Um deslocamento do comum para o incomum
Sobre Hoje eu não saio daqui, da Cia Marginal
No Brasil foram destruídos os documentos da época da escravidão, impossibilitando que as pessoas negras identificassem a sua origem. Desde a escravização, os negros e negras têm sido contados (as) ao invés de contarem a sua própria história. O protagonismo negro na sua própria narrativa é uma possibilidade recente, fruto dos movimentos negros que se reorganizaram na década de 1970 no Brasil, repercutindo artística e culturalmente quando poéticas e estéticas negras foram reconstruídas. Era preciso entender a história para resistir a ela e construir o novo, algo fundamental para a população negra. Contar a versão de si mesmos, que remete ao lema popular negro “nós por nós”, é uma forma de escurecer o futuro. Contar a sua própria história é tornar-se sujeito, fazer jus a um locus social, além de ser uma poderosa maneira de decolonizar os corpos imagética e ideologicamente. “É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória a gente considera como o não saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção” (RATTS, RIOS, 2010. p.74). Ou então precisa tornar a ficção mais real.
A pesquisadora francesa Lîlâ Bisiaux no artigo Deslocamento Epistêmico e Estético do Teatro Decolonial contextualiza a modernidade de maneira incomum na medida em que ressalta como seu fundamento a colonização. Para Bisiaux a modernidade, ao exaltar a emancipação do homem, a racionalidade, o progresso, a ciência e a universalidade cria uma sobreposição a vários outros modos de vida e às diversas outras epistemologias às custas da escravização e da subalternização de corpos africanos. Com o advento da descoberta da América e toda história de colonização decorrente desse episódio, aos poucos foi sendo criado um relato eurocêntrico da modernidade que tem como característica predominante a valorização da retórica emancipadora, ao mesmo tempo em que omite a sua lógica opressiva. Muitos desses relatos foram pautados em mentiras, a começar pelos territórios que não foram descobertos, pois já havia uma população residente que também foi colonizada com a tal “descoberta da América” e até dizimada, a exemplo dos povos indígenas. Segundo ela, essa operação moderna foi fundamental (e ainda é) para a perpetuação do capitalismo, pois não podemos esquecer jamais que ele se estrutura a partir do lucro com a compra e venda de corpos negros.
A autora cita Aníbal Quijano, sociólogo e pensador humanista peruano, conhecido por ter desenvolvido o conceito de “colonialidade do poder”, que compreende a modernidade como expansão do capitalismo em escala mundial e teve como fonte uma nova forma de economia a partir da “descoberta da América” e sua colonização. Como diz Bisiaux, esse processo histórico criou a “diferença colonial” que é a classificação hierárquica da população mundial. Trata-se em conceder graus de humanidade à população mundial e estabelecer a normalização de classificação racial dos seres. Desse modo, possuímos uma herança escravocrata que implica até os dias de hoje, apesar dos territórios descolonizados, que se estabelece por meio de um imaginário colonial e racista.
Em alguma medida, a autora parece estar falando da tensa relação com a imagem para a qual os negros foram historicamente submetidos e as possibilidades de criação de novos caminhos. A própria ideia de centro e periferia, segundo Bisiaux, já é baseada nos preceitos coloniais. Nas Artes Cênicas atualmente é possível identificar estratégias negras para o combate à violação da sua própria imagem por meio de criações de deslocamentos epistêmicos e estéticos com pretensão de decolonizar o teatro e seus corpos. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, é possível analisar a representação e a representatividade de pessoas negras nas Artes Cênicas nos últimos anos como auto-construção da imagem e disputa de imaginários dos corpos racializados. Questões como representação, representatividade, comunidade e identidade estão intrinsicamente ligadas ao movimento negro artístico e também do público em busca de maior representatividade negra e construção de contranarrativas.
