.). Catálogo New Queer Cinema: cinema, sexualidade e política, 2015.
Caio Riscado: Doutorando em performance pela UNIRIO, Mestre em processos e métodos da criação cênica pela UNIRIO, Diretor Teatral formado pela UFRJ, artista pesquisador, professor, performer e membro fundador de MIÚDA – núcleo de pesquisa continuada em artes do Rio de Janeiro.
Notas:
1 Não há publicação em português do texto O homossexual ou a dificuldade de se expressar de Copi. As passagens citadas foram retiradas da tradução realizada por Giovana Soar disponibilizada pela equipe do espetáculo para escrita desse artigo.
2 No dia 19 de junho de 2015 levei os alunos da disciplina Encenação, do curso de graduação em Licenciatura da UNIRIO, para ver o espetáculo e bater um papo com a equipe. No pequeno mas proveitoso debate Renato Carrera falou das dificuldades de compor essa personagem, destacando, principalmente, o seu caráter fugidio. O ator usa a palavra “traço” para definir sua construção e lembra que Copi além de dramaturgo era também cartunista. O desenho da personagem se dá por traços, pequenos estímulos reconhecíveis. Carrera nos diz ainda que o ator precisa sugerir e o público é quem fica responsável por juntar os traços e elaborar o seu próprio quadro.
3 A Oficina “O ator travesti” teve duração de três semanas, totalizando 60 horas de duração. Guiada por Fabiano de Freitas e Thomas Quillardet, a oficina fez parte da programação da Ocupação Copi, realizada no Sesc de Copacabana, RJ, nos meses de junho e julho de 2015. A programação contava também com o espetáculo “A Geladeira”, de Copi, dirigido por Thomas Quillardet.