Trem para alargamento do horizonte
Crítica da peça In-trânsito dirigida por Joana Levi e Isabel Penoni com a Cia Marginal
“Daqui vê-se o morro”, disse ela. “É lindo”, disse ela. Os ponteiros do relógio tinham sido esquecidos na vida digital onde os tempos confluem, não era certo ser agora ou um pouco depois, embora fosse tarde, calor, verão e suor. O lugar era uma estação de trem: Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil. O lugar era feito de gente pegando trens e no meio dessa gente a menina que olhou para mim e disse: “Daqui vê-se a morro, é lindo”. Fiquei sem saber o que dizer. Com o olhar na imensa plataforma de concreto e bem por baixo do meu nariz, havia uma interminável favela, terror de pedra quebrada, lagos de mijo, árvores de lixo, correntes de corpos quase invisíveis. Afinal era uma questão de perspectiva. A menina com os olhos postos no horizonte, um pouquinho acima, ali onde pairava a beleza da cidade, o morro e a distância que torna tudo imponente e eu com o olhar um pouquinho abaixo, abaixo da linha do horizonte, ali onde se perturba a vista com desolação. De repente, uma memória distante das esculturas de Giacometti, pois se o Giacometti aqui estivesse, tinha-se apaixonado pelas pessoas pequeninas de silhuetas em forma de alfinete que vasculham no lixo, aquelas pessoas que carregam o lado avesso do Rio de Janeiro. Respondi: “é lindo”. Tão lindo que dói. Era um lugar cheio de lugares dentro.
(17h30, 22 fevereiro de 2014, estação Manguinhos, depois de assistir In-Trânsito)
In-trânsito é uma viagem de trem pela cidade do Rio de Janeiro, partindo da Central do Brasil para o fim do mundo, isto é, Saracuruna. Ao todo, a viagem dura cerca de duas horas, incluindo compassos de espera, momentos de olhos vendados, olhos nos olhos dos passageiros habituais daqueles vagões, confusão de vozes, vendedores de amendoim, imagens de novos estádios de futebol que se constroem para o futuro da nação, música do Roberto Carlos. Ao longo da viagem, passamos por lugares com nomes diversos como Bom Sucesso e Triagem, esperamos trens atrasados, conversamos, discutimos política, andamos com garrafas de água e mochilas às costas, em alguns momentos as imagens tornam-se insuportáveis e noutros momentos temos tempo de nos perguntar: Quantas vezes vim aqui? O que estou aqui a fazer? Por que fizeram este lugar assim? Trata-se de mergulhar na ficção naturalizada dos transportes públicos que dividem a cidade em mil pedaços e sufocam as relações sociais em função das distâncias entre habitantes e da rapidez de circulação. Os nômades no Rio de Janeiro e do mundo global do século XXI não podem existir aqui, seus horizontes estão presos dentro destes trens, da obrigação de ir e voltar todos os dias, de uma identidade que os mantém no sedentarismo bacoco e divisor de centros e periferias. Fechados no mito e na obrigação de voltar para casa, tal como Ulisses na sua Odisseia, somos participantes de uma proposta artística e ética sobre o uso dos espaços públicos, sobre a relação da produção artística com as infra-estruturas da cidade e nesse gesto somos convidados a provocar nossos corpos, a entrar na cidade pelas suas entradas mais entupidas e hostis – as linhas de trem da periferia que assim alargam nossos horizontes.
A dramaturgia de In-trânsito é construída sobre uma dramaturgia implícita de um enorme trecho ferroviário onde a viagem do espectador decorre: um lugar concebido para ser apenas atravessado, ou um “não lugar”, como chamou o antropólogo Marc Augé a plataformas de trem, shoppings e estacionamentos, pensando em todos os lugares transitórios das cidades contemporâneas, onde os indivíduos se cruzam mas não se encontram, onde pessoas singulares se diluem na generalização de atravessamentos solitários. Trata-se de uma cenografia viva, onde atravessamos a cidade como companhias-fantasma de passageiros habituais de um ramal ferroviário e junto deles nos diluímos na eternidade dos seus percursos, entre duas horas para chegar ao trabalho no centro e outras duas horas para voltar. Trata-se de periferia e, por isso, não é suposto ser fácil, cômodo ou ameno, mas pela primeira vez na vida, nos convidam a ser os anjos de Berlim como nas Asas do Desejo de Wim Wenders, isto é, dão-nos a capacidade extraordinária de ler a cidade em silêncio e escutar os pensamentos de outros com nossa delicadeza.