Lîlâ Bisiaux aponta a necessidade de descolonizar os colonizadores por meio de uma revisão de seus imaginários e categorias de pensamento para a efetivação de um processo de decolonização. Desse modo, a autora enfatiza a importância de criar espaços para outras epistemologias que foram historicamente suprimidas, invisibilizadas e desconsideradas. Esse processo de epistemicídio está diretamente ligado ao projeto moderno e capitalista que no Brasil resultou no mito da democracia racial, que só será verdadeiramente rompido quando houver possibilidade de descolonizar as epistemologias hegemônicas e vigentes.
Como possibilidade de descolonização epistêmica e estética, destacaria o espetáculo Hoje eu não saio daqui da Cia Marginal, que estreou em 2019 no Rio de Janeiro. Trata-se da mais recente criação do grupo teatral que tem como espaço cênico o Parque Ecológico do Complexo da Maré, localizado no maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro. Nesse complexo existem aproximadamente 140 mil moradores espalhados por 17 favelas, quando muitas delas não se relacionam bem entre si em virtude das disputas entre facções criminosas. O coletivo é formado majoritariamente por moradores da Maré que, por sua vez, é a favela que mais acolhe pessoas em situação de refúgio no Rio de Janeiro. O enredo é estruturado a partir do encontro entre os atores que são moradores nativos e os que estão em situação de refúgio. Com isso, o espetáculo provoca duas reflexões que gostaria de compartilhar aqui para uma interlocução com a noção de “diferença colonial” e “teatro decolonial”, ambas postas por Bisiaux: a tensa relação entre comunidade e identidade; e a fricção entre realidade e ficção no teatro comunitário.
O deslocamento territorial provocado pelo espetáculo é complexo para quem é e para quem não é morador, fazendo com que a itinerância comece muito antes do espetáculo e isso faz parte da experiência cênica. Diferentemente de outros espetáculos produzidos atualmente por pessoas negras e marginalizadas socialmente, Hoje não saio daqui não atrai um público predominantemente negro ou favelado. Chegar até o espetáculo, para muitos, significa entrar na favela e, para os locais, transitar por territórios nada neutros. A direção é de Isabel Penoni. A dramaturgia é da Cia Marginal – que inclui Isabel Penoni, Jaqueline Andrade, Geandra Nobre, Phellipe Azevedo, Priscilla Monteiro, Rodrigo Maré e Wallace Lino, além de Jô Bilac como dramaturgo convidado. Todos têm apreço pela construção coletiva da dramaturgia que emerge a partir da cena, das vivências e pontos de vista dos atores e atrizes. O trabalho é resultado de uma colaboração entre artistas brasileiros e africanos e reúne no elenco os seis atores da Cia Marginal já citados e mais seis atores e músicos angolanos convidados: Zola Star, Ruth Mariana, Maria Tussevo, Elmer Peres, Vanu Rodrigues e Nzaji. Os três últimos são moradores da comunidade angolana da Maré, a segunda maior do Brasil. Nesse caso a construção coletiva com os atores da companhia – que são moradores dessa comunidade – está implicada no texto, que problematiza a noção de comum e de africanidade como legado histórico. A maioria das pessoas negras no Rio de Janeiro reside em favelas devido ao longo processo histórico de escravização pelo qual passamos no país, que resultou em uma abolição tardia e precária que nunca previu a inclusão dos corpos negros à civilização. Esse processo de permanente negligência com a população negra está relacionado com a criação das favelas, sendo este um lugar estigmatizado pelas classes mais abastadas. Grupos que carregam consigo a marca da comunidade têm buscado abordar seus aspectos positivos como solução encontrada para moradia, mas também como potente lugar de encontro, vínculos, afetos, acolhimento, solidariedade e troca.
O espetáculo se passa no Parque Ecológico da Maré, que representa simultaneamente a favela e a floresta, uma referência tão importante para os povos africanos pelo encantamento, mas também pela possibilidade de fuga a exemplo dos quilombolas. O espaço escolhido para a cena é também o lugar de resgate e reencontro com os povos que sofreram a diáspora africana e que são ascendentes dos brasileiros. O espetáculo parece criar no meio da floresta esse ponto de encontro entre o passado e o presente, mas que não resolve o problema gerado pela escravização de inúmeros povos. Não se trata de um reencontro que reafirme identidades, ou que proporcione um resgate da perda de vínculos causada pelo sequestro colonial. É um reencontro que reafirma as diferenças. Destaco a cena em que os moradores brasileiros da Maré ficam de um lado e os moradores africanos do outro, entre um microfone, quase como um programa de auditório que rivaliza grupos opositores.
Nesse contexto, são feitas várias afirmações e comparações identitárias, na busca de uma diferenciação entre os grupos. Questiona-se inclusive a negritude de brasileiros pardos representada por alguns corpos dos atores brasileiros rivais dos africanos quando um ator/personagem afirma que um ator/morador brasileiro da Maré não é negro em seu país de origem. Está posta então a retomada histórica, quase como um resgate às origens que não dá mais conta.
Pensar em “diferença colonial” é também pensar em identidade e comunidade. Mas o espetáculo analisado não parte da premissa ingênua de totalidade da identidade e da comunidade. Nesse trabalho a noção de comum é compreendida de maneira crítica, assumindo a sua projeção ideológica necessária, fundamentada na identidade que é sempre transitória e estratégica para dar conta de uma falta em comum. A noção de comunidade adotada é para além de uma ideia estritamente territorial e geográfica. O espetáculo aborda a fissura identitária e a problematização da comunidade imaginada que se estabelece sempre pelo que não se tem, ou seja, pela diferença. O uso da noção de identidade tem mais a ver com a formação de práticas discursivas específicas, estratégias que são produto da marcação da diferença e da exclusão, como diz Stuart Hall em Quem precisa de Identidade?. Mas também tem a ver com a necessidade, colocada por Bisiaux, de um deslocamento epistêmico e estético para a elaboração de um teatro decolonial.
No meu ponto de vista, as noções de identidade e comunidade são importantes para a afirmação de uma epistemologia oprimida, na qual é preciso recuperar a elaboração de uma estética própria que se oponha a um padrão hegemônico de teatro. A utopia do comum que está implícita no cerne de toda e qualquer comunidade identitária é calcada, sobretudo, na ausência. É a falta que une as pessoas e faz com que elas se agrupem, se identifiquem e busquem algo comum a elas. Toda comunidade parte da mobilização de mudança do status quo e se mantém na luta pelas conquistas que nunca estão garantidas. No entanto, esta ideia de comum não deve aniquilar as diversidades e especificidades dos sujeitos sociais, mas contribuir para o fortalecimento das singularidades ao mesmo tempo em que estrutura coletividades. Desse modo, o espetáculo pressupõe um pensamento com premissas democráticas, antirracistas (se não, não há democracia de fato) e sensível às demandas de pessoas negras, evidenciando o que há de potente nas iniciativas atuais faveladas, mas também denunciando o que há de fraqueza produzida por uma constante negligência pública.
Outro momento emblemático é o corredor formado pelos atores que fazem perguntas-tabus sobre racismo, preconceitos, branquitude, entre outros temas. O espectador é convocado a se pronunciar sobre temas socialmente constrangedores. Esse momento exemplifica uma recorrente operação utilizada no espetáculo que é ultrapassar os limites entre a ficção e a realidade. Os atores se colocam como moradores e sujeitos sociais enquanto os espectadores não são poupados de se posicionarem. Com isso, as fronteiras entre realidade e ficção ficam bastante tênues e difíceis de descolar do real. Penso que o espetáculo colabora para a reflexão sobre problemas estruturais da sociedade brasileira, gerando outras formas de entendimento da história oficial que serve à manutenção do poder.