O tempo demora sempre a passar, é uma espera que se constrói deliberadamente. Mas o mais curioso é que nesta experiência dramatúrgica, os trens são como cavalos de ferro de antigamente e ao viajar neles sentimos que estão à beira de explodir, como se o passado rondasse muito perto daquelas plataformas e o presente nos exigisse um galope, uma fuga, uma reação. Nas janelas ou nas caras das pessoas sentadas, é inevitável ver a cidade que fica bem debaixo do nosso nariz, o Rio de Janeiro do pó debaixo dos tapetes, das articulações doridas, da prisão de ventre, da prisão de movimento, o Rio com mais de noventa anos e menos de cinco anos, o recém-nascido de um vendaval social, o velho dos horizontes nobres, a sempre criança da paisagem verde-mil que alberga os horizontes pobres. É uma viagem onde os tempos da cidade se cruzam tal como suas ambivalências sociais, o que torna o ponto de vista do espectador e suas origens sócio-econõmicas muito mais evidentes do que qualquer espectáculo numa caixa preta. Por isso é natural por vezes estranhar porque somos da Zona Sul ou porque somos de teatro e nunca tivemos tempo para andar de trem ou porque não sabemos onde fica Triagem. E aí por momentos podemos sentir-nos “fora-de-cena”. Mas também é natural aproximar-nos de alguém porque, como esse alguém, já passamos mil vezes naqueles lugares, mas nunca tínhamos reparado em como ali o ar fica mais pesado ou como aquele prédio está diferente. Trata-se afinal de substituir o tempo de espera dos transportes públicos da periferia por um tempo sensível e isso é uma oportunidade rara no meio da aridez dos horizontes pobres. Os pontos de vistas parecem realmente contar.
Em nossa viagem, viajamos acompanhados por guias: um grupo de atores que nos ajudam a criar a distância necessária para olhar de novo. Estes atores (Cia Marginal) são moradores de cidades como nós, também eles vendam os olhos, olham nos olhos, cansam-se de esperar, reclamam do calor e dos cheiros. Mas, ao mesmo tempo, também eles são como nós “anjos da cidade”, apresentam-nos as histórias de lugares e de pessoas como ficções, mostram-nos o suportável e o insuportável daquela realidade. Em Bom Sucesso, oferecem-nos uma máquina de ver para trás que permite olhar o passado daquela estação. Em Manguinhos oferecem-nos uma trilha sonora para a realidade. Em Triagem, misturam Ulisses com Macunaíma. Em São Cristovão, criam um espelho para olhar os passageiros dentro de uma realidade de que todos fazemos parte.
In-trânsito é da família de The Quiet Volume de Tim Etchells, onde se sussurram palavras aos ouvidos de espectadores numa imensa biblioteca. Ou da iniciativa de Lola Arias e Stefan Kaegi chamada Ciudades Paralelas, um festival onde se convidam diversos artistas a desenvolver projetos artísticos em diferente situações urbanas e onde Mariano Pensotti, convidado argentino da recente Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, foi um dos encenadores a propor uma experiência de ficção num trem. Como nestas iniciativas cada vez mais naturais no panorama da produção contemporânea, In-trânsito cria uma experiência de observatório e de abertura do olhar, colocando-nos no interior de um debate sobre os fluxos atrapalhados e escondidos da periferia e da relação que esses fluxos têm com a imagem que criamos da cidade. Joana Levi e Isabel Penoni convidam-nos a ver a cidade do ponto de vista de um trem em movimento, porque aqui teatro é apenas isso e tudo isso: esculpir o tempo e o espaço de uma viagem do espectador. Por sorte, a viagem é literal e não uma estranha metáfora sobre a interioridade do espectador, e o Rio (nós) só podemos agradecer a franqueza do olhar e o tempo que é proporcionado.
Informações sobre In-trânsito: http://espetaculointransito.tumblr.com
Informações sobre o trabalho da Cia Marginal: http://www.ciamarginal.com/
Leia na Questão de Crítica:
Crítica de In-trânsito por Daniel Schenker: http://www.questaodecritica.com.br/2013/04/a-cena-invisivel/
Conversa de Dinah Cesare com a diretora Isabel Penoni sobre o trabalho da Cia Marginal: http://www.questaodecritica.com.br/2012/05/um-trabalho-fundamentado-no-ator-nos-espacos-e-nas-relacoes/
Crítica de Ô, lili por Dinah Cesare: http://www.questaodecritica.com.br/2012/04/ambiguidades-sutis/
Rita Natálio nasceu em Lisboa em 1983 e vive em São Paulo desde 2012. É performer, dramaturgista e pesquisadora. Realiza atualmente uma pós-graduação no Núcleo de Subjetividade da PUC – São Paulo com Peter Pal Pélbart e com o apoio de bolsa de estudos da Fundação Calouste Gulbenkian de Portugal. É graduada em Artes do Espetáculo Coreográfico pela Universidade de Paris VIII. O seu trabalho cruza a criação de espetáculos com seus estudos acadêmicos na área da filosofia, política e estética. Colabora regularmente com a rede europeia de dança DEPARTS, onde escreve sobre espetaculos de dança.
Vol. VII, nº 61, março de 2014