Marvin Carlson em a Expansão do teatro moderno rumo à realidade trata da tensão entre o real e a ilusão baseada no real como experiências peculiares ao espectador de teatro. No entanto, para o autor, o uso do real no teatro vem se projetando cada vez mais por meio de não-atores em cena, dramaturgia composta por depoimentos, entrevistas, ambientes reais que trazem elementos do real à cena, entre outros elementos. Talvez essa proposição estética tenha a ver com um teatro que demanda urgência na lida com os problemas sociais vigentes. Podemos dizer que, ainda que o espetáculo Hoje eu não saio daqui tenha uma dramaturgia organizada por Jô Bilac, é evidente que o material textual trabalhado cria uma justaposição entre testemunhos de moradores, que são também os atores, e o que se quer interrogar a partir da realidade. Há uma apropriação da vida, em vez da imitação que Carlson sugere em sua definição de teatro do testemunho. Em Hoje eu não saio daqui, a escolha do Parque Ecológico como cenário traz a beleza quase como um contraponto do imaginário que se faz de precariedade de uma paisagem favelada. O próprio título remete ao pertencimento dos atores – que são moradores – ao lugar da cena que é também o lugar da morada. Eles e elas afirmam o orgulho territorial de não abrirem mão do lugar de onde são, mas também criam uma dicotomia para quem é de fora, que pode corroborar com a imagem midiática da favela como lugar inseguro para se estar.
Na interlocução entre o real e a ficção, o espetáculo provoca ainda mais camadas de sobreposição com a constante interferência das crianças moradoras da comunidade que acompanham a itinerância pelo parque-floresta, compondo parte da cena e, por vezes, até replicando o texto dos atores, como na forma de eco. A intervenção das crianças parece decorrer de uma espontaneidade que foi absorvida na cena. Gosto de imaginar que as crianças foram espectadoras assíduas dos ensaios e que se apropriaram da cena, porque o espaço de brincadeira delas foi invadido, e isso fez com que tomassem para si o acontecimento cênico. Com isso, as crianças tornam-se ao mesmo tempo testemunhos do processo de criação, representantes dos moradores, atores e espectadores. É como se eles transitassem entre a esfera da realidade e da ficção tal como num jogo infantil, que pressupõe uma maior fluidez entre esses códigos, entrando e saindo da ficção com grande habilidade.
A presença delas também garante este resíduo do ensaio para o espectador, dando à cena uma dimensão de arte inacabada. Para Carlson, há um interesse moderno da utilização teatral de elementos do mundo real (CARLSON, 2016, p.05) tal como a operação de ready made proposta inicialmente por Marcel Duchamp como operação de deslocamento de um elemento vulgarmente real para o ambiente artístico. Essa noção de deslocamento remete novamente ao pensamento de Lîlâ Bisiaux, no artigo “Deslocamento Epistêmico e Estético do Teatro Decolonial”. Esse deslocamento, segundo ela, só é possível com a revalorização cognitiva e epistêmica dos povos oprimidos, que se dá pela possibilidade de uma reapropriação histórica. Para ela, é necessário produzir novas formas de conhecimento que podem acontecer quando há um deslocamento do enunciante da história; quando os únicos a contarem a história não são os homens brancos, cristãos, europeus e heterossexuais. Por essa razão, busco margear a criação de indivíduos que formam uma certa coletividade por meio da identificação, o que se evidencia na formação de grupos teatrais negros contemporâneos. São coletivos que não trabalham para um benefício exclusivamente subjetivo, e se unem pela crença na importância de ofertar aos negros possibilidade de encantamento. É mais do que assistir a algo. Trabalha-se para uma construção de valores que faça da atitude de espectar um ato ético, para que os corpos marginalizados e negros deixem de ser vistos “(…) à espreita nos olhos de todos os brancos” (MORRISON, 2019, p.52).
Para a ampliação das questões da imagem, representação e representatividade negra é preciso levar em consideração problematizações postas, por exemplo, por Stuart Hall em artigos como “Quem precisa da identidade?”, para quem a identidade é sempre uma condição incompleta que pretende dar muito mais conta daquilo que nos tornamos do que daquilo que somos, “(…) não assim chamado ‘retorno às raízes, mas uma negociação com as nossas ‘rotas’” (HALL, 2000, p. 109). O uso da noção de identidade tem mais a ver com a formação de práticas discursivas específicas e estratégias, deflagrando, assim, a marca da diferença e da exclusão de determinados grupos indenitários sem, com isso, transformar-se no signo da unidade idêntica ou do resgate histórico. Hall nos lembra que “A constituição de uma identidade social é um ato de poder” (LACLAU in HALL, 2000, p. 110), pois é sempre um ponto de encontro, ainda que temporário. Porém, essas coletividades formadas (e forjadas) no estofo identitário não são monolíticas, elas permeiam a estética da existência, fazendo da identidade um tema de considerável importância política.
Esse ponto de encontro temporário apontado por Hall me remete ao texto “Entre “artes” e “ciências”: a noção de performance e drama no campo das ciências sociais” de Rubens Alves da Silva, que estabelece uma relação entre os dois campos de conhecimento por meio do drama social. Segundo o autor, o drama social contribui para a revitalização da própria estrutura social. Nesse artigo, ele constrói uma reflexão teórica relacionada com as preocupações e propostas presentes no campo antropológico que têm como objetivo estabelecer uma discussão sobre a noção de performance e drama nas ciências sociais. É nesse sentido que Silva dialoga com os principais autores dessa discussão teórica no campo antropológico.
Gostaria de destacar nesse diálogo antropológico algumas noções caras a Victor Turner utilizadas por Silva em seu texto que acredito serem pertinentes às tensões apresentadas no espetáculo da Cia Marginal e os textos citados até então – principalmente a noção de identidade elaborada por Hall. Gostaria de me ater à noção de estrutura trazida por Turner para pensar o drama social que, para ele, se confirgura a anti-estrutura por meio da liminaridade e communitas. É preciso entender a noção de estrutura associada à organização social. Já a liminaridade para Turner seria algo que está à margem, transitando e de passagem, tais como as transições sociais e culturais. Justamente por terem esse caráter mutante, não chegam a estabelecer um status. Logo, para Silva, os dramas sociais são liminares porque propiciam aos atores sociais a experiência de estarem às margens da sociedade, criando ocasiões para grupos representarem, simbolicamente, papéis inversos. No entanto, a anti-estrutura não é ausência de estrutura. Para Silva as communitas são valores, crenças ou ideias coletivas que configuram uma anti-estrutura que propõe um modelo alternativo e espontâneo de organização social. As communitas se situam às margens da estrutura social ao mesmo tempo em que criam diferenças e tensões dentro do comum, como diz Carlos Steil também no texto de Silva. Hoje não saio daqui é um exemplo de ponto de contato entre a antropologia e as manifestações artísticas, tão caro ao estudo de Silva.
A Cia Marginal é um coletivo de artistas que surge em 2005 na esteira do teatro comunitário, mais especificamente favelado. Essa identidade toma forma na própria dramaturgia escrita para os trabalhos do grupo, que têm em comum a característica de trazer ao palco as problematizações decorrentes dos seus locus sociais. O próprio nome já pleiteia esse lugar de marginalidade, que é social e estético ao mesmo tempo. Em Hoje eu não saio daqui, a ideia de comum é problematizada na medida em que o grupo apresenta as diferenças culturais entre moradores do Complexo da Maré. A própria noção de complexo já traz o problema que é pensar 17 favelas como uma só. Mas, além da diversidade territorial da própria favela, o espetáculo fala dessa tensão que há entre os africanos, muitos em situação de refúgio, que moram na Maré e que não correspondem exatamente ao resgate identitário para as pessoas negras faveladas que são ascendentes de escravizados trazidos da África. Acredito que esse espetáculo seja uma desmistificação da noção de comunidade como algo singular, uniforme e universal, que não tem contradições. As identidades apresentadas nesse espetáculo são da ordem da liminaridade colocada no artigo de Silva e que, intencionalmente, quer ser transitória e marginal.
É possível perceber uma crescente motivação de pessoas negras no Brasil para a descolonização de imagem do corpo negro e o impacto que isso pode ter no olhar da pessoa negra. Bisiaux fala da relação de uma geo-política e de uma corpo-política na medida em que existimos onde pensamos. Se nos ativermos ao corpo negro, é por meio dele que as pessoas negras existem. O corpo para o negro é ao mesmo tempo o alvo de ataque e a sua resistência, na medida em que foi por muito tempo a única materialidade possível para as pessoas escravizadas. Era também o corpo o elemento de libertação e fuga desse regime autoritário e genocida, a exemplo dos quilombolas. A autora usa essa noção de geo-política e corpo-política para pensar o teatro como lugar de possibilidade de uma outra representação, do não representado ainda e da imagem utópica. Ela sugere um deslocamento estético e epistêmico.
Em “Que “negro” é esse na cultura popular negra?” Stuart Hall traz outras problematizações que dialoga, com esse trabalho: a análise crítica do momento atual de valorização da cultura negra de massa devido ao deslocamento de modelos europeus como alta cultura, da Europa como universal da cultura, da própria cultura com a descolonização do Terceiro Mundo e, por último, de um deslocamento da Europa para a América como referencial de cultura de massa. Esse descentramento abre caminho, segundo ele, para novos espaços de contestação. No entanto, o texto alerta para o perigoso fascínio ocidental (que é também o da pós-modernidade) para com as diferenças. Nada mais são do que formas de autorização do olhar ligadas à proliferação da diferença que não faz diferença alguma. Hall está chamando atenção para o fenômeno da inclusão de corpos negros que não alteram em nada a lógica estrutural racista. Mas, ao mesmo tempo, ele acredita que a vida cultural tem transformado a existência de corpos negros com as enunciações das margens por meio de estratégias culturais que podem fazer a diferença e alterar as disposições do poder. São iniciativas que provocam outras formas de vida e outras tradições de representação (HALL, 2003, p. 154), assim como o espetáculo Hoje eu não saio daqui, que desestabiliza pressupostos sobre africanidade, identidade e comunidade; contrariando, com isso, o título do trabalho, que induz à permanência enquanto, na verdade, oferece aos seus espectadores diversas oportunidades de diferentes tipos de deslocamento.
Referências bibliográficas
BISIAUX, Lîlâ. Deslocamento Epistêmico e Estético do Teatro Decolonial. In: Revista Bras. Estudos da Presença vol.8 no.4 Porto Alegre out./dez. 2018. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/presenca/article/view/87003
CARLSON, Marvin. Expansão do teatro moderno rumo à realidade. Art Research
Journal – ARJ, v. 3, n.1, 2016.
Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/artresearchjournal/article/view/8429/6804
HALL, Stuart. “Quem precisa da identidade?” In: SILVA, Tomaz Tadeu (org). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petropólis. Vozes, 2000.
____________. “Que “negro” é esse na cultura negra?” In: Da diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Belo Horizonte. Ed da UFMG, 2003.
MORRISOM, Toni. O olho mais azul. São Paulo. Companhia das Letras, 2019.
RATTS, Alex. RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez. São Paulo. Selo Negro, 2010.
SILVA, Rubens Alves da. “Entre “artes” e “ciências”: a noção de performance e drama no campo das ciências sociais” Revista Horiz. antropol. V.11, n.24, 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832005000200003
Viviane da Soledade é Bacharel em Teoria do Teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), pós-graduada em Arte e Cultura pela Universidade Cândido Mendes (UCAM), mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Foto em destaque: Leon Diniz.